Por MARCIO SOTELO FELIPPE*
Quando o fascismo avança parte de nós morre. Derrotá-lo significa sobreviver na existência física, política, social e cultural
“Se a história tem um sentido é porque pode servir de lição para o presente” (Nicos Poulantzas, Fascismo e ditadura).
1.
No outubro de 2022 a marcha sobre Roma fez 100 anos. O fascismo outra vez ameaça defletir o rumo da história. No Brasil, a derrota de Jair Bolsonaro não deterá ainda esse processo. Será a primeira batalha de uma longa guerra. Mostra-se profundamente enraizado em parte da sociedade, 58 milhões de votos no 2º. turno e força social mobilizada. Nem o crime contra a humanidade perpetrado durante a pandemia, que responde por 11% de todos os mortos pela covid em um país com 3% da população mundial, nem a corrupção escancarada, nem a personalidade psicopática de Jair Bolsonaro, desprovida de qualquer traço de senso moral, significam que o fascismo desaparecerá.
É um fenômeno mundial. Trump, Orban, Meloni, Le Pen mostram-se sólidas forças sociais que, com exceção da última, estão ou estiveram no poder. A cadela que está sempre no cio é metáfora perfeita para o fascismo na sociedade burguesa. As condições que o geram decorrem da estrutura do capitalismo.
Não identificar a natureza do inimigo é vantagem que se dá a ele. Há uma bibliografia do fascismo que confunde conceito com descrição. Dizem como é o fascismo, não o que é o fascismo. Afirmar que a água é incolor é parte do conhecimento mas não diz o que a água é. Do mesmo modo afirmar que o fascismo é intolerância, racismo, desumanização de parte da sociedade é correto como descrição, mas ainda não diz o que ele é. O filósofo napolitano Vico ensinava que somente a História pode ser ciência real porque, sendo criação humana, somos capazes de compreender o seu sentido ou finalidade (não sabemos do sentido da natureza, ou se há um, porque não é obra nossa). O conceito de fascismo exige investigar sua historicidade.
Umberto Eco dizia de um “fascismo eterno”, encontrável ao longo da história: culto à tradição no helenismo, reação à Revolução Francesa, recusa da modernidade, irracionalismo, medo da diferença, racismo, busca do consenso, ressentimento social, nacionalismo, elitismo, heroísmo, machismo, populismo, inexistência de direitos individuais. Resta entender por que tudo isso amalgamou-se singularmente e no mesmo momento, a partir do primeiro pós-guerra, como uma tremenda força social e política.
Cada um dos fenômenos a que Umberto Eco se refere requer historicidade. Agregar sob uma categoria genérica helenismo e reação à Revolução Francesa nada acrescenta ao conhecimento desses fatos e ao conhecimento do fascismo. A perseguição aos judeus na Inquisição foi uma coisa, no nazismo outra, a noite de São Bartolomeu uma, a noite dos cristais outra. Sem historicidade temos uma confusa miscelânea de fenômenos diversos.
Na concepção de Robert Paxton (What is fascism?) o fascismo decorre de uma sensação de crise avassaladora que não se resolve por soluções tradicionais; o primado do grupo, cujos deveres se sobrepõem a qualquer direito; a convicção de que o grupo é vítima, o que justifica a anomia moral ou legal em relação aos inimigos internos ou externos; recusa do liberalismo, medo do conflito de classes e influência estrangeira; a busca pela pureza da comunidade pela violência; autoridade de chefes masculinos em que um deles é o líder supremo que conduz o grupo ao seu destino histórico; o direito darwiniano do mais forte.
Há vários problemas aí, ainda que seja uma boa descrição dos fenômenos que o fascismo faz emergir. “Grupo” é uma abstração. Não tem significado como categoria dialética e sociológica. Não se trata de “medo” da luta de classes. Pelo contrário, o fascismo é uma manifestação extrema da luta de classes. O “grupo”, o que é facil e empiricamente verificável, localiza-se exatamente na pequena burguesia, antiga e nova – a classe média.[i]
Análises freudianas também se valem da expressão “grupo”, palavra coringa para quem não enfrenta a questão pelo viés de classe. Tales Ab’ Sáber, em artigo publicado no site A terra é redonda, diz: “quem leu Freud pensando sobre grupos sabe como o líder, que está no lugar do “ideal do eu”, uma das dimensões do “superego”, tem poder de hipnotismo sobre o grupo massivo que domina”. Tales Ab’Sáber afirma que Freud é odiado por cientistas políticos convencionais que desdenham da natureza psíquica do fascismo. Na verdade bons cientistas políticos veem a dimensão de classe do fascismo. Por que se origina em certa parcela da sociedade burguesa? Qualquer concepção freudiana de fascismo precisa enfrentar essa questão.[ii]
Mas no campo do materialismo dialético também houve graves dificuldades. O Komintern stalinista, após abandonar o que já foi denominado “a longa noite do social-fascismo” (a social-democracia entendida insanamente como linha auxiliar ou ala esquerda do fascismo) sustentou o conceito de “ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro”, fórmula Stalin – Dimitrov aprovada no 3º. Congresso, 1935. O poder do capital financeiro capturava a massa pela demagogia (Dimitrov). Se fosse apenas isso não haveria uma dominação de novo tipo.
Nos fascismos italiano e alemão se podia ver a hegemonia do capital financeiro, mas o conceito da Internacional era de um simplismo atroz. O poder das classes dominantes não é algo equivalente ao demiurgo platônico, capaz de moldar rigorosamente a experiência, ou a de um deus ex machina que arbitrariamente resolve a trama. O conceito do Komintern expressava uma relação mecânica, economicista, sem qualquer traço de análise dialética que pudesse estabelecer por que a sociedade burguesa gera o fascismo, porque ele sai das suas entranhas como o Alien do Oitavo passageiro. Ignora o complexo processo político e social que está na sua base e que não se resolve pelo singelo conceito de demagogia.
2.
Somente mediante categorias do materialismo histórico e dialético encontramos respostas para “o que é o fascismo” que não se esgotam na descrição do fenômeno ou em abstrações como “grupo”. Na sociedade burguesa movimentos de massa eram os dos trabalhadores, os da pequena burguesia democrática, dos oprimidos pelo capitalismo: a primavera dos povos em 1848, a Comuna de Paris, os inúmeros movimentos revolucionários ou reivindicatórios de organizações de trabalhadores no curso do século XIX e século XX. O fascismo é o fenômeno de sentido inverso: movimento de massa de preservação da sociedade burguesa, com núcleo na classe média, direcionado ideologicamente para a exclusão social, política, jurídica e física de certa parcela da sociedade.
É uma ruptura com a ideologia burguesa clássica. Retorno a formas ideológicas pré-capitalistas e pré-iluministas, agora a serviço da conservação da sociedade burguesa. No 18 de brumário de Luís Napoleão Marx descreve o início desse processo: “A burguesia tinha a noção correta de que todas as armas que ela havia forjado contra o feudalismo começavam a ser apontadas contra ela própria, que todos os recursos de formação que ela havia produzido se rebelavam contra a sua própria civilização, que todos os deuses que ela havia criado apostataram dela. Ela compreendeu que todas as assim chamadas liberdades civis e todos os órgãos progressistas atacavam e ameaçavam a sua dominação classista a um só tempo na base social e no topo político, ou seja, que haviam se tornado socialistas”.
Entre outras, armas que a burguesia havia forjado contra o feudalismo eram as bandeiras de liberdade e igualdade que, por decorrência lógica, somente se concebem como totalidade, inclusão. Formas políticas representativas, Parlamento, liberdades públicas. As raízes do bonapartismo estão no “conflito entre a forma política e o conteúdo social da dominação da burguesia”, na expressão de Herbert Marcuse.[iii]
As graves crises econômicas e sociais decorrentes da guerra imperialista levaram a uma onda revolucionária: Rússia bolchevique, Hungria, Alemanha, Itália. A à reação a ela, o fascismo, parte da ruptura com a clássica ideologia burguesa no ponto em que o bonapartismo que Marx analisou a havia deixado e conduz essa ruptura às últimas consequências por um aggiornamento de formas ideológicas pré-capitalistas e pré-iluministas. A ruptura bonapartista que era basicamente de forma política passa a ser também social e cultural.
