Scar e Bolsonaro – uma comparação

Imagem: Francesco Ungaro
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Por VANDERLEI TENÓRIO*

Era mal porque era o vilão, mas morreu porque era estúpido

Nem todo vilão precisa de uma história de fundo complexa e uma motivação indecifrável. Para cada Magneto (Ian McKellen/ Michael Fassbender), temos um Nicky Holiday, o antagonista de The Great Muppet Caper, de 1981, que disse a Caco, o Sapo: “Por que estou fazendo isso? Porque sou um vilão. É puro e simples”.

O rei Leão, pelo menos a versão original de 1994, é um filme de 88 minutos feito para crianças, com cinco conjuntos musicais diferentes. Dadas as limitações de público e de tempo, basta saber que o antagonista é anunciado por nuvens de enxofre verde e se chama Scar – palavra em inglês que em português significa cicatriz. (Isso foi antes de os roteiristas terem empatia para considerar os subtons capazes – e não sei se eles são sutis o suficiente para serem chamados de “subtons” – de igualar a desfiguração física ao mal). Como Nicky Holiday, Scar é motivado superficialmente pelo ciúme que sente de seu irmão bem-sucedido e, na falta disso, bem, ele é o vilão. O que mais há para saber?

Todavia, mesmo se aceitarmos que ele é inerentemente mau, ainda podemos avaliar o quão bem ele persegue seus objetivos sinistros. E, infelizmente para Scar, suas motivações muito limitadas e muito pessoais o tornam um líder revolucionário bastante ineficaz.

Embora ao contrário de seu irmão digno e estadista, Mufasa. Scar é carismático à sua própria maneira, mas suas limitações como estrategista e pensador político são expostas como ossos de elefante momentos depois de arranhar as patas de seu irmão e – como o cara dramático que ele é – sibilando “viva o rei” enquanto jogava Mufasa de um penhasco.

Basicamente, o golpe de estado de Scar está centrado em substituir um monarca absolutista por outro sem violar a cadeia de sucessão. Além disso, o plano de Scar é baseado no fato de que, com Mufasa e Simba fora do caminho, ele seria o líder legítimo da Pedra do Reino. A ideia de abolir a monarquia é considerada por uma das hienas em “Esteja preparado”, e Scar imediatamente a afasta gritando: “Idiotas! Haverá um rei!” Não é uma grande revolução social.

O plano de Scar é essencialmente depor um governante incrivelmente popular e bem-sucedido e instalar seu próprio governo, sob o qual tudo será o mesmo, exceto que as leoas farão toda a caça não apenas para elas, mas também para as hienas. Portanto, ele não está apenas substituindo um amado monarca, mas também ao marchar sobre a Pedra do Reino à frente de um exército estrangeiro. Uma vez no poder, Scar comanda as leoas – isto é, a nobreza restante.

É difícil imaginar um plano com menor probabilidade de atrair o apoio popular. A história da humanidade não tem escassez de monarcas depostos pela revolução interna em favor de um parente (a Guerra das Rosas – 1455-1485 – é apenas um exemplo), mas geralmente tal levante é estimulado pela impopularidade do governante em exercício ou promessas de reforma por parte do sucessor, nenhuma das quais descreve a ascensão de Scar ao poder.

Da mesma forma, mesmo um olhar superficial sobre a política externa dos EUA após a Guerra Fria ilustraria o poder de um militar para instalar um homem forte de direita impopular, por exemplo, Syngman Rhee (1875-1965) na Coréia do Sul e o General Augusto Pinochet (1915-2006) no Chile. Mas, Scar não trouxe tropas estrangeiras para a Pedra do Reino para se proteger contra uma ameaça percebida – as hienas eram a ameaça. Não só isso, eles eram uma ameaça que Mufasa tinha sido capaz de manter sob controle sem suar muito.

Em uma coluna publicada em 30 de julho de 2019, na revista Veja, o jornalista Ricardo Noblat definiu o que faz um estadista. Segundo Noblat, quem ambiciona ser estadista deve ter clara visão de mundo e deve se perguntar se essa visão é mesmo a melhor para o país que pretende governar. Há pessoas que, diante dessa questão, respondem, sem espírito crítico, que sua visão é não só a melhor, como é inquestionável. Na verdade, quem assim se apresenta não é um estadista, mas um político medíocre, que mede o mundo pela régua curta de seu de seus preconceitos e não tem, como consequência, rigorosamente nada de grande a oferecer ao país em termos de política, de economia e do bom funcionamento das instituições.

Noblat infere que um verdadeiro estadista não é o que manda, mas o que governa – e governar é tomar decisões depois de ouvir as forças políticas e sociais legítimas e procurar saber quais são as autênticas prioridades das gerações atuais, mas, principalmente, das futuras. Desse modo, é capaz de inspirar os cidadãos, mesmo aqueles que não o escolheram como presidente, a trabalhar por um país melhor. Essa é a diferença entre um projeto de construção e um projeto de destruição. Um dos grandes males do Brasil após a redemocratização tem sido a política de terra arrasada: quem assume o poder anuncia que fará tábula rasa do que veio antes, sem se importar se aquilo que veio antes é essencial para o crescimento do país.

Nesse sentido, francamente, a coisa mais incrível sobre a usurpação da Pedra do Reino feita por Scar é que ela teve sucesso enquanto durou. Considere o tempo que leva para um filhote de leão amadurecer. Simba estava no deserto procurando comida por pelo menos quatro anos enquanto seu tio governava. Quatro anos depois, Scar conseguiu governar com base exclusivamente na força da instituição da monarquia.

O governo de Scar é caracterizado por ter sido violento e absoluto. Nicolau Maquiavel (1469-1527), em seu magnum opus O princípe (1532), justificou o uso da violência para manter o controle sobre a população, pois defendia a ideia de que “os fins justificariam os meios” e afirmava que mais valia para o rei ser temido que amado. Em O Leviatã (1651), Thomas Hobbes (1588-1679) argumentou que o poder real era necessário para colocar a ordem no mundo. Esse teórico defendeu a teoria de que, antes do poder absoluto do rei, a Europa vivia em um estado de caos no qual a violência predominava, pois, segundo Hobbes, o homem era mau por natureza, logo, somente o poder absoluto do rei seria capaz de colocar tudo em ordem. Jacques Bossuet (1627-1704), em seu “A Política Retirada da Escritura Sagrada” (1709), justificou que o poder do rei procedia de Deus, sendo assim, contestar o poder real seria o mesmo que contestar ao próprio Deus.

O governo torpe de Scar fluía incontestável, antes que Nala uma jovem nobre liberal instigasse a ideia de derrubá-lo. E mesmo assim, ela fez isso apenas quando o reino estava à beira da fome. O que traz à tona a falha mais surpreendente de Scar como estadista: dentro de quatro anos, ele conseguiu alterar o ecossistema da grande área da Pedra do Reino ao ponto de ser quase incapaz de sustentar a vida. A caça excessiva não apenas sobrecarregou a cadeia alimentar, mas também alterou os padrões climáticos e transformou uma savana verdejante em um deserto. Leoas e hienas fizeram isso em quatro anos.

Além da ineficácia temporal de atuação do governo para amenizar os impactos da falta de recursos na Pedra do Reino, Scar criou conflitos internos no seu governo, principalmente com as leoas. Nessa perspectiva, a instabilidade política acabou sendo estimulada pelo próprio Scar. O clima de instabilidade gerou um ambiente de insegurança para todos que residiam na Pedra do Reino, o que reforçou um movimento de insatisfação por parte da maioria das leoas, o movimento silencioso reverberou para a base de Scar que era composta majoritariamente por hienas, elas implicitamente estavam descontentes com a gestão do usurpador egocêntrico.

Em linhas gerais, por mais implacável e míope que fosse seu plano, houve alguns momentos decisivos em que uma decisão errada custou tudo a ele. O primeiro foi decidir tentar chegar ao trono em primeiro lugar. Antes das tentativas de Scar de levar Simba e Mufasa à destruição, é difícil ver o que havia de tão ruim em sua vida. Claro, ele tinha que lidar com o estereótipo de ser o bajulador ocasional de seu irmão e o arquétipo de ser o nobre hipócrita e presunçoso, mas Scar também parecia ser capaz de fazer o que quisesse, o tempo todo. Parece uma maneira doce de viver para qualquer um que não seja totalmente mal por causa da conveniência do enredo.

O segundo erro que Scar cometeu foi deixar que as hienas matassem Simba no rastro do incidente do Gnu, em vez de extinguir o herdeiro aparente por si mesmo. Scar acabará de matar seu irmão e seu rei, e nada que sabíamos sobre Scar apoia a ideia de que ele pensava que fratricídio e regicídio eram legais, mas infanticídio era uma ponte longe demais. Muito pelo contrário, ele tentou liberar Simba em uma emboscada fatal antes da debandada que matou Mufasa. Mas nas duas vezes, Scar não iria sujar as próprias patas matando ele mesmo o filhote, e essa foi sua ruína. Morto, Simba teria sido uma nulidade política. Vivo, ele acabou por ser o instrumento da destruição de Scar. As leoas se voltaram contra Scar em massa apenas quando Simba voltou e revelou que Scar não era o rei legítimo da Pedra do Reino.

E assim que o fizeram, Scar cometeu seu erro final. Quando Simba o encurrala, Scar culpa as hienas. Simba, não convencido, oferece a Scar os mesmos termos que Scar ofereceu a ele após a morte de Mufasa: fuja e nunca mais volte. Scar tenta lutar para passar por Simba, para ele seria indigno deixar o trono sem lutar. Após o embate épico, Scar acaba sendo morto por suas aliadas.

Francamente, era isso que Scar merecia, por se recusar a desistir enquanto estava ganhando; por bagunçar a estrutura da Pedra do Reino – o governo mais autossustentável que uma selva tinha a oferecer; por não reconhecer sua maior ameaça enquanto ela o encarava; e, finalmente, por se recusar a desistir enquanto ele estava atrasado. Scar era mal porque era o vilão, mas morreu porque era estúpido.

*Vanderlei Tenório é bacharelando em geografia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

 

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