Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS*
Na história, e mesmo na política contemporânea, o cumprimento da ética cristã tem estado longe de ser realidade por parte daqueles que se dizem seus adeptos de fé
Introdução
Seguindo as intuições de Giorgio Agamben em Pilatos e Jesus (2013), a narrativa do processo do julgamento de Cristo pode ser lida como um drama de divina tragédia sacrificial. Neste drama seria possível encontrar, via uma interpretação teológico-jurídica, uma situação crítica em que dois mundos estariam diante um do outro: o mundo terreno, do império humano, representado por Pôncio Pilatos; e o mundo eterno, divino, representado por Jesus Cristo, mas numa situação em que nenhum dos dois conseguiria tomar uma decisão sobre o destino do outro: “A insolubilidade implícita no embate entre os dois mundos, e entre Pilatos e Jesus, é atestada nas duas ideias-chave da modernidade: que a história seja um ‘processo’ e que esse processo, enquanto não se concluir em um juízo, esteja em permanente estado de crise” (Agamben, 2013, p. 856).
E desse mistério da Paixão de permanente estado de crise, devido à falta de uma decisão final, de um suposto julgamento firme por Pilatos e Jesus, talvez seja possível encontrar também um conjunto de “simetrias opostas” entre personagens e situações, demarcando, assim, uma série de outras dualidades inversamente simétricas: (i) entre as duas concepções de verdade entre Pilatos e Jesus, sendo uma retórica, verossímil e processual, e a outra sendo eterna, imutável e identificada com a pessoa de Cristo.
(ii) As competências dos processos judaico e romano referentes aos dois crimes que teriam sido cometidos por Cristo, a saber, o de blasfêmia contra Deus e o de lesa-majestade contra César; (iii) os dois atos de lavagem, de um lado, o “lava pés” de seus seguidores por Jesus e, por outro, o “lavar-se” das próprias mãos por Pilatos, quem se pensava no poder de julgar Cristo; (iv) entre as três negações de Jesus, feitas por Pedro, em relação análoga e oposta às três afirmações, feitas por Pilatos, pela inocência de Jesus.
Contudo, proponho, agora, desviar-me dessa leitura misteriosa da narrativa da Paixão, enquanto drama de divina tragédia sacrificial pensada por Giorgio Agamben. Pretendo propor uma outra leitura, uma que tenta tratar a Paixão como uma narrativa que supere, ao menos em alguma medida, a sua dimensão ordinária de ritual de sacrifício, de mito sacralizador. Além disto, também proponho ler aquela interpretação de Giorgio Agamben a partir de outra matriz teórica. Em vez de uma tentativa de hermenêutica teológico-jurídica secularizada, agora proponho uma possível leitura da Paixão de Cristo desde a antropologia de René Girard com sua famosa “teoria mimética”.
Teoria mimética e cristianismo
Revisitando as suas teses publicadas em Coisas ocultas desde a fundação do mundo (1978), no seu texto Teoria mimética e teologia (2001), René Girard propõe uma tese ousada: a de que o cristianismo possui uma tensão com a semântica da palavra “sacrifício” e que por isto a dimensão mítica dos arcaicos rituais de expiação sofreu uma alteração inovadora. Num movimento em que sua antropologia pôde encontrar a teologia cristã e, com isto, direcionando-se a uma postura apologética, René Girard estabeleceu as seguintes teses centrais: (1) “A teoria mimética mostra que o judeo-cristianismo não é um mito”; e (2) que “(…) a divindade do Cristo não pode vincular-se à sacralização do bode expiatório” (Girard, 2011, p. 85; 87).
Mas antes de dar início ao centro da minha argumentação, resta responder à pergunta: O que seria, afinal, a teoria mimética? E por que a Paixão de Cristo não se reduziria a um mito de sacralização de um bode expiatório, como qualquer outro mito arcaico o é, desde ao menos as tragédias gregas como a de Édipo, até inúmeras narrativas sacrificiais em tantas culturas diferentes?
