Pedro Casaldáliga (1928-2020)

image_pdf

Por CHICO ALENCAR*

Comentário sobre a vida e a morte do bispo emérito de São Félix do Araguaia

O coração de Pedro Casaldáliga, catalão do mundo, deixou de bater no dia 8 de agosto de 2020, após 92 anos de existência terrena. Católico ecumêmico, devoto de todas as missões de Justiça e Liberdade, bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT), Pedro fez sua travessia.

O coração de Pedro, pedra e flor, poeta e profeta, “combatente derrotado de causas invencíveis” – como ele gostava de dizer -, continuará pulsando, a inspirar a caminhada dos que virão depois dele. Dos que virão depois de nós, seus camaradas de fé, sonhos e lutas. Nunca é perdida a vida de quem dá largo testemunho.

Nas vezes em que encontrei Pedro – não foram muitas, infelizmente – eu brincava: “você devia ser nosso papa!”. Ele respondia no mesmo tom, com seu humor bom: “por isso mesmo, por gente como você querer, nunca vou ser; além do mais, não tenho vocação para príncipe”.

Pedro via no papa Francisco, porém, no topo da instituição monárquica mais duradoura do Ocidente, uma benção, uma tentativa de retorno ao cristianismo das catacumbas, dos primórdios. Para Pedro, o coerente, ser cristão era ser despojado e descontente: “nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar!”.

Quem quis matar Pedro foi a ditadura, foi o latifúndio. Feriram de morte seu parceiro de evangelização, padre João Bosco Burnier, mas não o atingiram. Tentaram expulsá-lo do país, como fizeram com padre Francisco Jentel, seu igual na prelazia, mas por intervenção do papa Paulo VI, que o nomeara bispo, não conseguiram.

Pedro foi um esperançado resistente: “somos a solidão que suportamos, que acolhemos, que partilhamos, que transcendemos!”.

É simbólico de sua solidariedade visceral com os oprimidos que o corpo de Pedro tenha se apagado no dia em que, no Brasil, chegamos às 100 mil trágicas mortes pela Covid. Pedro está ali, luz nas trevas, confortando os aflitos, denunciando a insensibilidade dos podres poderes – como fez durante toda sua vida.

Pedro foi bispo do anel de tucum, do báculo que era um cajado ou um remo nativo, do chapéu de palha como mitra. Pedro bispo dos comuns, do calcinado e imenso chão brasileiro, das águas profundas do Araguaia. Pedro dos pobres e oprimidos, dos camponeses, dos índios, dos deserdados da Terra: “no ventre de Maria, Deus se fez homem. Mas, na oficina de José, Deus também se fez classe”. Pedro da Libertação!

Assim pregou, assim viveu. Por isso a morte, quando chegou, querendo algo de seu, nada encontrou para tomar. Tudo estava doado, entregue, compartilhado. Assim a morte foi vencida por Pedro, pedra angular.

Muito mais densas do que as nossas, as palavras vividas de Pedro continuarão a nos orientar e animar – mistérios da fé:

“Para descansar/ eu quero só esta cruz de pau/ como chuva e sol/ Estes sete palmos/ e a Ressurreição”. Pedro pediu para ser sepultado na sua terra de adoção, no cemitério dos Carajás, à sombra de um pé de pequi, entre os túmulos precários de um peão e de uma prostituta. Pedro sabia, como está escrito no evangelho de Mateus (21, 31), que eles nos procederão no Reino do Céu.

Pedro Casaldáliga, amigo fiel do Jesus dos pobres, fragmento de Deus na terra, está plenificado no Corpo Místico, Cósmico e Eterno do Todo Poderoso Amor, a quem ele tanto serviu. Pedro está nas lutas de todos os povos, de todas as épocas, por sua/nossa emancipação. Glória, gracias!

*Chico Alencar é professor da UFRJ, escritor e ex-deputado federal (PSOL/RJ).

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES