Por ARTHUR COELHO BEZERRA*
A substituição da mão de obra humana não é culpa da tecnologia, e sim da forma como ela é empregada no sistema capitalista
A exploração do trabalho humano através da extração de mais-valia, ou seja, de tempo de trabalho não pago, é um entendimento fundamental da crítica da economia política de Marx, que produz um corte epistemológico entre a economia política clássica e a análise marxiana do modo de produção capitalista – expressão cunhada pelo pensador alemão para apreender a dinâmica socioeconômica das formações humanas em seu caráter histórico.
Segundo Marx, no afã de ampliar ao máximo a extração de mais-valia, o capitalista encontra duas frentes de ação: uma delas é a ampliação da jornada de trabalho, prolongando o tempo em que o trabalhador excede o tempo de trabalho necessário e permanece produzindo mais-valor, mediante um quantum de mais-trabalho. Marx chama essa modalidade de mais-valor absoluto. A outra modalidade, o mais-valor relativo, consiste no uso de inovações tecnológicas para aumentar a produtividade e diminuir o tempo de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria, com a possibilidade de incorporação de maquinário que custe ao capitalista menos do que o seu gasto com a força de trabalho.
Esse processo resulta na substituição de capital variável (força de trabalho) por capital fixo ou constante (máquinas, processos automatizados, inteligência artificial etc.). A produtividade da máquina é medida, assim, pelo grau em que ela substitui a força humana de trabalho, sendo a autovalorização do capital por meio da máquina “diretamente proporcional ao número de trabalhadores cujas condições de existência ela aniquila”.[i]
Portanto, não surpreende que, ao lado da excitação geral com as infinitas possibilidades de aplicação de processos de inteligência artificial no mundo do trabalho, seja possível notar também, em paralelo, uma apreensão em diversos setores profissionais com as perspectivas de substituição de trabalho vivo por trabalho automatizado. Afinal, como lembram Marx e Engels no Manifesto Comunista, “essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes”.[ii]
Em 2023, a popularidade do Chat GPT-4 (sigla para Generative Pre-trained Transformer), um gerador de textos em modelo de linguagem extensa (Large Language Model) que gera respostas em formato de redação a partir de uma varredura na informação disponível na internet, veio acompanhada de um temor de professores, tradutores, compositores, advogados, juízes, profissionais de marketing e finanças e outras ocupações passíveis de substituição. O leitor e a leitora que exercem alguma dessas profissões ameaçadas pelo desenvolvimento da tecnologia deveria, então, concluir que um robô vai tomar o seu trabalho?
Bem, é possível que sim. Mas a culpa não é da tecnologia, e sim da forma como ela é empregada no sistema capitalista. As máquinas, diz o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto, “se incluem no processo histórico das sociedades que as produzem, e do qual se tornam índices, revelando, assim, a extensão do processo de percepção do mundo nelas consubstanciado e as relações entre os homens, que as possibilitaram”; nesse sentido, “as consequências, boas ou más, resultantes do uso não lhes devem ser imputadas, pois não são seres responsáveis, mas aos proprietários delas”.[iii] Como Marx nos lembra, “aqui, como em toda parte, é preciso distinguir entre a maior produtividade que resulta do desenvolvimento do processo social de produção e aquela que resulta da exploração capitalista desse desenvolvimento”.[iv]
É à subsunção da tecnologia ao modo de produção capitalista, portanto, que devem ser creditadas as seguintes contradições apontadas pelo pensador alemão no século XIX, que se mantêm empiricamente observáveis no mundo digital do século XXI: “considerada em si mesma, a maquinaria encurta o tempo de trabalho, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela aumenta a jornada de trabalho; como, por si mesma, ela facilita o trabalho, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela aumenta sua intensidade; como, por si mesma, ela é uma vitória do homem sobre as forças da natureza, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela subjuga o homem por intermédio das forças da natureza (…)”.[v]
Por outro lado, o Chat GPT também cria novos postos de trabalho, uma vez que sua linguagem precisa, como diz a sigla, de algum pré-treinamento. A versão anterior do Chat, o GPT-3, embora produzisse textos coerentes graças a sua grande capacidade de processamento da informação encontrada na rede mundial, frequentemente escrevia comentários racistas, sexistas, homofóbicos e violentos – justamente graças a sua capacidade de processamento do chorume informacional encontrado na rede.
Para solucionar o problema, a OpenAI, desenvolvedora da ferramenta, tem à disposição o serviço de uma empresa baseada em São Francisco, no coração do Vale do Silício, que usa mão de obra de países como Quênia, Índia e Uganda para trabalhar como etiquetadores de dados (data labelers), classificando conteúdo impróprio para empresas como Alphabet, Meta e Microsoft através da realização das chamadas “tarefas de inteligência humana” (humana intelligence work, ou HIT). De acordo com uma reportagem da revista Time, quenianos receberam menos de 2 dólares por hora para fazer com que a linguagem do chat da empresa se tornasse menos tóxica.[vi]
A classificação dos dados no Chat GPT é feita submetendo trabalhadoras e trabalhadores mal pagos a textos que descrevem, graficamente, abuso infantil, tortura, automutilações, assassinatos, suicídios e demais usos abjetos e traumatizantes da linguagem humana, para que esses trabalhadores rotulem tais conteúdos como impróprios e tornem a nova versão do Chat GPT mais impermeável a redações ofensivas. A produção de um ambiente digital menos tóxico, como o que o Chat GPT-4 apresenta hoje, é feita às custas da saúde mental desses gatekeepers do trabalho precarizado.