Proponho nesse texto desenvolver uma interpretação de Girard na tentativa de contestar a leitura agambeniana da Paixão como um “drama”, como uma tragédia de bode expiatório na forma de um mistério processual jurídico-político. E antes de se responder a estas perguntas, vale desde já fazer uma ressalva: não se trata, aqui, de se fazer uma defesa do etnocentrismo cristão ou uma defesa de uma suposta superioridade cultural das práticas de um povo, ou de uma cultura, sobre outras.
Pretendo partir de René Girard para ler a narrativa da Paixão como um chamado para se resistir contra a máquina da violência mimética. Minha intenção é fazer um chamado às minorias resistentes contra a maioria acusadora, produtora de bodes expiatórios de seus próprios crimes para apaziguar seus próprios conflitos internos.
Sobre isso, René Girard dizia que “as comunidades judaica e cristã não resistem melhor, em conjunto, aos contágios que as comunidades míticas. Só pequenas minorias resistem. Em vez de unânime como nos mitos, a reunião contra as vítimas é somente majoritária. Se a submissão ao mimetismo violento não continuasse a prevalecer, e muito, sobre a resistência, não haveria bode expiatório”.
Assim, entendo que René Girard estava muito mais falando sobre como a ética judaico-cristã propõe uma outra noção de como se lidar com a violência. Isto não significa, contudo, como sabemos, que tal ética inovadora contra o chamado “mundo pagão” tenha sido cumprida historicamente pelos próprios cristãos.
Na história, e mesmo na política contemporânea, o cumprimento da ética cristã tem estado longe de ser realidade por parte daqueles que se dizem seus adeptos de fé, bastando citar, por enquanto, as barbáries do colonialismo e da escravidão negra no Brasil – país oficialmente cristão até pelo menos o fim do século XIX –, sem contar a adesão cega de boa parte dos cristãos às teses teológicas misóginas, homotransfóbicas e muitas vezes incorrendo em racismo religioso contra as religiões de matriz africana.
Feita essa ressalva, e considerando que, de fato, houve um giro na antropologia de René Girard ao cristianismo, meu propósito, aqui, repito, é o de mostrar a tese de René Girard e tentar contrapô-la à leitura de Agamben sobre a Paixão como um drama processual sem tomada de decisão definitiva, para que, talvez, possa-se, a partir disto, render alguma leitura outra da Paixão de Cristo, mas a partir da dialética entre eles.
Contra o mecanismo do bode expiatório – a renúncia da disputa e do desejo
Em resumo, René Girard entende que o desejo humano não é natural. Segundo Girard, nossos desejos sobre um objeto desejado são sempre imitações dos desejos alheios. E esta pessoa a quem imitamos passa a ser nosso “modelo mimético”. Eventualmente, devido à escassez de objetos de desejo, podemos entrar em conflito com quem deseja as mesmas coisas, abstratas e concretas. Como explica João Cezar de Castro Rocha: “A intuição inicial da teoria mimética diz respeito à natureza triangular do desejo humano. Isto é, não desejamos a partir de nós mesmos. Pelo contrário, aprendemos a desejar através dos olhos de modelos que consciente ou inconscientemente adotamos” (Rocha, 2011, 172).
Desse modo, a rivalidade entre os desejantes, os quais se imitam, poderia gerar um conflito violento. E esta seria uma violência contagiosa, como a imitação também o é, pois sempre que o modelo de desejo estiver mais próximo de nossos objetos desejados, saindo-se de sua mera intermediação virtual, o conflito se tornaria inevitável e escalonado. Disto, pode-se resultar num grande conflito social, comunitário, tornando o convívio insuportável entre os sujeitos de desejo e os seus “mediadores” mimetizados. Então, como se resolveria comumente este estado permanente de violência?
Para René Girard, não seria incomum na história humana que essa maioria de pessoas em conflito se concentrasse sobre alguém ou sobre um determinado grupo de pessoas, impondo-se a elas uma culpa pela disputa mimética, tornando-os, enfim, um tipo de “bode expiatório”. Na obra de mesmo nome, O bode expiatório (1982), René Girard discorre sobre como é o “mecanismo persecutório” o modo pelo qual “a angústia e as frustrações coletivas encontram uma satisfação vicária sobre vítimas que facilmente provocam a união contra elas, em virtude de sua pertença a minorias mal integradas, etc.” (Girard, 2018, p. 816). E um conhecido exemplo disso pode estar no mito de Édipo, que, segundo Girard, trata-se do “primeiro estereótipo persecutório” (Girard, 2018, p. 488).
Assolada por uma epidemia, o oráculo da cidade grega de Tebas afirma que seria necessário expulsar um abominável criminoso, presente entre os tebanos. Como sabemos, Édipo é o tal criminoso, o aparente estrangeiro que depois descobre o que sempre soubera: ele, Édipo, é o príncipe que matou seu próprio pai e que se casou com sua própria mãe, tornando-se rei, irmão e pai, ao mesmo tempo, de seus próprios filhos. E, após um processo liderado por ele mesmo, Édipo, ao “descobrir” sua culpa, é expulso de Tebas, com seus olhos perfurados.
Sendo assim, como bode expiatório, por que Édipo seria diferente de Jesus? Por que a tragédia de Édipo seria diferente do drama da Paixão de Cristo, quando ambos aparentemente serviram como “bode expiatório” para suas comunidades? Para René Girard, diferentemente do que pensava no início da construção de sua teoria mimética, há sim muitas semelhanças entre os modelos de sacrifício dos mitos arcaicos em relação à Paixão de Cristo.
Mas, conforme o antropólogo argumenta, seriam estas semelhanças aquelas pelas quais se trilharia o caminho para a distinção fundamental entre Édipo e Jesus: “Os mitos são um reflexo passivo, e o judeo-cristianismo, a revelação ativa da mesma máquina coletiva de fabricar bodes expiatórios, a multidão mimética e violenta” (Girard, 2011, p. 85).
Assim, resta saber: Como essa revelação ativa se daria? Segundo René Girard, “Cristo não pode vincular-se à sacralização do bode expiatório”, pois, enquanto, por um lado, o sacrifício nas religiões arcaicas “é um esforço por renovar os efeitos reconciliatórios da violência unânime substituindo o bode expiatório inicial por uma vítima substituta”, por outro, o sacrifício do Cordeiro de Deus “é para pôr fim a ele ao modo como a teoria mimética permite” (Girard, 2011, p. 87).
Dessa oposição, o próprio René Girard encontra uma outra simetria oposta, a qual seria aquela entre “a violência das origens humanas e o esquema da redenção cristã” (Girard, 2011, p. 94). Para ser mais simples, o que o antropólogo franco-americano propôs é a hipótese de que Cristo é o “sacrifício” que colocaria fim a todo sacrifício, a todo mecanismo persecutório de “bode expiatório”.
De acordo com René Girard, “Jesus propõe aos homens para escaparem da violência. Ele os convida a cortar pela raiz as rivalidades miméticas. Cada vez que o próximo nos confrontar com exigências excessivas, ou que nos pareçam tais, em vez de pagar na mesma moeda, é preciso evitar desencadear a escalada de violência que conduz direto aos bodes expiatórios” (Girard, 2011, p. 89).
Em outros termos, René Girard nos diz que o judeo-cristianismo convida as pessoas a encerrarem as disputas geradas pela aproximação entre os rivais que se imitam em seus desejos por um mesmo objeto desejado. O imperativo ético, aqui, é o de se “deixar para o rival potencial o objeto do litígio” (Girard, 2011, p. 89). E isto é possível por uma outra postura mimética: em vez de se imitar o desejo alheio pelo mesmo objeto, o que se geraria eventualmente conflito, imita-se a postura de Cristo em relação a este mesmo desejo, renunciando-se a disputa, sacrificando-se. Como diz René Girard: “Em vez de ser ele mesmo outro bode expiatório sacralizado, Cristo se torna bode expiatório para dessacralizar os que vieram antes dele, impedindo que os que vierem depois sejam sacralizados” (Girard, 2011, p. 94).
Para se explicar de modo melhor esta outra concepção proposta acerca do sacrifício, René Girard recorre a um outro exemplo bíblico, mas, agora, do Antigo Testamento, sobre o caso de um outro processo: o julgamento de Salomão (1 Reis 3:16-28). Diante da disputa de duas mulheres sobre a maternidade de uma criança, o rei Salomão propõe um “sacrifício sangrento”: corta-se o bebê ao meio com uma espada, para que cada mulher fique com uma metade.
Diante da “sábia” decisão de Salomão, para evitar a morte da criança que seria sacrificada, uma das mulheres cede o bebê à outra, sacrificando a si mesma, sacrificando a sua própria maternidade: “Ela renuncia ao objeto da rivalidade. Faz, assim, o que Cristo recomenda, leva a renúncia tão longe quanto possível, porque renuncia ao que uma mãe tem de mais caro, seu próprio filho. Assim como Cristo morre para que a humanidade emerja dos sacrifícios violentos” (Girard, 2011, p. 91).
Com René Girard, chego ao fim desse exercício interpretativo, encontrando a quinta e última simetria oposta: entre o processo de Jesus e aquele processo da mãe que se sacrifica para evitar o “sacrifício sangrento” de seu pretenso filho. Nesta simetria oposta Salomão é o inverso oposto de Pilatos: em comum, há um julgador que apresenta as partes à decisão jurídica, mas, em vez de colocar as partes em disputa, e colocar o objeto disputado em sacrifício.
Pilatos, por sua vez, sem a devida sabedoria salomônica, tendo consigo, no máximo, a retórica e a deliberação jurisprudencial romanas, coloca o Filho de Deus e o “bandido” Barrabás em sacrifício, a serem disputados pela multidão sedenta por sangue, unida pela procura de um bode expiatório a fim de apaziguar seus conflitos miméticos internos.
Contudo, minha hipótese é a de que, no caso da Paixão de Cristo, contrariando a leitura de Giorgio Agamben sobre o processo de Jesus – mas, ao mesmo tempo, partindo de alguns de seus pressupostos-chave – defendo que, sim, há uma decisão: a decisão do próprio Cristo, quem age sem se defender, age sem agir, por meio da pura potencialidade de não fazer, entregando a si mesmo ao sacrifício, cumprindo o seu destino, num paradoxo insolúvel entre sua liberdade como homem, enquanto sendo, de um lado, aquele quem poderia aceitar a intenção inicial de Pilatos em libertá-lo, e, de outro lado, enquanto sendo aquele quem não poderia ser libertado pelo pagão romano, pois foi predestinado a ser o Messias, aquele quem seria morto e ressuscitado, realizando, assim, a profecia (Isaías 53:7).
Enfim, essa decisão de Jesus por se entregar ao sacrifício não serviria para somente apaziguar a violência mimética da multidão, e, sim, para servir de modelo, de exemplo, de “paradigma”que diz às pessoas se recusarem de modo ativo diante da rivalidade mimética, dizendo à violência, à ordem genocida, ao escárnio público, contra os escândalos que se renovam de tempos em tempos na vida cotidiana, aquilo que o protagonista do conto Bartleby: o escrivão (1853), de Herman Melville, sempre repete, de modo anárquico, quando uma ordem lhe é dada: “Eu preferia não” (Melville, 2015, p. 82).
*Ricardo Evandro S. Martin é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Pilatos e Jesus. Boitempo: São Paulo, 2013.
GIRARD, René. Teoria mimética e teologia. In: GIRARD, René. Aquele por quem o escândalo vem. São Paulo: É Realizações, 2011.
GIRARD, René. Bode Expiatório. São Paulo: Paulus, 2018.
MELVILLE, Herman. Bartleby: o escrivão. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
ROCHA, João Cesar. Teoria Mimética e vulnerabilidade do sujeito – Ou: René Girard, Sigmund Freud e Oswald de Andrade. In: Philia&Filia, Porto Alegre, vol. 02, n° 1, jan./jun. 2011 O Mal-Estar na Cultura e nas Artes. Disponível em: neste link
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