Por TARSO GENRO*
A situação de divisão letárgica, em que se encontra boa parte da esquerda, não nos possibilitou – até agora – ter uma voz pública comum
A votação no Senado sobre os marcos regulatórios da “água e do saneamento” abre o restabelecimento do pacto político fascista-liberal, após uma sucessão de movimentos das lideranças tradicionais da centro-direita e do centro, reabrindo as perspectivas de permanência “civilizada” do Presidente Bolsonaro – certamente regada a muito Rivotril – até o final do seu mandato.
FHC no seu eterno pêndulo – pelo qual se apresenta como social democrata de direita no exterior, mas ultraliberal internamente – já recuou no seu oposicionismo democrático. Ele ia até o pedido de renúncia do Presidente e agora passou a pedir “tolerância”: com Lula? com Dilma? com o MST? com o MTST? com a Universidade em processo de destruição? com a esquerda desunida? Não. Com o protofascismo em ascensão, cuja primeira liderança no país é o próprio Presidente da República.
O mesmo Presidente que pede – sob as barbas burocráticas das nossas Forças Armadas – o “armamento geral do povo” para fortalecer suas milícias palacianas. Com outros figurinos, mas essencialmente com discursos no mesmo sentido totalitário, processos semelhantes já ocorreram em outros momentos históricos. O fascismo não é o mesmo, a capacidade de resistência da classe operária da fábrica moderna tampouco, a economia também será distinta, mas a barbárie se reproduz da mesma forma, pelo culto da morte e pela uniformização do ódio contra os diferentes. Aqui o fascismo vem unido com o ultraliberalismo, estimulado pelo giro da social democracia para a direita do espectro político.
O liberal-democratismo sempre foi ambíguo em relação ao fascismo em momentos de crise, mas nós não podemos ser ambíguos em relação a este campo, chamando-o para que venha compor conosco – por mais tímida que seja a sua adesão – para que a serpente não tenha o direito de chocar seu ovo.
A situação se torna mais grave quando concebemos que as formações políticas que se colocam na esquerda e na centro-esquerda, sequer têm uma identidade mínima sobre o tratamento de uma questão chave, colocada pela globalização financeira: qual o grau de inevitabilidade da reformas liberais que percorrem o mundo? São evitáveis, pelo menos algumas destas reformas, num contexto global não revolucionário e de desequilíbrio geopolítico pautado pelo nacionalismo dos países ricos? Ou estas reformas são evitáveis, somente a partir de outras, de caráter popular-democrático, que recuperem as funções públicas do estado?
A absoluta indiferença popular, em relação à privatização da “água e do saneamento” e a fragmentação sobre o tema, entre os que seriam partidos de “esquerda ou “centro-esquerda”, mostra que estamos também muito distantes de interferirmos na correlação de forças entre os campos políticos desiguais, ora em nova formação, que reforçam a restauração liberal-fascista em torno de Bolsonaro.
Penso que neste momento não se trata de selecionar o que vai nos separar no futuro, mas, “à portuguesa”, como fez o Primeiro-Ministro António Costa, valorizar o que nos une no presente, para derrotar a ameaça do fascismo. Todos os que acreditam ou concluem que esta ameaça é real e nos espreita, não podem deixar de colocá-la no centro da ação política, em qualquer instância de luta oposicionista contra o Governo Bolsonaro, por mais “moderada” que ela seja. Uma renúncia a espaços concretos de luta contra o bolsonarismo – mesmo que eles sejam patrocinados com hegemonia difusa – pode colaborar para a permanência de Bolsonaro no poder até 2022, já num país estraçalhado pela pandemia e com as suas forças produtivas em colapso. Um Estado falido, uma sociedade fragmentada, as classes trabalhadoras assoladas pelo ressentimento e pelo desemprego, uma situação histórica ideal para novas experiências totalitárias de direita.
O fascismo, além de ser um regime político, é um novo modo de vida: é tara com vontade de matar, animalização da vida e transformação do ser humano em instrumento de frustrações não processadas e recalques clandestinos. Formam-se indivíduos que não somente expelem força para explorar, mas também expandem a ação necrófila de destruição dos corpos que não aderem ao ódio coletivo. Assim, todos que votaram por Bolsonaro cientes que ele bradou – na votação do “impeachment” – a homenagem ao torturador-mor como “pavor de Dilma Roussef”, tem as mesmas compulsões assassinas daquele que agora o escolheram como líder.
Estes, por mais que invoquem um Deus presumido, falam é em nome de um líder, que espelha a sua desumanidade, hoje arraigada em milhões. Os fascistas em tempos normais podem ser poucos, mas nos tempos atuais são muitos – em todas as classes – e estão confiantes que podem derramar muito sangue e cometer atos genocidas, em nome de um valor maior. Este valor maior oculto, todavia, só é conhecido pelos que extinguiram das suas mentes os últimos resíduos de compaixão pelo ser humano. Foi assim na crise alemã dos anos vinte, foi assim na “escolha difícil” – na Itália – entre o fascismo e a cambaleante democracia liberal assediada pelos rancores da Guerra.
O “Manifesto em Defesa da Democracia, da Vida e da Proteção Social”, promoveu o Fórum virtual “Direitos Já”, entre tantos outros convocados no país e no exterior. Seu documento-base chamou “todas as forças democráticas” a se somarem numa “necessária frente ampla”, para afastar a possibilidade de uma ruptura democrática – com “mais democracia, não menos democracia” – visando redefinir os rumos do país e proteger a vida e a liberdade das gerações futuras. A abrangência dos signatários, ampla e surpreendente, aumentou e filtrou-se ao longo da sua divulgação.
