Por ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOY*
Comentário sobre o filme da diretora espanhola Mar Targarona
Há um senso comum enervante que nos dá conta de que todo agente nazista cumpria ordens, cegamente, pelo que não poderia ser responsabilizado pelas atrocidades cometidas. Na teoria geral do direito esse argumento é recorrente na crítica superficial ao chamado positivismo jurídico. Hans Kelsen (1881-1973), positivista convicto, carregou essa acusação, que é paradoxal. Perseguido pela academia alemã, porque de ascendência judaica, Kelsen teve de deixar a Europa, refugiando-se nos Estados Unidos, na Califórnia, lecionando em Berkeley.
Pelo contrário, o direito nazista contemplava um jusnaturalismo maquiado, centrado no “Füherprinzip”, isto é, em caso de dúvida interpretativa, decidia-se como Hitler definiria a questão. Voluntarismo maior não pode haver. “Eu estava cumprindo ordens!”, frase de peso, formulada como justificativa hipócrita e desesperada que protestava pela irresponsabilidade.
Essa questão é um dos temas explorados em O fotógrafo de Mauthausen, um filme impactante, especialmente pelo tema lateral, de interesse da historiografia espanhola. O título sugere mais um filme, entre tantos, que tratam da barbárie nazista, com o benefício do retrospecto. Não consegue evitar os jipes norte-americanos na passeata da vitória. Porém, há muitos méritos. O fotógrafo de Mauthausen compartilha uma estética do horror que opõe agressor e agredido. Assusta, revolta, desespera. Nesse caso, não apenas pelo que ocorreu, mas principalmente porque há quem negue e quem busque explicações onde não as há ou, pior, há quem permaneça indiferente.
Ao que consta, uma história real sustenta a narrativa. Um grupo de espanhóis teria lutado ao lado dos franceses contra os exércitos de Hitler. Capturados, foram conduzidos como prisioneiros de guerra ao campo de Mauthausen, na Áustria. O governo do generalíssimo Franco cassou a nacionalidade desses espanhóis cativos, o que lhes retirava qualquer forma de proteção. É a clássica figura romana do “homo sacer”, que o filósofo italiano Giorgio Agamben retomou ao tratar de pessoas desprovidas integralmente de qualquer forma de direitos. É o que ocorre com os encarcerados do ódio.
Na tipologia dos triângulos do holocausto (costurados aos uniformes dos prisioneiros) triângulos azuis identificavam imigrantes e apátridas, especialmente espanhóis que se exilaram na França, derrotados na guerra civil. Essa tipologia era de um colorido mórbido: rosa (homossexuais), amarelo (judeus), verde (criminosos comuns), vermelho (dissidentes políticos, especialmente comunistas) roxo (religiosos), castanho (ciganos), negro (lésbicas, prostitutas, mulheres alcoólatras).
Entre os presos de triângulo azul Francesc Boix (protagonizado por Mario Casas, galego de La Coruña, radicado em Barcelona), que no filme é filho de um alfaiate, porém hábil na fotografia. Boix é de algum modo protegido por Paul Ricken (Richard van Weyden), fotógrafo do campo, obcecado por imagens, para quem tudo era cenário. A cena do anão, e o que posteriormente ocorreu com essa triste pessoa, revelam (literalmente) a bestialidade e o mau-caratismo do fotógrafo alemão. Ao fim do filme, com o desate que todos sabemos, apresenta-se a justificativa em forma de mantra do ódio: “eu cumpria ordens”.
Até quando pode se aceitar essa desculpa? A lei penal deve retroagir, no contexto da chamada fórmula de Radbruch, segundo a qual há possibilidade (e necessidade) de se fazer justiça, retroativamente, mesmo nas hipóteses nas quais crimes foram cometidos no contexto e limites da mais completa legalidade. Os delitos do Terceiro Reich foram tão hediondos que a punição retroativa se revela aceitável e necessária. Gustav Radbruch (1878-1949), ministro da Justiça à época da República de Weimar, o autor da fórmula, acreditava que o positivismo poderia ter justificado o direito nazista. Um problema para quem se ocupa do pensamento jusfilosófico alemão.
A diretora de O fotógrafo de Mauthausen construiu uma mise-en-scène verossímil, em todos os pormenores, compondo um universo cosmológico realista. Tentativas de fuga, tiros, pijamas listrados, o próprio forno crematório, um oficial das SS que garantia que jamais errava. O pano de fundo é o imaginário comum da barbárie. Tudo lembra os relatos de Primo Levi (1919-1987), químico e escritor italiano que relata suas memórias de Auschwitz em É isso um homem? (Rocco), obra-prima do gênero.
Há no filme um menino cujo pai, oficial alemão, ensina-o a matar, em plena festa de aniversário, invocando que prisioneiro não era pessoa, para horror de muitos (alemães também) que estavam na comemoração da criança. Na cena, bruta, alguns alemães se mostravam indignados com o brutal assassinato, o que nos faz pensar no tema da culpa alemã, que o filósofo Jürgen Habermas problematizou na imagem do “dedo em riste”. Quer dizer, opõe-se às conquistas culturais e civilizatórias da Alemanha o inferno dos “Konzentrationslager” (campos de concentração).
A propósito do tema do “dedo em riste” há uma cena na qual na vitrola toca-se uma sonata de Beethoven. Extasiado, o fotógrafo alemão pede que o prisioneiro espanhol se acautele com a música alemã, que reputa demasiado intensa. O espectador intriga-se com a tensão entre uma música de sensibilidade delirante em face da frieza e da crueldade do agente público nazista. Quem consegue explicar?
O fio condutor do enredo consiste na tentativa de se esconder negativos de filmes, que fariam prova da ação criminosa no campo de concentração. Há um esforço de registro histórico, por parte dos personagens, em forma de comprovação visual de que horror era um fato, e não um delírio. Essa comprovação, de que seres humanos somos muito piores do que supomos, dependendo da ocasião, é a marca desse belíssimo filme de Maria del Mar Targarona Borrás, mas conhecida como Mar Targarona.
*Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Referência
O fotógrafo de Mauthausen
Espanha, 2018, 110 minutos
Direção: Mar Taragona
Elenco: Mario Casas, Richard van Weyden, Alain Hernández, Adrià Salazar, Eduard Buch.