Por Francisco P. Farias* e Octávio F. Del Passo**
Os livros Os sentidos do lulismo, de André Singer, e Reforma e crise política: os conflitos de classe nos governos do PT, de Armando Boito se destacam no âmbito da ciência política brasileira por buscar os significados das práticas do Partido dos Trabalhadores (PT) e dos governos de Lula da Silva (2003-2010) e de Dilma Rousseff (2011-2016) a partir das relações de classes.
De acordo com Singer, a descolagem do “subproletariado” frente aos partidos conservadores e sua adesão ao “lulismo” e ao PT marcam na política brasileira uma clivagem de classes sociais, sob a linguagem de ricos e pobres, em especial nas eleições de 2006 e 2010.
Armando Boito, por sua vez, mobiliza as categorias de “classe social” e “frações de classe”como forças influentes na vida política, ao mesmo tempo em que são agregadas e articuladas pelos efeitos das políticas de Estado. Segundo ele, a relação entre, de um lado, os governos do PT e, de outro, as classes dominantes, foi caracterizada pela ascensão da “burguesia interna” (termo emprestado de Nicos Poulantzas) e a construção da política “neodesenvolvimentista” – políticas de Estado de caráter desenvolvimentistas aplicadas dentro dos limites da política macroeconômica neoliberal.
A nossa análise da política de alianças do PT referencia-se, em grande parte, nessas análises de Singer e Boito.
Durante a transição ao capitalismo industrial no Brasil (1930-1964), o campo da esquerda socialista foi liderado pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), que surgiu filiado à Terceira Internacional, logo sob a influência do PC da URSS. No modelo soviético, o Estado era encarregado de controlar a propriedade dos meios de produção e de planificar a economia. A predominância de planos centralizados estendia-se da economia à cultura. A divisão do trabalho técnico e social foi intensificada, e o partido único se tornou o órgão supremo do aparelho de Estado. Assim, a Internacional Comunista e o PCB estavam comprometidos com uma concepção estratégica que, intervertendo o programa socialista, passou a defender os interesses, por assim dizer, de uma nova classe dominante, a burguesia de Estado.
No entanto, desde sua fundação, em 1922, o PCB manteve uma coerência de objetivos táticos, sustentando, nas condições históricas da sociedade brasileira, um programa de caráter nacional-democrático, e não ainda “socialista”. Embora tenha mudado de método quanto à perseguição dos fins imediatos, adotando em função da conjuntura política uma prática ora insurrecional, ora legalista, o partido propunha viabilizar o desenvolvimento capitalista no país por meio da industrialização em bases privadas e nacionais e de uma ampla reforma agrária contra o latifúndio tradicional.
Mas, durante o processo da industrialização no Brasil, a burguesia industrial não se mostrou favorável à aliança com a classe assalariada. Dada a condição ambígua da fração industrial em dispor de uma base de acumulação própria e, ao mesmo tempo, de depender monetariamente do capital agromercantil, essa fração preferiu voltar as costas à tese do capitalismo nacional-democrático.
Como não dispunha de força suficiente para suplantar no interior do bloco no poder os interesses da economia agromercantil, a liderança industrial aderiu – não sem momentos de hesitação, como na Guerra de 1932 e na deposição do Presidente Getúlio Vargas em 1954 – ao compromisso de equilíbrio político, submetendo-se aos governos nacional-desenvolvimentistas. Com o avanço do processo de industrialização, a burguesia industrial passou, todavia, a se organizar para conquista da hegemonia política, viabilizada a partir do golpe civil-militar de 1964.
No processo de abertura democrática, no final da década de 1970, vários fatores convergiram para a formação do PT como uma expressão de interdependência entre organização partidária e classe social: (1) a emergência do sindicalismo menos subordinado à institucionalidade do Estado; (2) a mobilização dos movimentos sociais urbanos; (3) a renovação do catolicismo tradicional com a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base; (4) a reorganização da militância dos agrupamentos de esquerda socialista.
A hegemonia da burguesia industrial contribuiu para o surgimento dessa nova força partidária de esquerda (Cf. Décio Saes, Estado e classes sociais no capitalismo brasileiro dos anos 70/80). Nesse período, as taxas de crescimento econômico foram ampliadas, sem possibilitar, no entanto, a reprodução ampliada da força de trabalho. Essa fração da burguesia se beneficiou diretamente do regime repressivo do Estado, o que encadeou, no entanto, as condições de emergências das greves de trabalhadores assalariados, como os metalúrgicos, os petroleiros, os eletricitários etc.
O PT nasceu como uma manifestação, no Brasil, da “nova esquerda”. Reivindicava uma visão crítica da experiência dita socialista, contrapondo a essa experiência o controle dos meios de produção pelos trabalhadores, o planejamento descentralizado, o pluralismo partidário; e propunha a conquista da direção do Estado burguês com base no programa “democrático-popular”, impulsionado pelos movimentos sindicais e sociais. No intervalo de uma década se tornou a principal força partidária no campo da esquerda brasileira, em razão, em parte, da crise do PCB, provocada pelo golpe civil-militar de 1964, que fez desacreditar o programa “nacional-democrático” e, em outra parte, da ascensão das lutas reivindicativas e de oposição ao regime militar (1964-1985).
As aspirações da maioria eleitoral que deu vitória à candidatura de Lula na eleição de Presidência da República em 2002 foram apresentadas em documentos cujos teores de diretrizes em política econômica e social apontavam medidas como: honrar contratos e preservar o superávit primário; proteger a produção nacional e reduzir as altas taxas de juros; regular a entrada de capital estrangeiro; incentivar as exportações; proteger o emprego e ampliar as políticas sociais (Cf. Martuscelli, Crises políticas e capitalismo neoliberal no Brasil). De fato, a política econômica dos primeiros anos do governo Lula assumiu um perfil de transição, combinando a manutenção de medidas de estabilidade monetária com iniciativas nas áreas industrial e social.
Sob a pressão do chamado “risco Lula”, a expectativa de agentes do mercado financeiro era a de que continuasse o ataque especulativo da fuga de capitais iniciado durante a campanha eleitoral, mesmo após Lula ter exposto suas intenções de governo na Carta aos Brasileiros. Diante desse quadro, o Presidente Lula nomeou uma equipe econômica que adotou medidas conservadoras, como o ajuste fiscal e a reforma da previdência, sob a alegação de evitar os riscos inflacionários. Paralelamente, o reforço das linhas de créditos pelo BNDES, incentivando o investimento produtivo, começou a favorecer a base de apoio ao governo dos grupos industriais, da mesma forma que a reorientação de parte do orçamento do Estado ao reforço de programas sociais o fez em relação aos setores mais pobres da população (Cf. André Singer, Os sentidos do lulismo).
Em seguida, a mudança da equipe econômica, abandonando a orientação conservadora da política econômica e substituindo-a por um modelo de desenvolvimento que articulava crescimento econômico com políticas de distribuição de renda e estabilidade monetária, teria mostrado a “intuição” e o “pragmatismo” do Presidente Lula.
Os dados apontam um desempenho positivo nos indicadores econômicos e sociais do país. A taxa de inflação decresceu, registrando os índices de 9,3%, em 2003, e 3,1%, em 2006. Ao mesmo tempo, o governo conseguiu reduzir os juros em quase metade; a taxa Selic, que atingiu em maio de 2003 o índice de 26,3%, chegou ao final de 2006 com o índice de 13,2%. Por sua vez, deu-se o aumento gradual do salário mínimo, que passou de R$ 302 para R$ 402 no período. Embora os gastos com saúde e educação não tenham progredido na mesma proporção, houve uma ampliação significativa na área de proteção social, que passou do patamar de 13,7% para 20,5%, entre 2003-2006.
Esses resultados foram, em certa medida, produzidos por uma frente de forças sociais e políticas, que conseguiu reverter o padrão de desenvolvimento socioeconômico dos governos anteriores sob a orientação do pensamento neoliberal. Por um lado, a coligação PT (Lula) e PL (José de Alencar) induzia a um acordo tácito das lideranças de trabalhadores, como a CUT e o MST, e setores empresarias nacionais, como a FIESP e a Febraban, em torno de uma nova política de desenvolvimento econômico e social. Em 2005, depois de amplas discussões, a iniciativa governamental comprometia sindicatos, movimentos sociais e associações patronais junto a Agenda Nacional de Desenvolvimento, estruturada em seis eixos: o combate à desigualdade social, a intensificação da logística em infraestrutura, a segurança pública, a justiça, a regulação e a supervisão, a eliminação das desigualdades regionais (Cf. Bresser Pereira e Ianoni, Class coalitions in a new democracy: the case of Brazil).
Por outro lado, iniciativas conjuntas das lideranças empresariais e dos trabalhadores repercutiam no interior do aparelho governamental, como no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), cujo funcionamento envolvia a negociação de patrões e empregados. Diversas medidas legislativas adotadas pelo Congresso Nacional foram originadas em diagnósticos e nas orientações formuladas pelo CDES, como a instituição do Fórum Nacional do Trabalho, a proteção da Micro e Pequena Empresa, a expansão de recursos para Educação Profissional.