John Cammett, que foi o grande divulgador de Gramsci nos EUA, sintetizou precisamente as teorias marxistas sobre fascismo: (1) movimento reacionário da burguesia industrial e latifundiários; (2) expressão do imperialismo do século XX; (3) movimento essencialmente pequeno burguês em suas origens; (4) movimento irracional expressando uma crise da civilização ocidental. Acrescentou que a maior parte das análises marxistas se assentam sobre as duas primeiras, que houve bons estudos sobre a terceira nos anos 20 do século passado e que a quarta é frequentemente característica de estudos liberais, mas “o fascismo é certamente todas essas coisas”.
Se se esgota o conceito de fascismo em mera dominação de classe não se tem nenhuma novidade e não se tem um conceito específico. É sempre um movimento de classe média em suas origens que, alcançando o poder ou ainda na condição de movimento, estabelece um vínculo político com as classes dominantes ou fração dela, sem prejuízo de alguma autonomia. Quando no poder subordina-se aos interesses das classes dominantes ou fração delas.
No informe ao Pleno Ampliado do Komintern, 1923, Clara Zetkin [iv] analisa a eclosão do fascismo na Itália como reação de novo tipo, não mais a conhecida repressão contra organizações de esquerda e trabalhadores. Era diferente, por exemplo, do terror de Horty na Hungria, dizia Zetkin. Na Hungria fora uma vingança levada a cabo por uma casta de oficiais feudais que executou 5 mil pessoas. Mas o fascismo não repousava sobre uma pequena casta: “toma a forma de um movimento de massas de ampla base, composta não apenas da pequena-burguesia e de pequenos camponeses, mas também de forças proletárias não esclarecidas”.
A guerra, prosseguia Zetkin, havia destruído a economia capitalista, provocado o empobrecimento do proletariado, a proletarização das massas pequeno e médio burguesas. O reformismo ou a carência de ousadia das lideranças sindicais, a falta de direção adequada dos partidos de esquerda as jogou nos braços do fascismo. “Aos milhares se juntaram ao fascismo. Transformou-se em um asilo para todos os desabrigados políticos, socialmente desenraizados e desiludidos”. Adotaram a ideia de nação e de um Estado que estaria acima das diferenças entre partidos e classes.
Para a burguesia, afirmava Zetkin , tratava-se de reconstruir a economia capitalista e manter sua dominação de classe, exploração e opressão sobre os trabalhadores. O Estado havia perdido a capacidade financeira e a autoridade moral. A burguesia precisava de um instrumento de força extralegal e paramilitar, o que foi oferecido pelo aglomerado heterogêneo que constitui a turba fascista. O fascismo tinha dois traços essenciais: um programa revolucionário fraudulento, que se ligava de forma extremamente esperta com os humores, interesses e necessidades de amplas camadas sociais, e a violência e terror.
No artigo O Povo dos macacos, janeiro de 1921, publicado no Ordine Nuovo, dizia Gramsci que o “fascismo era a última representação oferecida pela pequena burguesia urbana no teatro da vida política nacional”.[v] A decomposição da pequena burguesia se iniciara na última década do século XIX. Com o desenvolvimento da grande indústria e do capital financeiro convertera-se em pura classe política especializada no cretinismo parlamentar. Agarrava-se ao Parlamento que se transformou em ninho de charlatanismo e escândalos, meio para o parasitismo.
A pequena burguesia, prosseguia Gramsci, vendo-se longe de recobrar uma função produtiva, tentava de todas as formas conservar uma posição de iniciativa histórica, imitando os trabalhadores ao sair para as ruas. Era uma projeção da selva de Kipling, do povo dos macacos, que se acreditava superior aos outros povos da selva, “possuir toda inteligência, toda a intuição histórica, todo o espírito revolucionário, toda a sabedoria do governo”. Pensava ter acabado com a luta de classes, ter tomado a direção dos trabalhadores e camponeses, ter substituído a ideia de socialismo por uma “estranha e fantástica mistura ideológica de imperialismo nacionalista, de verdadeiro revolucionarismo e de sindicalismo nacional”.
A ação da pequena burguesia convertia-se oficialmente no fascismo com consequências para a estabilidade do Estado: corromper e arruinar o parlamento, o exército, a polícia, a magistratura.[vi] Os proprietários acreditavam que podiam se defender melhor da ofensiva da classe revolucionária “abandonando as instituições do seu Estado aos caprichos histéricos do povo dos macacos, da pequena-burguesia”.
Em conclusão, dizia Gramsci que a pequena burguesia mostrava definitivamente sua verdadeira natureza de escrava do capitalismo, da grande propriedade latifundiária e da contrarrevolução. Havia substituído a “autoridade” da lei pela violência privada.
Nas Lições sobre o Fascismo Palmiro Togliatti reproduz uma estatística do III Congresso do Partido Nacional Fascista (novembro de 1921) que escancara a composição de classe dos filiados. É visível que as qualificações não têm exatamente rigor metodológico (possivelmente declaradas pelos próprios filiados), mas são bastante indicativas. Entre os 151 mil membros havia 14 mil comerciantes, 4 mil industriais, 18 mil proprietários de terras, 21 mil estudantes e professores, 10 mil autônomos, 7 mil funcionários públicos, 15 mil funcionários de escritórios, 25 mil trabalhadores e marinheiros, 27 mil trabalhadores agrícolas.
A denominação “trabalhador agrícola”, o maior número, de acordo com Togliatti abrangia a pequena e média burguesia rural, especialmente da Emília “que no primeiro momento foram sua [do fascismo] principal base de massa” [vii]. Togliatti põe em dúvida o número de 25 mil trabalhadores e marinheiros, mas “certamente não determinavam o caráter do partido”. Mesmo admitindo esse número como correto, constituía 16,5% dos filiados. Era um partido representativo da grande e pequena burguesia – comerciantes, industriais, proprietários agrícolas, estudantes (que, claro, não eram os filhos dos trabalhadores), professores, autônomos, funcionários públicos, funcionários de escritório. A pequena burguesia respondia pelo caráter de massa.
Em uma carta a um correligionário, datada de 1931, que lhe perguntava o que era, afinal, o fascismo e como diferenciá-lo de outros regimes repressivos sob o capitalismo, Trotsky dizia que nem todas as formas de ditadura contrarrevolucionárias eram fascistas. O Komintern considerava fascista a ditadura de Primo de Rivera (1923-1930) na Espanha. Não era. O movimento fascista na Itália fora um movimento de grandes massas, plebeu na origem, sob a direção e com financiamento de grandes capitalistas. Surgiu da pequena burguesia e incluía também massas proletárias.
Já Primo de Rivera era um militar de alto posto e tomou o poder com auxílio das forças militares e do aparato do Estado. Na Alemanha o movimento era análogo ao da Itália, movimento de massa com o uso demagógico de ideias socialistas, necessário para a criação de um movimento de massa. A nova classe média – funcionários do Estado, funcionários privados – podia compor essa base de massas.
Em um esclarecedor texto de Ernest Mandel (A teoria do fascismo em Leon Trotsky) temos: “Tal movimento de massas apenas poder ser construído na base da pequena-burguesia, a terceira classe social da sociedade, que, na sociedade capitalista, se encontra cabo do proletariado e da burguesia. Se esta pequena-burguesia é atingida duramente pela crise estrutural do capitalismo maduro, de modo a cair no desespero (inflação, falência das pequenas empresas, desemprego maciço de diplomados, técnicos e empregados das categorias superiores, etc.), surgirá, polo menos numa parte desta classe, um movimento tipicamente pequeno-burguês mistura de reminiscências ideológicas e rancor psicológico, que alia a um nacionalismo extremo e a uma demagogia anticapitalista violenta, polo menos em palavras, uma profunda hostilidade em relação ao movimento obreiro organizado («nem marxismo, nem comunismo»). Desde que este movimento, que se recrutou essencialmente entre os elementos desclassados da pequena-burguesia, recorre à violência física contra os assalariados, e a suas ações e organizações, um movimento fascista tem nascido. Após uma fase de desenvolvimento independente, necessário para conseguir uma influência de massa e começar ações de massa, torna-se em seguida indispensável o apoio financeiro e político de sectores importantes do capital monopolista para chegar à tomada do poder”.
3.
Angelo Tasca, em Nascita e avvento del fascismo, transcreve carta escrita por um estudante a um jornal de esquerda em pleno biennio nero, o terror fascista de 1920 – 1921 que conduziu Mussolini ao poder. Era um típico membro de squadra d’azione, milícia fascista. Expõe cruamente a barbárie movida pelos “preconceitos, ódios, interesses, motivos que armam os braços do chefe fascista quando não é simplesmente um mercenário ou bandido” (Tasca). O que era – o que é – a ideologia fascista está nela em toda sua crueza. Mostra um sentimento de casta pré-capitalista em pleno capitalismo que se faz ódio: “Conosco estão os oficiais do exército que nos fornecem armas e munições. Somos potente e inteligentemente organizados. Temos entre as suas fileiras informantes e por isso podemos planejar melhor nossas ações sem graves riscos. Nós fazemos com que a polícia os desarme antes de ir ao encontro de vocês, não por medo, porque nos dão pena, mas porque o nosso sangue é precioso e não pode ser derramado contra a turba abjeta e vil. A Itália não pode ser bolchevique. Não é um país industrial. Os operários devem se conformar com o trabalho no campo. Colocaremos as suas organizações para explorar as forças hidráulicas e os demais mandaremos para o campo para cultivar as regiões pantanosas em que grassa a malária; e assim, ainda que enriquecendo o país, a chuva cairá sobre seus furúnculos revolucionários. É tempo de terminar esse luxo de camponeses que vestem suas filhas de seda, mais bem trajadas do que as damas mais ilustres da burguesia. Se houvesse um homem verdadeiramente capaz e fiel entre vocês, não tardaríamos em aprisioná-lo e (por que não?) eliminá-lo, já que os fins justificam os meios”.
A classe média é afetada pelo desenvolvimento em si do capitalismo e pelas suas crises. A concentração do capital sufoca a antiga pequena burguesia. A nova pequena burguesia é dependente da grande burguesia, sua assalariada ou prestadora de serviços, condição que a coloca em situação de instabilidade e insegurança. No entanto ambas estão ideologicamente presas à sociedade burguesa, projetam-se no imaginário da grande burguesia, anseiam a ascensão a ela. O seu sentimento de superioridade em relação aos trabalhadores nutre-se de restos ideológicos pré-capitalistas: o trabalhador é inferior pela ordem das coisas.
Gravemente atingida pela estrutura social que quer preservar, a classe média enreda-se em uma contradição que nunca pode ser resolvida racionalmente. Disto resultam dois vetores que impulsionam a sua parcela reacionária: o anticomunismo e a fixação em sujeitos da imputabilidade que cumprem a função ideológica de absolver o capitalismo, já que superá-lo está absolutamente fora de seu horizonte ideológico. Mitos, superstições, preconceitos, crenças irracionais emergem como verdades nesse processo.
São espantalhos que protegem o capitalismo: não é o capitalismo, mas os maus capitalistas, entre eles os judeus, mas também todos os judeus, particularmente na Alemanha de forte tradição antissemita. As “raças impuras”. Forja-se um padrão, um “normal” social, étnico, político e o que está fora dele é doença ou crime que respondem pelos males sociais. Torna-se alvo do ódio pelo qual a classe média de baixa extração moral e cognitiva dá vazão ao seu ressentimento. Os inimigos da sociedade “sadia e normal” são desumanizados e então podem ser excluídos jurídica, política e fisicamente. Instaura-se a anomia moral.
4.
Nos primeiros meses do governo Mussolini a promessa de proteção legal para a jornada de 8 horas foi completamente desfigurada por centenas de exceções e extinta para ferroviários, funcionários dos correios, comunicações e transportes. A promessa de salário-mínimo resultou em reduções salariais de 20 a 30% em média, chegando a 60% em certos casos. Políticas de proteção social para idosos, enfermos e doentes abolidas; cortes no orçamento para as agências de emprego e apoio aos desempregados; empresas públicas entregues a administradores privados; a manufatura de fósforos, que era monopólio estatal, passou a investidores privados, assim como entregas postais, indústrias telefônicas, rádio, telégrafos e ferrovias; a reforma tributária que seria destinada a taxar progressivamente o capital eliminou impostos sobre bens de luxo, carros, carruagens e se planejava uma ampliação dos impostos indiretos; foi revogada a exigência de que títulos tivessem o nome dos possuidores, facilitando a vida dos sonegadores de impostos (dados constantes do já referido informe de Clara Zetkin no ao Komintern, 1923).
Hitler tornou-se chanceler em 30 de janeiro de 1933. Éric Vuillard descreveu em A ordem do dia a reunião de 20 de fevereiro de 1933, em uma sala do Reichstag, entre Goering, presidente do Reichstag, Hitler e “vinte e quatro senhores”: “Goering deu então a volta na mesa, com uma palavra para cada um, segurando cada mão com um apelo indulgente. Mas o presidente do Reichstag não veio somente acolhê-los, ele rosna algumas palavras de boas-vindas e logo evoca as próximas eleições de 5 de março. As vinte e quatro esfinges o ouvem atentamente. A campanha eleitoral que se anuncia é determinante, declara o presidente do Reichstag, é preciso acabar com a instabilidade do regime; a atividade econômica exige calma e firmeza. Os vinte e quatro senhores balançam religiosamente a cabeça (…) E, se o partido nazista conseguir a maioria, acrescenta Goering, estas eleições serão as últimas pelos dez anos seguintes; e até mesmo – acrescenta com uma risada – por cem anos. Um movimento de aprovação percorreu o ambiente”.
Hitler entra na sala e discursa meia hora. “O cerne da proposta se resumia a isto: era preciso acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir os sindicatos e permitir que cada patrão fosse um Führer em sua empresa”. Hitler retira-se e os vinte e quatro senhores fazem o dinheiro jorrar. “Não se chamam Schnitzler, nem Witzleben, nem Schhmitt, nem Finck, nem Rosterg, nem Heubel, como a certidão de nascimento nos incita a crer. Eles se chamam BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken. É por esses nomes que nós os conhecemos”.
Os primeiros meses do governo Mussolini e a cena descrita por Vuillard ilustram e sintetizam o sentido do fascismo: um movimento ultrarreacionário, originado na classe média, ganha o Estado e o oferece à burguesia segundo um modelo bonapartista levado às últimas consequências.
5.
Em que medida esse quadro se reproduz neste Brasil do século XXI? Em 12 de junho de 2013 Arnaldo Jabor, que aparecia diariamente no Jornal Nacional em inserções de tom panfletário ridicularizando o que não lhe parecesse suficientemente direitista, tratou das manifestações do Movimento Passe Livre (MPL) então em curso: “no fundo tudo é uma imensa ignorância política. É burrice misturada a um rancor sem rumo. Eles [os manifestantes] são a caricatura violenta da caricatura de um socialismo dos anos 1950 que a velha esquerda ainda defende aqui”.
A fala de Jabor era um prenúncio do que se tornaria nos anos seguintes o clima político. O adversário não era alguém que tinha uma visão de mundo diferente, que se podia respeitar e com quem se podia debater. A linguagem vulgar fazia do oponente um ser subqualificado e nocivo. Daí espectadores podiam dar um passo pequeno para transformá-lo em inimigo a ser destruído. Os insultos eram abundantes em um comentário de cerca de 1 minuto: ignorantes, burros, violentos, caricatos, rancorosos.
A opinião de Jabor na edição de 17 de junho do Jornal Nacional sofreu, no entanto, uma estranha metamorfose: “uma juventude que estava calada desde 1992 acordou, abriram (sic) os olhos e viram (sic) que temos democracia, mas uma república inoperante. Os jovens despertaram porque ninguém aguenta mais uma república paralisada por interesses partidários ou privados. Se tudo correr bem, estamos vivendo um momento histórico lindo e novo. Os jovens terão nos dado uma lição”.
Em cinco dias o que era uma “imensa ignorância política”, “burrice”, passou à condição de prelúdio de um momento histórico “lindo e novo”. Note-se a frase “república paralisada por interesses partidários”. Uma república sem partidos? Vaga, propiciava um viés para quem não apreciasse formas políticas liberais.
Em O lulismo em crise André Singer conta sua perplexidade diante da enigmática capa da Veja após as tumultuadas manifestações de 13 de junho. Ao comentar a afirmação segundo a qual no “fim de semana dos dias 15 e 16 de junho” houve “uma ostensiva mudança de abordagem nos meios de comunicação (tanto nos meios de comunicação de massa como nas redes sociais)”,[viii] Singer recorda-se daquela capa com o título “A revolta dos jovens” e do intrigante subtítulo: “Depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da criminalidade?” A matéria era crítica, caracterizando os manifestantes como “jovens de esquerda da classe média alta que nunca tinham andado de ônibus”, mas havia um estranho contrabando (considerando o sentido do texto): concluía que apesar de tudo era preciso ouvi-los porque “a razão de fundo era a descrença na representação, aí incluídos os partidos e os políticos”.[ix] Quanto ao subtítulo, “corrupção e criminalidade”, nada havia no texto. Conclui Singer: “fiquei (e permaneço ao rever a edição, cinco anos depois) com a sensação de que havia, naquela capa, uma senha, mais do que uma mera exposição”.
Junho de 2013 não foi um evento. Foram manifestações distintas de forças políticas e sociais que contingências fizeram ocupar o mesmo tempo e espaço. Algo como se o comício da Central do Brasil e a Marcha da Família de 1964 tivessem se mesclado no mesmo dia e nas mesmas ruas. O movimento progressista liderado pelos jovens do MPL e uma massa espontânea e desorganizada de classe média protofascista cuja presença foi detectada por setores das classes dominantes, que passa a nutri-la. Entende-se a metamorfose nos comentários de Jabor e a “senha” na Veja a que Singer alude.
Pesquisa Datafolha sobre a manifestação de março de 2016 a favor do impeachment de Dilma Roussef, 500 mil pessoas na avenida Paulista, apurou que 57% eram homens, a idade média 45,5 anos, 77% tinham ensino superior, 82% pertenciam à população economicamente ativa, 77% eram brancos, 1 em cada 3 manifestantes ganhava mais de 10 salários-mínimos. O governo Dilma era ruim ou péssimo para 98% e 79% haviam votado em Aécio Neves. 96% opinaram que era correta a condução coercitiva de Lula determinada por Sergio Moro. O caráter de classe era evidente: homem, branco, com ensino superior e alta renda. Embora brancos fossem 46% da população, no ato compunham mais de dois terços dos manifestantes. Como é próprio de sociedades que conheceram a escravidão, etnia e classe social guardam correspondência. Burguesia e classe média brancas, trabalhadores predominantemente negros.
Vê-se desde então ódio de classe, ódio aos trabalhadores, intolerância à diferença, racismo, machismo, sexismo, o conceito de nação excludente de parte da sociedade, rejeição a formas políticas liberais. A liderança de Jair Bolsonaro organizou na consciência da massa de classe média esses elementos e o protofascismo dela fez-se fascismo pleno. A grande burguesia abandona seus representantes e ideólogos (O PSDB. Vide mais uma vez o 18 de brumário, de Marx) e apoia o fascismo de Bolsonaro em 2018. A fórmula clássica do fascismo: aliança entre classe média reacionária e classes dominantes. Parcela das classes dominantes vê hoje Bolsonaro como disfuncional. Parcela persiste no fascismo.
Quando o fascismo avança parte de nós morre. Derrotá-lo significa sobreviver na existência física, política, social e cultural. É muito, pois, o que representa a vitória de Lula neste momento, mas sempre haverá nas entranhas da sociedade burguesa o oitavo passageiro. Dizia Gramsci que a história ensina mas precisa ter discípulos. Para o resto de nossas vidas haverá a tarefa do antifascismo; mas para que nunca mais haja fascismo é preciso que a humanidade se liberte do capitalismo.
*Marcio Sotelo Felippe é advogado, ex-procurador geral do Estado de São Paulo, pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo.
Notas
[i] Para os conceitos de antiga e nova pequena burguesia v. Poulantzas, Fascismo e Ditadura. A antiga é constituída por pequenos empreendedores, comerciantes ou industriais, negócios familiares ou que escassamente empregam mão de obra. A nova é composta pelos assalariados do processo de produção e de circulação do capital, bancos, seguros, publicidade, funcionários públicos. A distinção, como nota Poulantzas, já fora mencionada por Lenin.
[ii] Rubens Casara em Bolsonaro o mito e o sintoma trabalha com categorias psicanalíticas mas detém-se também no papel da classe média em aspectos importantes para a compreensão do fascismo no Brasil neste momento.
[iii] Prefácio ao 18 de brumário, edição da Boitempo Editorial.
[iv] Zetkin, Clara. Como nasce e morre o Fascismo. Sâo Paulo: Autonomia Literária, 2019
[v] Gramsci, Antonio. Sobre el fascismo. Org. Enzo Santerelli. México DF: Ediciones Era, 1979
[vi] A frase é perfeita para o Brasil pós 2013.
[vii] Id.ib. Paginação irregular
[viii] As frases entre aspas foram colhidas por Singer em A luta contra o aumento, Elena Judensnauder et all. Id. ib.
[ix] Id. ib..
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