O expediente, longe de ter sido inaugurado pela OpenAI, faz parte do modus operandi das big tech de contratação de mão de obra terceirizada em países periféricos, como mostra o filme The Cleaners, de 2018, dirigido por Hans Block e Moritz Riesewieck, que acompanha a rotina de trabalhadores nas Filipinas responsáveis pela remoção de vídeos impróprios do YouTube e do Facebook. De acordo com Phil Jones, autor de Work Without the Worker: Labour in the Age of Platform Capitalism, “a mágica do aprendizado de máquina é a rotina da rotulagem de dados. Por trás dos rituais de culto à carga do Vale do Silício está o árduo trabalho de peneirar discurso de ódio, anotar imagens e mostrar aos algoritmos como identificar um gato”.[vii]
Abaixo do círculo do inferno dos moderadores de conteúdo impróprio está o ainda mais dantesco e nada inovador trabalho de extração de minerais valiosos, como o coltan e o ouro, para a indústria dos eletrônicos. Resultado de uma mistura de dois minerais, a columbita (de onde se extrai o nióbio, que tem propriedades de supercondutor) e a tantalita (de onde se extrai o tântalo, utilizado na fabricação de pequenos condensadores), o coltan é um minério metálico utilizado na maioria dos aparelhos eletrônicos, como smartphones, notebooks e demais computadores, sejam portáteis ou de bordo (como em foguetes e estações espaciais). Filamentos de ouro, um excelente condutor de energia elétrica e térmica, também não podem faltar na produção de iPhones, iMacs e iPads.
Como dizem Deivison Faustino e Walter Lippold no instigante Colonialismo digital (Boitempo), “não há hardware sem software”: em referência a Frantz Fanon, que enxerga o colonialismo como traço fundamental para o desenvolvimento da democracia e da tecnologia nas grandes cidades europeias, os autores afirmam que “o colonialismo digital garante o funcionamento normal de nossos smartphones e sistemas de navegação aérea. Um fenômeno que só é possível mediante a criação permanente de mundos de morte em territórios de extração de matérias-primas imprescindíveis para a indústria eletrônica, como as minas no lago Kivu, na fronteira do Congo com Ruanda e Burundi”.[viii]
Como a lei brasileira, até 2023, se baseava na declaração de boa-fé do vendedor para legitimar a comercialização do ouro brasileiro no mercado, é difícil precisar a porcentagem de ouro extraída ilegalmente de reservas indígenas (como as Yanomami) que está contida em cada smartphone. A mesma dificuldade se coloca no cálculo da quantidade de trabalho não pago que está presente na extração de coltan das maiores reservas desse minério no mundo, localizadas na República Democrática do Congo, palco de uma guerra civil envolvendo a posse das minas (dentre outras questões étnicas e territoriais) que se estende por anos no país africano.
O que não é razoável é ignorar as práticas de garimpo ilegal de ouro no Brasil e de exploração do trabalho escravo e semiescravo no Congo como expedientes necessários à produção dos dispositivos eletrônicos que franqueiam o acesso ao mercado mundial da internet. Antes do dado, há o minério; ou, como afirma Ricardo Antunes, “o ponto de partida do trabalho digital se encontra no duro ofício realizado pelos mineiros”.[ix] Tais atividades figuram no rol do trabalho precarizado do século XXI, que se esconde sob o véu leve e aparentemente imaterial do capitalismo digital que se desmancha na “nuvem”.[x]
*Arthur Coelho Bezerra é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do IBICT-UFRJ.
Notas
[i] Karl Marx, O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital (Boitempo, 2017, 2ª edição), p. 502-3 (https://amzn.to/44uz8wl).
[ii] Karl Marx e Friedrich Engels, O manifesto do partido comunista (Boitempo, 2010), p. 43 (https://amzn.to/45LoS3P).
[iii] Álvaro Vieira Pinto. O conceito de tecnologia – volume I (Contraponto, 2005), p. 106-107 (https://amzn.to/3Pd67AT).
[iv] Marx, 2017, p. 494.
[v] Marx, 2017, p. 513.
[vi] https://time.com/6247678/openai-chatgpt-kenya-workers/
[vii] Phil Jones, Work Without the Worker: Labour in the Age of Platform Capitalism (Verso, 2021), p. 8. (https://amzn.to/3OUKu6Y)
[viii] Deivison Faustino e Walter Lippold, Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana (Boitempo, 2023), p. 86-87 (https://amzn.to/3YRp27r).
[ix] Ricardo Antunes, O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços da era digital (Boitempo, 2018), p. 20.
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[x] Trechos do artigo “Tecnologia e trabalho precarizado: crítica da economia política do capitalismo digital” (Revista O Social em Questão, nº 58, jan-abr 2024, no prelo)
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