Foi certamente um manifesto democrático, embora não isento de ambiguidades. A ruptura do Pacto de 88, que ele menciona, já ocorreu quando inclusive alguns dos aderentes àquele texto, concordaram ou promoveram a derrubada – sem causa – de uma Presidenta eleita legitimamente. Tal fato, porém, não reduz a sua importância, como um dos elos de resistência ao Governo Bolsonaro, que é a cabeça política do fascismo emergente, já parcialmente instalado no Estado. A oposição a Bolsonaro – extrema ou moderada – enfraquece a política de alianças do fascismo. Cresce, ainda, a sua importância com a fragmentação do que se convencionou chamar “esquerda” no país, ainda pelos critérios do Século passado, o que dilui a potência da nossa intervenção na conjuntura,
O Manifesto gerou um razoável tensionamento no meio do que se designa, formalmente, como “esquerda”, provavelmente reforçado pela superposição de fatos que afloraram recentemente na conjuntura, embora a sua maior (ou menor) importância só possa ser aferida – positiva ou negativamente – depois da travessia da névoa gerada pelos fatos políticos recentes. Alguns quase previsíveis, outros bizarros – outros ainda em processo de definição – engendrados por relações “por dentro e por fora” do aparelho estatal.
Os precedentes da emergência fascista têm traços comuns nos vários países em que o fascismo foi vencedor, e um deles foi a sua capacidade de absorção – pelo medo e pela violência – de partidos e grupos partidários liberal-democráticos. A relação entre os seus grupos dirigentes orgânicos e as suas esquadras armadas, todavia, pode se dar de formas diferentes. Estas relações sempre se vinculam à criminalidade, na clandestinidade dos poderes políticos instituídos, mas as suas conexões internas, com a organização de um partido que se faz dirigente, tanto se dá pela capacidade deste de compreender e orientar a sociopatia em andamento, como pela natureza das questões sociais que o Estado deve responder, com ou sem uma guerra, que precede a sua presença na cena política.
Assim, o normal é que as esquadras armadas antecipem o “partido” do fascismo, mas estas também podem ser um “produto” informal do partido fascista, em luta para desestabilizar a democracia liberal. A emergência de um fascismo “capanga” do projeto neoliberal, aqui no Brasil, começa com o acordo burguês-midiático pelas reformas e agora se depara com uma catástrofe tão radical como uma Guerra: o Coronavirus universal, que deixará o estado e a sociedade em pedaços.
Em 1921 na Itália, após a gestão do Primeiro Ministro Giolliti – um outro quadro da árvore liberal italiana, Ivanoe Bonomi (1873-1951), assumiu o Governo quando o fascismo ainda não detinha um poder pleno de coerção sobre as massas populares. Nem uma dominação ideológica sólida sobre as massas de excluídos e informais na sociedade em crise. Contudo ele já reinava sobre os desmobilizados da 2a. Guerra e junto às classes médias empobrecidas como uma possibilidade de nova ordem, capaz de responder rapidamente pela força, aos anseios de volta a uma “nova normalidade”, quando a democracia deixasse de ter qualquer apreço popular. É o período em que o fascismo “ainda é uma agregação heterogênea de guerreiros que elegem seu chefe e não (o conjunto) de soldados submetidos a ordens.”
Neste momento, o General Asclepio Gandolfo publica um documento que fala da necessidade de “fundir” – em termos organizativos – os esquadrões paramilitares e as estruturas do Partido Fascista, agora em acelerada organização, para que o Chefe Político e o Chefe Guerreiro “sejam a mesma pessoa”. Bonomi, talvez o FHC italiano, mas com mais coragem, ainda tenta uma reação e seu Governo emite, tardiamente,
uma circular “para os Governadores de Província, na qual equipara o cassetete às armas que exigem licenças e inclui os grupos paramilitares fascistas entre as formações ilegais.”
Sua ordem, porém, é respeitada por 24 horas, pois Michele Bianchi, eleito Secretário Geral do Partido Nacional Fascista, revida e consolida uma linha irredutível de desafio total à ordem jurídica democrático – formal, decretando paralelamente ao estado de Direito que as instâncias do Partido e as esquadras de combate “formavam um conjunto inseparável”. Neste momento, os poderes paralelos dos marginais armados já estão estabelecendo uma outra ordem que revoga, no cotidiano da vida comum, os limites do Estado liberal.
Trata-se do epílogo de um enfraquecimento processual, originário de um cerco político – com violência de rua, assassinatos seletivos, mortandade de camponeses pobres sindicalizados e violência policial seletiva – que corrói o velho Estado. E gera um novo Estado “total”, subsumindo todas as suas instituições – armadas ou não – no âmago de uma nova força coercitiva, regulada exclusivamente pelo Partido que vai chegar ao Governo.
Da minha parte, recebi bem o referido documento liberal-democrático e torço para que apareçam outros tantos vindos do nosso campo da esquerda. Embora reconhecendo os seus limites e a sua timidez, ele não é excludente, nem sectário. A situação de divisão letárgica, em que se encontra boa parte da esquerda, não nos possibilitou – até agora – ter uma voz pública comum com autoridade para tal chamamento.
Penso que o pior é ficar à margem das lutas que somam ou podem somar, com a nossa intervenção, contra o fascismo e o bolsonarismo no poder. Programar para 22 a derrota de Bolsonaro, num país que ele mesmo vem arrasando e deformando a partir do Estado, pode ser uma aposta no caos. E o caos – como se sabe – favorece quem tem as armas à mão. Foi assim na Itália. Foi assim na Alemanha. Foi assim no Chile de Pinochet, que tem aqui no Brasil um preposto experiente para destruir o que nos resta de economia, de solidariedade humana e de instrumentos públicos de coesão social. E então, aí sim, perderemos, por um longo e tenebroso período de trevas.
*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.