Quão desigual é o Brasil?

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Por OTAVIANO HELENE*

Análise do mapa de distribuição da renda no país

A questão da desigualdade na distribuição de renda sempre esteve entre os grandes problemas nacionais. Afinal, o Brasil é um dos países mais desiguais de todo o mundo: segundo dados sistematizados e divulgados pelo Banco Mundial, o Brasil, por volta de 1990, chegou a ser o país com a pior distribuição de renda entre todos aqueles para os quais havia dados disponíveis.[1]

Desde então, ficamos oscilando entre as últimas posições, com alguma melhoria, em especial nos primeiros 15 anos deste século. Apesar disso, ainda estamos no grupo dos países mais desiguais do mundo.[2] Outros países nesse grupo são a África do Sul, alguns países de sua região de influência no período do apartheid e alguns outros poucos países africanos e americanos.

A pandemia atual, como seria esperado, afetou de forma mais intensa as regiões, os países e as pessoas mais pobres, cuja “margem de manobra” em uma situação crítica e inesperada é muito limitada. Isso aumentou tanto a concentração de renda em cada país, como também as diferenças entre eles.

 

Renda domiciliar mensal por pessoa

No Brasil, a renda média domiciliar per capita dos 5% mais favorecidos em um único mês é igual à renda média dos 5% mais pobres em mais do que 20 anos. Um exame de quanto uma pessoa deve ganhar para estar em cada grupo econômico talvez permita um entendimento melhor da situação e, portanto, da dificuldade de solucionar o problema.

As rendas citadas aqui referem-se à renda de todas as fontes, incluindo remuneração do trabalho, adicionada de 13º salário, prêmios, participação em lucros, cartões, vales etc., seguros defeso e desemprego etc., aposentadorias, benefícios assistenciais, pensões, bolsa-família ou similar, rendas de aluguel, rendimentos de investimentos financeiros, dividendos, doações etc., e, também, rendimento recebido na forma de bens materiais.

Os dados têm como origem o PNAD, tendo sido os valores, originalmente de 2019, atualizados para 2021 com base em informações de variação do PIB e inflação, e arredondados (apenas os dois primeiros algarismos têm significado.)

A linha mais escura da figura 1 mostra valores limites da renda domiciliar per capita mensal em relação à renda média, da ordem de R$ 1.400 em valores de 2021. Por exemplo, alguém que tenha uma renda domiciliar mensal por pessoa inferior a 0,13 vezes a renda média nacional (próximo a R$ 170 por mês) está no grupo dos 10% mais pobres.

Outro exemplo: a renda domiciliar média por pessoa, que corresponde ao valor 1,0 no eixo “vertical” da figura, é um valor que separa os 70% com menor renda dos 30% com maiores rendas, o que corresponde aos R$ 1.400 citados. (Há muito mais pessoas abaixo da média do que acima dela.)

Uma renda domiciliar per capita superior a cerca R$ 2.700, perto de duas vezes a renda domiciliar per capota média do país, já é suficiente para colocar uma pessoa no grupo dos 10% mais bem aquinhoados. Se a renda domiciliar per capita for superior a sete vezes a média nacional, perto de dez mil reais por mês, a pessoa estará no grupo formado pelo 1% com maior renda.

Quem perde e quem ganha se melhorar a distribuição de renda?

Um dos indicadores para se medir a desigualdade na distribuição de um bem é o índice de Gini, que vai de zero – todos têm ou recebem exatamente a mesma quantidade do bem – e 1 – apenas uma pessoa detém tudo. (Muitas vezes, os limites convencionais do índice de Gini são 0 e 100. A relação entre uma convenção e outra é apenas um fator multiplicativo igual a 100.)

Nos países com uma distribuição de renda muito boa, esse índice é inferior a 0,3; isso ocorre tipicamente no norte da Europa, nos países socialistas ou que deixaram esse sistema há poucas décadas, e em alguns poucos países do Oriente Médio. Índice de Gini entre 0,3 e 0,4 correspondem a boas distribuições de renda, situação típica de países europeus e asiáticos. Índices entre 0,4 e 0,5 indicam uma distribuição de renda ruim; isso é típico dos países das américas, com raras exceções (Canadá e Uruguai entre elas), e sendo os EUA o único país com índice de Gini acima de 0,4.

Em alguns países africanos, em especial na África do Sul e no seu entorno e em vários países centro- e sul-americanos, Brasil entre eles, o índice de Gini é superior a 0,5, refletindo enormes desigualdades. No caso específico do Brasil, esse índice, correspondente à distribuição de renda per capita domiciliar, é de cerca de 0,55.

No gráfico acima, a linha cinza ilustra qual deveria ser a alteração da distribuição de renda para que o Brasil fosse significativamente menos desigual. Mantendo a média da renda, para que nosso índice de Gini se igualasse a um valor que poderia ser considerado bom, seria necessário que as rendas das pessoas do grupo dos 10% mais pobres aumentassem a um valor próximo a dez vezes no seu extremo inferior (não mostrada no gráfico) e próximo a 3 ao limite superior.

O grupo entre os 20 a 30% mais pobres deveria ter sua renda média duplicada. Para as pessoas cuja renda per capita situa-se acima dos 60% mais desfavorecidos e abaixo dos 20% mais ricos, praticamente não haveria alteração significativa da renda. Mas nos grupos mais favorecidos, a redução na participação da renda nacional total seria reduzida de forma significativa; o limitar que separa os 90% com menores rendas dos 10% com maiores rendas (uma renda domiciliar per capita próxima a R$ 2.700 em valores de 2021), a redução seria da ordem de 25%. A partir daí e quanto maior a renda, maior a redução; as pessoas cuja renda per capita domiciliar estiver exatamente na posição entre que separa o grupo formado pelo 1% mais ricos dos de menor renda (sete a oito vezes mais do que a média, perto de 10 mil reais por pessoa) a redução da renda seria da ordem de um terço.

Uma política de renda que favorecesse os grupos mais pauperizados, como redução do desemprego, melhora do salário-mínimo (que repercutiria nas rendas que, embora abaixo dele, o têm como referência), aumento dos valores e dos alcances dos programas sociais, incluindo aposentadorias e pensões mais baixas e os benefícios continuados, entre várias outras possibilidades, combinada com alíquotas de impostos mais próximas das praticadas pelos países capitalistas, tanto sobre as rendas como sobre ganhos de capital, doações e heranças no caso dos grupos mais ricos, poderia mudar significativamente os nossos níveis de desigualdades.

Além disso, um sistema educacional menos desigual e que evitasse as enormes diferenças que hoje se observam poderia criar dificuldades futuras para que as desigualdades atuais se repetissem.

Tais providências, entretanto, se chocam frontalmente com interesses dos grupos dominantes e que controlam a opinião pública e as decisões políticas: o grupo dos 10% mais bem aquinhoados, que teriam suas rendas e a participação no PIB significativamente reduzidas em relação à média nacional, é formado por pessoas cuja renda por domiciliar por pessoa é superior a aproximadamente R$ 2.700. Por outro lado, os grupos econômicos que se beneficiariam de tais mudanças não têm mostrado nem força a nem capacidade de organização necessárias para tal enfrentamento. Mudar a primeira destas duas dificuldades talvez seja impossível, mas a segunda, não.

*Otaviano Helene é professor sênior do Instituto de Física da USP, ex-presidente da Adusp e do INEP. Autor, entre outros livros, de Um diagnóstico da educação brasileira e de seu financiamento (Autores Associados).

 

Notas


[1] Segundo dados do Banco Mundial para o período 1960 a 1990. https://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GINI.

[2] Segundo o verbete List of countries by income equality da Wikipedia (en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_income_equality), o Brasil é o terceiro país mais desigual quando o critério é a razão entre a renda dos 20% mais ricos e dos 20% mais pobres, apenas menos ruim do que a África do Sul e a Namíbia.

 

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