Por TARSO GENRO*
Lumumba, Martin Luther King e Mandela, e o sonho brasileiro por democracia política, respeito aos direitos humanos e proteção social imediata contra o genocídio
O homem sonhou que estava ajudando a construir uma ponte que nascia do lugar mais agudo de uma rocha projetada sobre um abismo. No fundo do abismo, o Inferno descrito por Dante Alighieri: dor, tortura, morte, calor incandescente, estupros, violações, lamentações de fome e de afetos, deserções da condição humana promovidas pelos feitores de escravos, como carrascos credenciados pelo diabo.
Eis que alguém – um homem negro coberto por uma capa colorida – se aproxima dentro do sonho do homem que sonhava e fala com uma voz pausada: “presta atenção nos alicerces desta imensa ponte de madeira madura, mas sobretudo descobres o momento em que ela esteja mais vergada sobre o abismo, sem se romper, e daí meça a distância até o outro lado, pois ali estará o ponto de equilíbrio, para que o sentido e o destino providencial da ponte seja alcançado pelo teu desejo”.
O homem que sonhou olha para o visitante – que sorri – e lhe pergunta: “quem és?, pois suponho que não apareceste do nada da história, pois te identifico com as feições negras de Lumumba, Martin Luther King e Mandela, que só a simetria das palavras pode compor, numa sinfonia do marxismo melancólico de Walter Benjamin…”. O homem que apareceu no sonho, do outro homem que sonhou, vira as costas para partir e subitamente retorna para finalizar: “eu não sou ninguém, sou apenas uma metáfora da história presente, que cuida para que as pontes para o futuro não sejam apenas mais uma ponte para o inferno.” O que sonhou ficou pensando numa frase de Benjamim: “Quem está em jejum fala do sonho como se estivesse dentro do sonho”.
Lumumba, Martin Luther King e Mandela são os homens-metáfora do século passado. Lumumba assassinado covardemente pelos imperialistas belgas, que cortavam os braços das crianças negras cujos pais tinham baixa produtividade nas plantações de chá do Rei Leopoldo, o Hitler do colonialismo clássico; Martin Luther King assassinado pelos predecessores do fascismo de Donad Trump, no curso das campanhas racistas e violentas dos supremacistas brancos, da Klan e da John Birch Society; Mandela, o homem que começou a governar de dentro do cárcere e disse que não mandaria cessar a luta armada, antes que todos os lutadores anti-apharteid fossem livres e soltos para compor, no futuro imediato, um governo de maioria negra na África do Sul. Estes homens e mulheres do século passado e de outras épocas, como Rosa de Luxemburgo, Rigoberta Menchú, Anita Garibaldi, Antonieta de Barros, Dandara, Carolina de Jesus, Tereza de Benguela, estão presentes em cada gesto dos três líderes do sonho, na fala do visitante improvável.
No momento em que a luta dos partidos da esquerda e dos democráticos não fascistas, dos movimento sociais e da intelectualidade democrática, conseguiram sensibilizar os estratos empresariais mais diversos, a Rede Globo e várias instituições e lideranças representativas da burocracia estatal – para comporem uma ampla frente de defesa da democracia, do respeito aos resultados da eleição e da defesa das urnas eletrônicas (muitos destes inclusive coniventes com o suicídio democrático do país ao ajudarem eleger Bolsonaro) – devemos celebrar e construir esta ponte verdadeira para o futuro.
Ela quer dizer muito: ou temos democracia política, respeito aos direitos humanos e proteção social imediata contra o genocídio, também pela fome que se avizinha, ou o país vai para o caos: a anomia pervertida do fascismo e a morte nas portas do inferno que este sempre representou ainda estão às nossas portas.
O nosso sonho está próximo dos três cavaleiros das liberdades já referidos e das utopias das mulheres e homens que construíram as ideias da igualdade e da dignidade humana, mas não nos é indiferente que boa parte da elite brasileira reconheça que é melhor obter lucros dentro da democracia, afastando a besta do fascismo e da loucura bolsonárica, que muitos deles pariram, do que ficar apenas com os sonhos sem democracia e sem condições para salvar vidas, salvar instituições, afirmar os sonhos possíveis, tornando-os reais e rompendo com o jejum dos desejos sem futuro.
Pertencemos, a maioria de nós – respeitando as diferenças imprimidas por sonhos diferentes – ao campo que defende que Lula é o que está sonhando , como nós, perto daquela ponte metafórica, que pode se tornar vívida com uma grande vitória no primeiro turno, pela qual o Brasil se reunifica em torno das liberdades públicas e da decência governamental.
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).