Por Marco Aurélio de Carvalho*
Os chats privados sobre os bastidores da operação Lava Jato, conduzida pelo ex-juiz Sergio Moro, trincaram a reputação de agentes públicos que boa parte do Brasil aprendeu a admirar. No emaranhado das conversas há deliberações que chocam e causam espanto.
As matérias estão sendo produzidas a partir de volumoso e inédito arquivo que inclui mensagens privadas, gravações em áudio, vídeos, fotos e até documentos oficiais. Foram enviadas para o The Intercept Brasil por uma fonte anônima. No conteúdo já publicado, tramas e articulações revelam abordagem altamente politizada e tropeços na legalidade, “comportamentos antiéticos e transgressões que o Brasil e o mundo têm o direito de conhecer”, como explica o site.
O que interessa esmiuçar rapidamente, do ponto de vista do Direito, são os fundamentos para a controvérsia em curso. A divulgação das conversas, mesmo obtida por meios ilegais, deve acarretar penalização para quem divulgou? As confidências têm validade jurídica?
A ação jornalística do The Intercept Brasil trouxe para o cenário atual o grampo telefônico que capturou diálogos entre a então presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula. Naquele contexto, o juiz Sérgio Moro justificou-se sob o argumento de que nem mesmo a Presidência da República “tem privilégio absoluto” para proteger suas conversas.
Outro episódio do passado, inclusive citado pelo próprio juiz Moro, foi o caso Watergate (1969-1974), quando Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos, não pôde impedir que conversas entre ele, seus assessores e ministros, gravadas e mantidas na Casa Branca, fossem divulgadas. Em uma delas, Nixon atua para que o FBI (polícia federal norte-americana) não prosseguisse no caso, o que significou obstrução do trabalho da Justiça e foi um passo decisivo para sua renúncia.
No caso de Lula e Dilma, episódio evidentemente distinto do escândalo Watergate, Moro afirmou que “não cabe ao Poder Judiciário ser guardião dos segredos sombrios dos nossos governantes”. O então juiz acrescentou, na justificativa, que os governados devem saber o que fazem os governantes, “mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras”. A ideia central de Moro é irretocável: cultivar, incessantemente, o “saudável escrutínio público sobre a atuação da Administração Pública e da própria Justiça criminal”.
O exemplo dos áudios vazados de Dilma e Lula, requer informações adicionais. Ao analisar o caso, o Ministro Teori Zavascki determinou a “nulidade do conteúdo das conversas colhidas” e expressou posicionamento frontalmente contrário à ação midiática e à “espetacularização” pela chamada “república de Curitiba”. A Constituição, apontou Zavascki, foi violada porque permite a interceptação das comunicações pessoais apenas em caso de obtenção de prova para investigação ou processo criminal. Como relator, assim escreveu o Ministro do STF: “a decisão de divulgar as conversas da Presidenta – ainda que encontradas fortuitamente na interceptação – não poderia ter sido prolatada em primeiro grau de jurisdição, por vício de incompetência absoluta; a comunicação envolvendo a Presidenta da República é uma questão de segurança nacional (Lei n. 7.170/83), e as prerrogativas de seu cargo estão protegidas pela Constituição”.
O ponto de convergência nestes acontecimentos com combustíveis de alta octanagem sobre a atmosfera pública acaba sendo a imprensa. Mensageiros de más notícias incomodam mais do que a própria notícia e os atingidos procuram adotar providências contra os jornalistas ou órgãos de imprensa. Tarefa inútil, visto que não existe qualquer embasamento para atribuir crime no ato de divulgação. A Constituição assegura a plena liberdade de imprensa e o sigilo de preservação da fonte. Além disso, no exercício do ofício, o jornalista é pautado pelo dever do Estado em prestar contas e pelo direito social à informação.
A liberdade de imprensa sofre ataques, sobretudo, em situações nas quais o jornalismo usa conteúdos sigilosos – geralmente entregues por alguém que participa, rompe o segredo e vaza informações – para dar conhecimento ao publico da existência de atos que a sociedade desaprova.
Curiosamente, vazamentos sobre acusados, ainda sob investigação ou em processo judicial, são provenientes de agentes do Estado. Contudo, há uma notória diferença. Quando as autoridades não observam os limites constitucionais – na divulgação, na obtenção de provas – há flagrante ilegalidade. Por sua vez, ao divulgar para a sociedade gravações, documentos ou conversas de autoridades, o jornalista está simplesmente exercendo seu ofício. A ilegalidade de quem quer que seja, mesmo daqueles que atuam representando o Poder Público, não contamina o exercício da profissão pelo jornalista.
Viveremos nas próximas semanas decisões cruciais para nossa democracia. As questões jurídicas aqui são complexas e por mais controvérsias e incidentes sobre a matéria, os direitos fundamentais dos cidadãos e dos jornalistas exercerem livremente sua profissão precisam ser fortalecidos. Calar a imprensa é amordaçar a democracia.
Ao explicar a linha editorial adotada para examinar o vasto material, retirando conteúdos inadequados e conversas que poderiam infringir o direito à privacidade, The Intercept Brasil resume de forma admirável o trabalho: “empregamos o padrão usado por jornalistas em democracias ao redor do mundo: as informações que revelam transgressões ou engodos por parte dos poderosos devem ser noticiadas”.
Nada a acrescentar!
*Marco Aurélio de Carvalho, advogado, especializado em Direito Público é sócio fundador da Associação Brasileira de Juristas para a Democracia (ABJD)