Oportunidades perdidas?

Imagem: Magali Magalhães
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Por JEAN MARC VON DER WEID*

O papel das Forças Armadas nas tentativas de golpe desde o governo de Jair Bolsonaro

O que revelam as investigações em curso?

Os fatos, até agora apenas parte do que dispõe a Polícia Federal e o ministro Alexandre de Morais, vão apontando na direção da culpa formada de Jair Bolsonaro em um sem-número de crimes, sendo o mais importante o de atentar contra a ordem democrática. Embora com menos precisões e detalhes, vem transparecendo na mídia o envolvimento de oficiais das três armas e em diferentes escalões, de tenentes a generais, numa sucessão de eventos que configuram um clássico complô golpista que antecede e culmina com a intentona de 8 de janeiro.

Ainda não veio à luz o conteúdo da delação premiada do coronel Mauro Cid, mas algumas notícias filtradas em blogs, colunas e analistas das TVs, permitem supor que não só Jair Bolsonaro, mas todo o time dos generais do Palácio (Braga Neto, Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos) e vários membros do Alto Comando do Exército estiveram implicados nas manobras para desmoralizar as urnas eleitorais, no apoio aos manifestantes golpistas acampados na porta de dezenas de quartéis, nos eventos do dia 8 de janeiro e em intensas articulações conspiratórias visando várias alternativas de golpe.

Inquéritos da Polícia Civil do DF, investigando a ação da PM, também enquadraram o comandante militar do Planalto. Diálogos para lá de explícitos entre o general Dutra de Meneses e o comandante da PM, assistidos pelo ministro da Justiça, mostram quão perto estivemos de um enfrentamento armado, inclusive com a ameaça do uso da força de tanques. Toda esta truculência  tinha como propósito proteger os militantes golpistas, refugiados à sombra dos canhões depois de terem destruído os palácios da Praça dos Três Poderes.

A virulência dos comandantes da tropa do exército neste enfrentamento verbal parece encontrar explicação no fato, apontado por vários jornalistas, de que militares da reserva e familiares de militares da ativa e da reserva estavam no acampamento e seriam presos se a PM cumprisse as ordens recebidas. O ministro Flávio Dino vai ter que se explicar o acordo que ele endossou, adiando as prisões para a manhã seguinte, com o recuo da PM por 12 horas. Foi o tempo para os generais retirarem pessoas próximas, inclusive, segundo algumas fontes, a esposa do general Villas Bôas, colocando-as a salvo de prisões imediatas.

Se estes fatos são verídicos, o número de generais a ser indiciado e investigado vai num crescendo. Os filmes das mais de 200 câmaras instaladas dentro e fora dos palácios não podem ter deixado de revelar a presença de outros oficiais nos atos golpistas, sobretudo da reserva, mas até agora não foi filtrada nenhuma notícia sobre estes possíveis participantes. A PF está segurando informação ou preservando os implicados vinculados às Forças Armadas?

Por outro lado, não é nada difícil acessar as redes sociais de boa parte da oficialidade que ignorou o princípio da não manifestação política quando na ativa e postou barbaridades antidemocráticas a torto e a direito ao longo destes terríveis quatro anos. Tive acesso indireto a umas quantas mensagens de grupos de amigos e parentes militares e parecia que estava assistindo debates de um partido político revolucionário (só que à direita) sobre a tomada do poder. Se o que vi é uma amostra representativa, o “partido militar” está mais do que formado e só faltaria achar um nome de batismo. Uma investigação minimamente séria provocaria uma hecatombe de punições disciplinares, no mínimo, podendo até ir parar nas mãos do Xandão e dos carcereiros da Papuda.

Enquanto isso, a Procuradoria Militar não encontrou indícios de “mau comportamento” de qualquer oficial, a não ser um coronel da reserva que proferiu impropérios contra os generais do Alto Comando por não terem tomado a iniciativa de dar o golpe.

Não foram poucas as pesquisas de opinião nos últimos anos, veiculadas aqui e ali na imprensa, indicando o amplo predomínio do bolsonarismo nas três forças, mas sem que se possa estratificar os percentuais de acordo com as patentes. Entretanto, como revelou uma gravação entre o coronel Mauro Cid e um seu correligionário ou cúmplice: “dos comandos de divisão para baixo, todos esperam uma ordem de marcha”, ou outra frase com o mesmo sentido.

Para concluir: embora falte muita informação ainda mantida sob reserva pelo STF e pela PF tudo indica que há um considerável número de oficiais de todas as patentes envolvidos em atividades antidemocráticas, com variados graus de comprometimento, desde conclamações pelas redes sociais até a proteção dos golpistas na frente dos quartéis. Tudo isto é coerente com o histórico das nossas Forças Armadas, em particular no período de redemocratização, quando a alta oficialidade não deixou de pressionar as autoridades civis em vários momentos, ao mesmo tempo que afrontava a democracia abertamente, comemorando o golpe de abril de 1964 com ordens do dia laudatórias, ano após ano.

Como estão se posicionando as Forças Armadas, o judiciário e o executivo?

O comandante em chefe do Exército, general Tomás Ribeiro Paiva, nomeado por Lula após o 8 de janeiro, adotou uma postura de maior rigor nas exigências do cumprimento do preceito disciplinar que impede as manifestações políticas dos militares da ativa, mas ainda não vi nenhuma avaliação sobre o conteúdo das comunicações posteriores nas redes sociais. Durante o período do governo de Jair Bolsonaro tornou-se comum o compartilhamento de informações, com alta circulação de fake news disseminadas pelo “gabinete do ódio”.

Aparentemente houve um recuo generalizado entre os oficiais, muitos deles formados nos cursos virtuais do “filósofo” Olavo de Carvalho, com muitos perfis fechados e outros transformados em sites politicamente anódinos no facebook, mas não é controlável o que rola em grupos de WhatsApp. O general Tomás Ribeiro Paiva chamou para si o monopólio das manifestações do Exército e as manteve voltadas para temas profissionais. Quanto aos oficiais da reserva, eles continuam se manifestando agressivamente, quer em seus canais nas redes quer através do Clube Militar. A imprensa adotou a posição de ignorar estas manifestações, quem sabe para não dar visibilidade a provocações.

Embora de forma bastante discreta, o comandante do exército tem buscado contatos com o judiciário, dentro de uma estratégia de “separar o joio do trigo”, isto é, defendendo que sejam investigados e julgados oficiais comprometidos com os atos golpistas, mas circunscrevendo as responsabilidades aos momentos mais graves dos desafios à democracia, ou seja, a intentona de 8 de janeiro.

Como já foi dito antes, não há ações do Ministério Público Militar responsabilizando os ativistas que bancaram o apoio aos acampamentos nas portas dos quartéis, mesmo os que foram mais desafiadores como os que abrigaram os golpistas do 8 de janeiro, em Brasília. Parece que se busca jogar aos leões (leia-se Alexandre de Morais e PF) o ex-presidente Jair Bolsonaro, o coronel Mauro Cid e algum outro auxiliar direto de Jair Bolsonaro, limitando a limpeza ao máximo. O princípio defendido em público é o de respeito pelo judiciário e a aceitação do enquadramento de qualquer oficial comprometido, enquanto se pressiona nos bastidores pela minimização das investigações.

Resta saber como vão se comportar os altos mandos das três armas e a oficialidade em geral se as investigações em curso forem se ampliando para implicar outros generais, como os três palacianos e o ex-comandante do exército, general Julio Cezar Arruda e o comandante militar do Planalto, general Dutra de Menezes, além de outros oficiais menos graduados.

A agressividade golpista foi contida e o bolsonarismo está na defensiva na oficialidade. No entanto, seria muita ingenuidade supor que depois de flertarem com um golpe de Estado esta ampla maioria bolsonarista da oficialidade vai enfiar a viola no saco e voltar-se para seus afazeres profissionais. Nunca é demais lembrar que estivemos muito perto de um desfecho sinistro no  8 de janeiro ou mesmo antes disso. Como já expus em outros artigos, faltou aos golpistas o elemento central do comando centralizado para que as tropas fossem para as ruas e estradas.

Quando a maioria do Alto Comando do Exército se posicionou contra o golpe, a única hipótese da intentona seguir adiante seria uma convocação de Bolsonaro por cima das cabeças de seus generais de quatro estrelas, apelando para uma intervenção “dos generais de divisão para baixo”. Mesmo nesse caso, as condições seriam muito mais difíceis pois seria necessário que algum general de divisão tomasse a iniciativa de romper a cadeia de comando e isto, em uma organização militar, não é coisa fácil.

Lembremos que em 1964, com todo o Alto Comando na jogada houve um momento de vacilação e foi preciso que um general de brigada, Olímpio Mourão, quebrasse o impasse colocando suas tropas na estrada Juiz de Fora/Rio de Janeiro. O resto veio por adesão com os comandantes de exército correndo atrás da iniciativa para não perder a autoridade. Lembremos também que, em 1961, bastou que um comandante de exército, o do terceiro, da região sul, se colocasse frontalmente contra o golpe para paralisar o movimento.

Com comando unificado os oficiais vacilam em entrar em bolas divididas; sem ele fica mais difícil ainda tomar a iniciativa, por medo de agir sem ser seguido. O Mourão de 64 era um conhecido impulsivo, mas agiu com o apoio do poder civil em Minas Gerais, o governador Magalhães Pinto e amplo apoio das classes dominantes e da grande imprensa. No caso atual, sem a convocação de Jair Bolsonaro e sem um Hamilton Mourão para quebrar a cadeia hierárquica o resultado foi a paralisia. A última tentativa foi a insinuação da decretação de uma GLO que daria poder legal de controle do espaço brasiliense pelo comando militar do Planalto. Quando Lula recusou a proposta de seu próprio ministro da Defesa, que o tornaria refém dos generais, o blefe foi encarado e ninguém se mexeu.

Oportunidades perdidas?

Preocupa saber que, limpado o meio de campo dos casos mais graves, a ampla gama de militares que foram ativistas políticos e que conspiraram contra a democracia, vai ficar intocada, ocupando postos estratégicos e esperando o momento de retomar a ofensiva. É preciso ter muito claro que o status quo militar não é de tranquilidade e de respeito pelo poder civil e as instituições da República. Temos uma massa de oficiais ressentidos com o desastre da perda das eleições, a covardia de seu líder e a derrota do seu plano de permanência no poder. Não é um quadro fácil de ser enfrentado, mas vai ser preciso fazê-lo.

Muita coisa vai depender do grau de radicalidade do judiciário na busca pela punição ao golpismo. Até agora, o STF, em particular o ministro Alexandre de Morais, segue firme no aprofundamento das investigações, muito embora continue bastante opaca a parte dos inquéritos que toca a responsabilização da oficialidade das Forças Armadas ou a dos financiadores da máquina golpista. Se o poder judiciário for fundo na limpeza, o desmonte da máquina golpista poderá reduzir os riscos futuros e, sobretudo, abrir espaço para um debate na sociedade e nas próprias Forças Armadas sobre o seu papel no Brasil do século XXI, pós fim da guerra fria. Afastar os elementos mais comprometidos e ameaçadores na oficialidade vai dar uma lição que os outros vão compreender, mesmo que suas convicções continuem, no íntimo, simpáticas a um golpismo.

E qual o papel do poder executivo neste quadro altamente arriscado para a democracia? O executivo não tem, aparentemente, o que fazer neste momento, já que a bola está com o judiciário. Mas temos que lembrar que o presidente é o comandante em chefe das Forças Armadas e que a oficialidade lhe deve obediência hierárquica. Este poder começa com o do Ministro da Defesa, que tem a caneta das promoções na mão, com o respaldo do presidente. Jair Bolsonaro usou este poder para nomear um ministro de seu agrado e para afastar comandantes que não o eram.

Para fazer o mesmo, Lula vai ter que mapear os posicionamentos dos oficiais na cadeia hierárquica para selecionar os menos comprometidos para assumirem posições estratégicas. Não vai ser fácil pelo grau de adesão dos oficiais ao golpismo, mas certamente sempre é possível identificar os mais ameaçadores e os mais profissionais. Para isso, ele tem que ter do seu lado um ministro que tenha habilidade e pulso firme e não o atual, verdadeiro cúmplice do golpismo.

O que não dá para fazer é tentar adoçar a boca dos raivosos candidatos frustrados a golpistas com benesses, aumentos de salários, altos orçamentos para compras de armamentos e outros gestos que não deixarão de ser interpretados pelos destinatários senão pelo que eles são: uma manifestação de temor pelo que eles poderiam ter feito e pelo que poderão fazer.

O presidente Lula está mais preocupado em governar de forma a promover o desenvolvimento e ampliar a inclusão social, a oferta de empregos e o aumento dos salários e da renda dos mais pobres. É, sem dúvida, a principal prioridade do governo. Mas não enfrentar a ameaça institucional de uma oficialidade que andou à beira da insurreição e carregada de uma ideologia de ultradireita, é um suicídio político e um risco permanente contra os seus projetos de governo.

Até agora, o comportamento do governo Lula tem sido, também neste tema, um repeteco do passado. A nomeação de José Múcio para ministro da Defesa, em nome de suas “boas relações com os militares” indicou a intenção de fazer quantas concessões fossem necessárias para “tranqulizar a tropa”. Na efervecescência do processo golpista em andamento, José Múcio fez declarações simpáticas aos acampados nas portas dos quartéis, inclusive dizendo ter amigos e parentes entre estes últimos.

Quando ocorreu a provocação máxima do movimento golpista em 8 de janeiro, José Múcio levou a Lula a proposta do comandante do Exército de decretar uma GLO. Esta GLO era o que se pode chamar de “programa mínimo” do golpismo. Não afastaria o Lula, anularia as eleições, fecharia o STF e o Congresso, os elementos chave do “programa máximo” do golpismo. A GLO seria uma saída honrosa para os generais do Alto Comando, buscando mais poder de barganha com o governo Lula e evitando a ruptura da ordem democrática. Lula, sabiamente, recusou esta hipótese, que o deixaria em um incômodo e perigoso condomínio com um bando armado. E, sobretudo, deixaria o exército em condições ideais para intervir, se o quadro favorável se apresentasse no futuro.

A decisão de Lula e a não reação da generalada à sua recusa foi decisiva, mas foi logo enfraquecida pela decisão seguinte, a de não demitir os generais que ameaçaram o ministro da Justiça, o interventor na segurança pública do DF e o comandante da PM do DF quando tentaram prender os golpistas abrigados à sombra do quartel general do Exército.

Na queda de braço entre a autoridade civil e a militar preponderou esta última e uma oportunidade de ouro de dar uma demonstração de força foi perdida. Foi preciso que o comandante do Exército se recusasse a reverter a nomeação do Coronel Mauro Cid para uma brigada estratégica em posição chave para atacar o poder executivo para Lula decidir afastá-lo, mais uma vez, em posição contrária ao seu ministro da Defesa.

Com a sucessão de meias medidas, avanços e recuos do executivo foi um golpe de sorte que o primeiro general na lista de promoções para o comando do Exército era mais para profissional do que para bolsonarista, muito embora haja quem diga que o atual comandante foi um aderente do ex-presidente até a undécima hora, ou seja, até a decisão do Alto Comando contrária ao golpe. Daí para frente ele foi ficando cada vez mais enérgico em suas delarações pelo respeito à hierarquia e às instituições. Uma análise mais política apontaria para uma postura que convidava a simpatia do novo governo. Se foi o caso o general Paiva mostrou-se um bom político ao, formalmente, se afastar da politização das Forças Armadas.

A permanência de José Múcio no ministério da Defesa continua sendo um indicativo de que este governo quer conciliar, transar, transigir, aplacar, agradar ou qualquer outro verbo que indique a realidade de uma posição acuada frente aos militares.

A oportunidade perdida talvez nunca mais volte. Os militares estão na defensiva e vulneráveis juridicamente. Politicamente estão derrotados e mal vistos pela opinião pública. A sucessão de escândalos de militares acusados de envolvimento em corrupção dá munição para mantê-los na defensiva. É neste momento de fraqueza do bolsonarismo que o governo deveria tomar a iniciativa de, sem alarde, cumprir a sua parte no desmonte do golpísmo: afastar os generais mais comprometidos e promover os oficiais que se mostraram mais profissionais nestes tempos conturbados.

Para isso Lula vai ter que começar por trocar este ministro da Defesa, que adotou o papel, literalmente, da defesa … dos golpistas. Por outro lado, o governo deveria criar, no ministério da Defesa, mas não restrito aos militares, um grupo de trabalho para discutir o papel desejável das Forças Armadas na conjuntura mundial, regional e nacional. Sem isolar o mais possível a oficialidade golpista e sem colocar o debate sobre o lugar e papel das Forças Armadas na sociaidade e no Estado brasileiros, o nó que nos amarra desde a proclamação da República não vai ser desatado e estaremos sempre à sombra das ameaças dos fardados.

*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).


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