Polímatas

John Latham, Cinco irmãs bing, 1976
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

O ideal do intelectual que abrangia o maior número possível de saberes, foi sendo aos poucos erodido e suplantado pelo de especialista

Conforme livro recente de Peter Burke, historiador da cultura da Universidade de Cambridge, intitulado O polímata (junção de muito com saber), o ideal do intelectual no Renascimento era abranger o maior número possível de saberes, ou disciplinas, ou matérias. Pensem em Leonardo da Vinci, que pintava, desenhava, imaginava e construía engenhocas precursoras do avião, do helicóptero, do tanque de guerra, e assim por diante, além de se interessar por química, por botânica, por física, por medicina e anatomia etc. Esse ideal foi sendo aos poucos erodido e suplantado pelo de especialista (ou expert),que se concentra numa única disciplina.O ideal da Modernidade é esse.

Até aí, estamos de acordo. Mas, diz Peter Burke, com a passagem dos séculos o polímata está dando sinais de ressurreição.

Um polímata moderno é o crítico literário Edward W. Said, com sua obra-prima que é Orientalismo, um dos pilares dos estudos pós-coloniais e da descolonização. E cuja leitura desorganiza o universo do saber de quem achava que já sabia. Em sua erudição, ambição e abrangência, lembra a Estilística Alemã dos anos 1930 e 1940, quando os livros de crítica literária eram tratados enciclopédicos ou monumentos de civilização.

Como Mimesis, de Auerbach, que percorre toda a literatura ocidental, começando pela Bíblia e Homero, e terminando por Proust e Virginia Woolf. Ou então A literatura europeia e a Idade Média latina, de Curtius, que estuda a metamorfose dos topoi repetidos nas obras literárias pelos milênios afora, desde o latim até as línguas vernáculas.  Ou ainda  a envergadura que assumem os trabalhos de Spitzer, reunidos em Estudos de estilo. Mais um exemplo, de outra tradição que não a Estilística Alemã, é o livro do russo Bakhtin sobre o humor da praça pública. Ao estudar a carnavalização que o populacho opera, recupera para a literatura vastos painéis de práticas discursivas com base na oralidade.

Ou, fora da literatura, nas artes visuais, os trabalhos de Aby Warburg e seu Atlas Mnemosyne, com a classificação das principais imagens desde a Antiguidade até o presente. E ainda o livro de Jakob Burckhardt, A civilização do Renascimento na Itália. Este tem a reputação de ter “inventado” o Renascimento com suas evocações e seu poder de síntese. E mais alguns outros.

Mas há vários de ambição semelhante, em campos diversos  como Sociologia, História etc. Um deles é O outono da Idade Média de Huizinga, cuja interpretação do fenômeno da dança macabra ajuda-nos a entender melhor as alucinações infernais de Bosch e Brueghel. Mais um é O processo civilizatório, de Norbert Elias, ao analisar, entre outros tópicos, a importância que assumiu a etiqueta das maneiras à mesa. Ou o de Ernst Bloch, Princípio esperança, que precisou de 3 volumes para dar conta de todo e qualquer movimento insurrecional messiânico.

Walter Benjamin era alemão e crítico literário, mas nada lhe escapava, desde brinquedos de criança e os efeitos do haxixe, ou a função da galeria na definição da cidade moderna, até um assunto pesado e desgracioso como a dramaturgia barroca. 

Huizinga é holandês, Burckhardt é suíço… Mas por muito tempo o catatau erudito ficaria associado a uma espécie de fatalidade do espírito germânico. Isso até nos lembrarmos de nomes como Michelet, que não só é autor de uma História da França e uma História da Revolução Francesa, ambas em dezenas de volumes, como ainda abordou a história das mulheres e A bruxa, textos que até hoje são referência do feminismo. Fruto do republicanismo laico da Grande Revolução, insistiu em seus trabalhos que o povo é que é o agente da transformação histórica, e jamais reis ou generais. Entre outros, influenciou Victor Hugo, que levou seus ensinamentos à prática, e especialmente ao escrever a mais popular de todas as suas obras, Os miseráveis.

A Michelet podemos acrescentar Foucault – cujo interesse vai de Velázquez às prisões e aos cuidados de si – e Lévi-Strauss Ambos redimem a espécie ameaçada do polímata da acusação de germanismo. Este último, para analisar os mitos indígenas, convoca a música clássica, a Astronomia e a bilateralidade da representação gráfica e escultórica. A estes dois, acrescentam-se muitos outros.

E viva o polímata!.

*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul). [amzn.to/3ZboOZj]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Costa Júnior Marcos Aurélio da Silva José Machado Moita Neto Anselm Jappe Alexandre de Lima Castro Tranjan Ronaldo Tadeu de Souza Yuri Martins-Fontes Denilson Cordeiro Lincoln Secco Ricardo Antunes Armando Boito Luiz Werneck Vianna Samuel Kilsztajn Henri Acselrad Heraldo Campos Dênis de Moraes Valerio Arcary Lorenzo Vitral José Dirceu Luís Fernando Vitagliano Rubens Pinto Lyra Remy José Fontana Carla Teixeira Luiz Bernardo Pericás Manchetômetro Walnice Nogueira Galvão Antônio Sales Rios Neto Ari Marcelo Solon Manuel Domingos Neto Luciano Nascimento André Singer Eugênio Trivinho Luiz Roberto Alves Afrânio Catani Marcelo Módolo João Sette Whitaker Ferreira João Paulo Ayub Fonseca José Geraldo Couto Lucas Fiaschetti Estevez Caio Bugiato Tarso Genro Paulo Sérgio Pinheiro Marcus Ianoni Flávio R. Kothe Marilia Pacheco Fiorillo Paulo Nogueira Batista Jr Tadeu Valadares Mário Maestri Henry Burnett Marjorie C. Marona Vanderlei Tenório Leonardo Boff Luis Felipe Miguel Luiz Renato Martins Bernardo Ricupero Sandra Bitencourt Chico Whitaker Jorge Branco Andrew Korybko Mariarosaria Fabris João Lanari Bo Marcelo Guimarães Lima Alexandre de Freitas Barbosa Priscila Figueiredo Fábio Konder Comparato Dennis Oliveira Juarez Guimarães Renato Dagnino Liszt Vieira Julian Rodrigues Boaventura de Sousa Santos Alysson Leandro Mascaro Igor Felippe Santos Annateresa Fabris Sergio Amadeu da Silveira Flávio Aguiar Bruno Machado Ricardo Musse Slavoj Žižek Vinício Carrilho Martinez Michael Roberts Osvaldo Coggiola Celso Frederico Michael Löwy Thomas Piketty Fernando Nogueira da Costa Antonio Martins Leonardo Sacramento Érico Andrade Plínio de Arruda Sampaio Jr. Paulo Martins Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eleonora Albano Eleutério F. S. Prado José Raimundo Trindade Gabriel Cohn Jorge Luiz Souto Maior Otaviano Helene Ricardo Fabbrini Marcos Silva Leda Maria Paulani Gilberto Lopes Luiz Carlos Bresser-Pereira Michel Goulart da Silva Tales Ab'Sáber Jean Marc Von Der Weid Daniel Afonso da Silva Francisco Fernandes Ladeira Alexandre Aragão de Albuquerque Jean Pierre Chauvin Matheus Silveira de Souza Carlos Tautz João Adolfo Hansen Celso Favaretto Gilberto Maringoni Eugênio Bucci Bento Prado Jr. Chico Alencar João Carlos Loebens Vladimir Safatle Marilena Chauí Rodrigo de Faria Milton Pinheiro Salem Nasser Maria Rita Kehl Berenice Bento Ladislau Dowbor Claudio Katz Francisco Pereira de Farias Atilio A. Boron Francisco de Oliveira Barros Júnior André Márcio Neves Soares Rafael R. Ioris Kátia Gerab Baggio Fernão Pessoa Ramos Elias Jabbour Luiz Eduardo Soares Ronald León Núñez Benicio Viero Schmidt Gerson Almeida Eliziário Andrade Daniel Costa Andrés del Río Eduardo Borges Everaldo de Oliveira Andrade Daniel Brazil Leonardo Avritzer Luiz Marques Bruno Fabricio Alcebino da Silva Antonino Infranca João Carlos Salles Alexandre Juliete Rosa José Luís Fiori José Micaelson Lacerda Morais Ricardo Abramovay João Feres Júnior Paulo Fernandes Silveira Ronald Rocha Airton Paschoa Paulo Capel Narvai

NOVAS PUBLICAÇÕES