Polímatas

John Latham, Cinco irmãs bing, 1976
image_pdf

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

O ideal do intelectual que abrangia o maior número possível de saberes, foi sendo aos poucos erodido e suplantado pelo de especialista

Conforme livro recente de Peter Burke, historiador da cultura da Universidade de Cambridge, intitulado O polímata (junção de muito com saber), o ideal do intelectual no Renascimento era abranger o maior número possível de saberes, ou disciplinas, ou matérias. Pensem em Leonardo da Vinci, que pintava, desenhava, imaginava e construía engenhocas precursoras do avião, do helicóptero, do tanque de guerra, e assim por diante, além de se interessar por química, por botânica, por física, por medicina e anatomia etc. Esse ideal foi sendo aos poucos erodido e suplantado pelo de especialista (ou expert),que se concentra numa única disciplina.O ideal da Modernidade é esse.

Até aí, estamos de acordo. Mas, diz Peter Burke, com a passagem dos séculos o polímata está dando sinais de ressurreição.

Um polímata moderno é o crítico literário Edward W. Said, com sua obra-prima que é Orientalismo, um dos pilares dos estudos pós-coloniais e da descolonização. E cuja leitura desorganiza o universo do saber de quem achava que já sabia. Em sua erudição, ambição e abrangência, lembra a Estilística Alemã dos anos 1930 e 1940, quando os livros de crítica literária eram tratados enciclopédicos ou monumentos de civilização.

Como Mimesis, de Auerbach, que percorre toda a literatura ocidental, começando pela Bíblia e Homero, e terminando por Proust e Virginia Woolf. Ou então A literatura europeia e a Idade Média latina, de Curtius, que estuda a metamorfose dos topoi repetidos nas obras literárias pelos milênios afora, desde o latim até as línguas vernáculas.  Ou ainda  a envergadura que assumem os trabalhos de Spitzer, reunidos em Estudos de estilo. Mais um exemplo, de outra tradição que não a Estilística Alemã, é o livro do russo Bakhtin sobre o humor da praça pública. Ao estudar a carnavalização que o populacho opera, recupera para a literatura vastos painéis de práticas discursivas com base na oralidade.

Ou, fora da literatura, nas artes visuais, os trabalhos de Aby Warburg e seu Atlas Mnemosyne, com a classificação das principais imagens desde a Antiguidade até o presente. E ainda o livro de Jakob Burckhardt, A civilização do Renascimento na Itália. Este tem a reputação de ter “inventado” o Renascimento com suas evocações e seu poder de síntese. E mais alguns outros.

Mas há vários de ambição semelhante, em campos diversos  como Sociologia, História etc. Um deles é O outono da Idade Média de Huizinga, cuja interpretação do fenômeno da dança macabra ajuda-nos a entender melhor as alucinações infernais de Bosch e Brueghel. Mais um é O processo civilizatório, de Norbert Elias, ao analisar, entre outros tópicos, a importância que assumiu a etiqueta das maneiras à mesa. Ou o de Ernst Bloch, Princípio esperança, que precisou de 3 volumes para dar conta de todo e qualquer movimento insurrecional messiânico.

Walter Benjamin era alemão e crítico literário, mas nada lhe escapava, desde brinquedos de criança e os efeitos do haxixe, ou a função da galeria na definição da cidade moderna, até um assunto pesado e desgracioso como a dramaturgia barroca. 

Huizinga é holandês, Burckhardt é suíço… Mas por muito tempo o catatau erudito ficaria associado a uma espécie de fatalidade do espírito germânico. Isso até nos lembrarmos de nomes como Michelet, que não só é autor de uma História da França e uma História da Revolução Francesa, ambas em dezenas de volumes, como ainda abordou a história das mulheres e A bruxa, textos que até hoje são referência do feminismo. Fruto do republicanismo laico da Grande Revolução, insistiu em seus trabalhos que o povo é que é o agente da transformação histórica, e jamais reis ou generais. Entre outros, influenciou Victor Hugo, que levou seus ensinamentos à prática, e especialmente ao escrever a mais popular de todas as suas obras, Os miseráveis.

A Michelet podemos acrescentar Foucault – cujo interesse vai de Velázquez às prisões e aos cuidados de si – e Lévi-Strauss Ambos redimem a espécie ameaçada do polímata da acusação de germanismo. Este último, para analisar os mitos indígenas, convoca a música clássica, a Astronomia e a bilateralidade da representação gráfica e escultórica. A estes dois, acrescentam-se muitos outros.

E viva o polímata!.

*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul). [amzn.to/3ZboOZj]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES