Paradoxo da meritocracia

Imagem: Vlad Chețan
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Por LEONARDO SACRAMENTO*

A meritocracia não existe para o próprio liberalismo

O que é meritocracia? Excluamos todas as variáveis relativas à meritocracia e busquemos entendê-la somente por meio da compreensão liberal do esforço. Portanto, elenquemos apenas uma variável, a única abertamente defendida pelo liberalismo: o esforço individual.

Suponhamos que uma cidade, sob força exógena (exterior ao indivíduo), conseguisse igualar materialmente todas as crianças de uma geração. Todas as crianças teriam as mesmas condições materiais e oportunidades de conhecimento e de vida. Quando adultos, uma parte dessa geração se mostraria mais capaz e assumiria os melhores postos de trabalho, e outra parte se mostraria menos capaz e assumiria os piores postos de trabalho.

Os postos de trabalho reproduzem salários e rendas distintos. Por assumir os melhores postos de trabalho, a geração mais capaz passaria a ter, por méritos próprios, mais bens materiais, transmitindo aos filhos uma vida com mais oportunidades. Por ter mais acesso a esses bens em vida e, eventualmente, após a morte dos pais, os filhos dos mais capazes teriam mais chances, antes do nascimento e da vida adulta, do que as crianças cujos pais tenham se mostrado menos capazes, mesmo que in potencia e in acto pudessem ser mais capazes do que os filhos dos pais mais ricos.

Assim, a meritocracia estaria desfeito na geração seguinte, pois indivíduos continuariam ricos sem disputa. Não mais se tornariam ricos; seriam ricos, porque nasceriam ricos. Forjar-se-ia um sistema de heranças e transmissão hereditária e criar-se-ia uma geração cristalizada em estamentos, em que os mais pobres teriam mais dificuldade de ascender, enquanto os mais ricos jamais descenderiam – é, em parte, a teoria de transmissão hereditária de capital e renda de Thomas Picketty e a teoria de transmissão de capitais (capital econômico, capital cultural e capital social) de Pierre Bourdieu.

Para que a geração seguinte se estruturasse sobre as mesmas condições da geração anterior, haveria a necessidade de outra força exógena, equalizando as condições materiais e oportunidades de conhecimento e de vida. O mesmo ocorreria nas terceira e quarta gerações e em todas as outras que se seguiriam. Logo, a meritocracia somente pode se aproximar de seu tipo ideal se e somente se uma força exógena atue como uma estrutura de intervenção contínua e perpétua para enriquecer os filhos dos pais que não obtiveram sucesso e retire riqueza dos filhos dos pais que obtiveram sucesso, criando uma média objetiva das condições materiais, a fim de que se afira os mais capazes entre todos. Em outras palavras, a ideia de meritocracia – em seu tipo ideal – exige uma intervenção que as relações sociais não são capazes de produzir.

Mais ou menos por esse caminho, Émile Durkheim considerou a herança um artifício antinatural, contrário aos “valores” da sociedade “moderna”, pois nada mais seria do que mera reprodução da classe. Ou seja, mesmo Durkheim, no século XIX, com o seu estruturalismo funcionalista, constatou implicitamente a reprodução de classe como fator determinante às “capacidades”.

Com o tempo, a ponderação do pai da sociologia se perdeu com o avanço do liberalismo conservador, que assumiu duas perspectivas: a primeira foi a censura à crítica sobre a herança e/ou à sua vinculação com o conceito de meritocracia. Essa perspectiva ainda é a predominante nos círculos liberais. De tal modo, famílias escravocratas tornaram-se em empreendedoras, como as famílias Moreira Salles, Setúbal, Villela e Bracher, todas donas do Itaú-Unibanco. A família Moreira Salles pode brincar de cineasta e ativista cultural, as famílias Setúbal e Villela de filantrópicas e a família Bracher de palestrante de “diversidade”. Apaga-se o passado e a origem, inclusive de geração em geração, como se fosse um fetichismo da meritocracia.

A segunda perspectiva é a naturalização. Ninguém fez melhor do que o neoliberalismo, sobretudo Milton Friedman, que se viu obrigado, em 1962, em meio às lutas por direitos civis aos negros norte-americanos, a defender, além de escolas segregadas e o direito do empregador branco de não empregar negros, a herança como fator genético.

Em Capitalismo e liberdade, o economista inventa a fórceps uma analogia bizarra. Vamos a ela: “Suponhamos que existam quatro Robinson Crusoé abrigados em quatro ilhas diferentes, próximas umas das outras. Um teve sorte de chegar a uma ilha grande e fértil, que lhe permite viver bem com facilidade. Os outros chegaram a ilhas pequenas e áridas, nas quais só conseguem sobreviver com dificuldade. Um dia, tomam conhecimento da existência uns dos outros. Naturalmente, seria muita generosidade da parte do Robinson da ilha grande convidar os outros a se mudarem para lá e compartilharem de sua riqueza. Mas suponhamos que não o faça. Estariam os outros três justificados se se reunissem e o obrigassem a compartilhar suas riquezas com eles? Inúmeros leitores se sentiriam tentados a responder que sim. Mas, antes de sucumbir a essa tentação, considerem precisamente a mesma situação sob um aspecto diferente” (FRIEDMAN, 1985, p. 150).[i]

Ele continua: “Suponhamos que você, leitor, e mais três amigos estão passeando por uma rua e você percebe uma nota de 20 dólares no chão e a recolhe. Seria muita generosidade sua, de fato, se resolvesse dividi-la com seus três amigos em partes iguais ou, pelo menos, se os convidasse para um drinque. Mas suponhamos que não o faça. Estariam os outros três justificados se se reunissem e o forçassem a compartilhar a sua nota com eles? Tenho a impressão de que muitos leitores responderiam que não” (FRIEDMAN, 1985, p. 150).

Logicamente, é uma falácia de falsa analogia e uma falácia de acidente.[ii] Em um caso, a morte espera o liberal, em outro, apenas um drink a menos – falácias de falsa analogia e de acidente são comuns no liberalismo. Mas procuremos entender o Friedman por ele mesmo. Segundo o economista, seus exemplos expressariam “a maior parte das diferenças de status ou posição ou riqueza” que “raramente pode ser considerada como resultado da sorte”, porque “o homem trabalhador e econômico é qualificado de ‘merecedor’” – perceba que todos os exemplos dependeram da sorte. Todavia, “ele deve suas qualidades em grande parte aos genes que teve a felicidade (ou infelicidade) de herdar” (FRIEDMAN, 1985, p. 151).

Dos exemplos de sorte para a felicidade da herança dos genes melhores ocorreu um salto indutivo triplo carpado. Para Friedman, voltando ao nosso exemplo da segunda geração, a transmissão de capitais consiste justamente na transmissão dos genes daqueles que já foram melhores na primeira geração. Assim, Friedman naturaliza e legitima a vinculação entre herança e meritocracia, pois o filho é necessariamente tão capaz quanto os pais porque os pais já teriam sido mais capazes, não necessitando qualquer prova em vida dos filhos. Logo, a transmissão dos genes melhores aos filhos da segunda geração, vinculando-os ao sucesso e fracasso familiar, transformar-se em determinismo genético – em alternativa ao determinismo divino do modo de produção feudal e ao determinismo racial e ambiental do modo de produção escravista mercantil, os quais não foram apenas substituídos, mas apropriados e ressignificados pelo liberalismo nos séculos XIX e XX.

Mas qual é a origem do falso e patético debate de Friedman? A origem está em páginas anteriores quando ele se pergunta se a herança é imprópria – era um ponto muito debatido nos EUA de 1960. Eis a indagação: “Os filhos de um comissário russo têm certamente maior expectativa de renda – talvez também de liquidação – que o filho de um camponês. Será este fato mais ou menos justificável do que a expectativa de renda maior do filho de um milionário americano?” (FRIEDMAN, 1985, p. 149). Para ele não, pois lhe “parece ilógico” não transmitir ao filho a “riqueza que acumulou”, pois isso significaria defender que “um homem tem direito de dissipar sua fortuna, mas não pode dá-la a seus filhos”.

Para dar sentido a essa sentença, retira-a do que chamou de “ética capitalista” (concordância com Durkheim) para considerar a herança “como instrumento ou corolário de outro princípio como, por exemplo, a liberdade” (FRIEDMAN, 1985, p. 150). Herança faz parte da liberdade de capitais e, portanto, do indivíduo, mesmo que isso gere um paradoxo com o que chamou de “ética capitalista”, implodindo a ideia messiânica de meritocracia com uma explícita analogia sobre estamentos medievais – ele ter buscado classes típicas do modo de produção feudal não é algo fortuito, mas elucidativo. Ou seja, desde a década de 1960, a ideia de meritocracia foi abandonada pelo neoliberalismo, criando-se uma divinização da riqueza e dos milionários. É o que explica a apego de movimentos e entidades neoliberais a figura messiânica do bilionário “empreendedor”.

Portanto, o liberalismo confronta a ideia difundida de meritocracia, na medida em que o liberalismo se preza por exigir a manutenção da laissez-faire e a ausência de intervenção estatal, o que contribui para a transmissão hereditária do que o próprio liberalismo compreende por sucesso e fracasso, cujo modelo é estruturado de forma estamental, inclusive analiticamente. Quando um rico defende a inexistência da força exógena, mormente sobre si e sobre a relação entre capital e trabalho, nada faz mais do que defender o continuum da transmissão hereditária em conflito com a própria ideia de meritocracia que julga defender e representar. Meritocracia não existe para o próprio liberalismo!

*Leonardo Sacramento é professor de educação básica e pedagogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Autor do livro A universidade mercantil: um estudo sobre a universidade pública e o capital privado (Appris).

 

Notas


[i] FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. Com a colaboração de Rose D. Friedman. Apresentação de Miguel Colasuonno. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

[ii] “A falácia por acidente consiste em aplicar uma regra geral a um caso particular, cujas circunstâncias “acidentais” tornam a regra inaplicável”. In: COPI, Irving Marmer. Introdução à lógica. Tradução e Álvaro Cabral. São Paulo: Mestre Jou, 1978.

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