A vitória desta nova coalizão política pressupunha dois condicionantes. Em primeiro lugar, o condomínio de interesses no sistema hegemônico entre o segmento de bancos e o segmento industrial do capital nacional; tal equilíbrio de posição deveria se chocar com as diretrizes da política neoliberal – desregulamentação monetária, taxas de juros elevadas, privatizações etc.–, que privilegiavam os interesses do capital financeiro com dominante monetária internacional.
Em segundo lugar, os setores empresariais hegemônicos deveriam conceder de fato ganhos para as classes trabalhadoras; o que implicava num novo padrão de política trabalhista e social, que possibilitasse uma reprodução ampliada da força de trabalho assalariada. Como declarou um dirigente sindical, “era preciso romper flancos no campo adversário e construir alianças. Em reunião do CDES defendi o emprego e o salário para fortalecer o mercado interno como forma de enfrentamento da crise”.
Em síntese, o PT e a CUT praticaram uma política de aliança de classe, cujos resultados globais indicam ganhos reais para os interesses da maioria social, sem deixar de privilegiar os interesses hegemônicos do capital; todos ganharam, mas não na mesma proporção. Afinal, o governo de esquerda ou centro-esquerda se instalou sem revolucionar as estruturas do Estado burguês, que, pelos seus valores e pela sua institucionalidade limitada a tais valores, impõe invariavelmente a convergência da política estatal aos interesses da classe dominante ou da sua fração hegemônica.
Mais concretamente, as alianças Lula-Alencar e CUT-FIESP produziram efeitos que ampliaram, de fato, o bem-estar da maioria social, num contexto em que frações da burguesia (multinacionais, grande comércio, bancos estrangeiros) patrocinavam a adoção de políticas regressivas dos direitos sociais; ao mesmo tempo, essas alianças ensejaram a estabilidade política para consecução de um programa neodesenvolvimentista.
Um ponto em comum entre as diferentes análises do ciclo dos governos do PT talvez seja essa questão do compromisso social envolvendo, de um lado, os mandatários do grande capital e, de outro, as lideranças das classes trabalhadoras. Em alguns trabalhos, o ciclo petista aparece moldado pela prática da “conciliação de classes”, implicando a “cooptação” e a “despolitização” das lideranças das classes trabalhadoras e envolvendo a fração de trabalhadores sub-remunerados, pela sua desorganização de classe, como a base de apoio político-eleitoral.
Essa discussão, a nosso ver, avançaria se levássemos em conta a distinção proposta por André Gorz, no livro Estratégia operária e neocapitalismo , entre a reprodução normal da força de trabalho e a sua reprodução ampliada. A expansão da política social voltada aos setores empobrecidos, indaguemos, não conteria um sentido de proteção ao desemprego, já que o Programa Bolsa Família possui uma dimensão de renda-mínima? Nesse registro, o Programa não seria em parte uma extensão de condições materiais mínimas, já garantidas a trabalhadores desempregados por outras medidas de proteção social?
De qualquer modo, a generalização da análise do setor pauperizado ao conjunto das classes trabalhadoras não pareceria fundada. A política de aumento real de salários diretos e indiretos (com a expansão do SUS, da escolarização média e superior e outros) estaria dentro da reprodução ampliada da força de trabalho e, neste caso, significaria uma melhoria de suas condições civilizacionais na formação capitalista brasileira.
*Francisco P. Farias é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Piauí (UFPI)
**Octávio F. Del Passo é doutorando em Ciência Política na Unicamp
Esse artigo é uma parte da Apresentação do dossiê “O ciclo petista: reflexões a partir das Ciências Sociais” publicado na revista Temáticas, n. 53 (2019).
Referências
BOITO JR., Armando. Reforma e crise política: os conflitos de classe nos governos do PT. Campinas, Unicamp, 2018.
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos & IANONI, Marcus. Class coalitions in a new democracy: the case of Brazil. In: MAGARA, H. & AMABLE, B. (orgs). Growth, crisis, democracy: the political economy of social coalitions and policy regime change. London and New York, Routledge, 2017.
GORZ, André. Estratégia operária e neocapitalismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1968.
MARTUSCELLI, Danilo. Crises políticas e capitalismo neoliberal no Brasil. Curitiba, CRV, 2015.
SAES, D. Estado e classes sociais no capitalismo brasileiro dos anos 70/80. Primeira versão, n. 2, Campinas, IFCH-Unicamp, 1990.
SINGER, A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.