Somos 70%?

Imagem: ColeraAlegria
image_pdf

Por KÁTIA GERAB BAGGIO*

Sem ilusões. A luta será árdua. Muito árdua

A despeito das inconsistências que podem existir em consultas feitas somente por telefone, o que a pesquisa Datafolha divulgada no dia 25 de junho mostrou é que não “somos 70%”, infelizmente. A pesquisa identificou que 32% avaliam Jair Bolsonaro como ótimo ou bom, 23% avaliam como regular e apenas 44% julgam o “presidente” como ruim ou péssimo (não consigo deixar de usar aspas no caso de Bolsonaro).

Sim, apenas 44%, pois esta porcentagem é baixíssima diante de um desgoverno absolutamente desastroso e predador como o de Bolsonaro. E que 23% considerem o “presidente” como regular significa que não fazem, efetivamente, oposição a Bolsonaro. Ou seja, que poderiam elegê-lo novamente.

A base fanatizada de Jair Messias provavelmente não passa de 15 ou 20% da população, o que já é muito preocupante. São os que acham Bolsonaro ótimo. Mas há outro grande problema: naquela parcela da sociedade brasileira que considera o “presidente” bom ou regular. Sendo assim, a oposição a Bolsonaro, de fato, não chega à metade da população.

É uma tragédia descomunal, em um país que tem cerca de um terço de evangélicos – a maioria constituída de frequentadores de igrejas pentecostais ou neopentecostais, isto é, fundamentalistas e obscurantistas –, sem contar o forte conservadorismo de setores do catolicismo, espiritismo, judaísmo etc.

Houve um retrocesso significativo nos últimos anos, em oposição a uma sociedade laica. Há uma religiosidade profundamente conservadora no Brasil, que empurra o país para o abismo do obscurantismo. Mudar essa tendência não será uma tarefa de curto prazo. Exigirá muita educação crítica e muita formação política consistente.

Dizer que “somos 70%” é uma frase saída de uma visão superficial da realidade, mais próxima do discurso motivacional do meio empresarial do que da análise política.

O que escrevi acima significa que eu acredito que Jair Bolsonaro vai terminar o seu mandato?

Não necessariamente, pois os absurdos desse desgoverno são incontáveis; os crimes de responsabilidade são inúmeros; as consequências sanitárias, sociais e econômicas da pandemia de Covid-19 ainda serão muito piores; e as investigações em curso poderão revelar fatos que tenham potencial para destruir grande parte do apoio que Jair M. Bolsonaro ainda tem.

Mas nada será fácil, em um país que foi contaminado pelo vírus do ódio e do obscurantismo. Um país de Malafaias, de igrejas “universais”, de Datenas, de uma parcela ultraconservadora de católicos, de milhões que votaram — sem desconhecer os fatos — em um candidato (hoje “presidente”) que defende ditadura e tortura.

Construir um país menos desigual estava sendo dificílimo. Reconstruir tudo o que está sendo destruído por esse desgoverno de neofascistas, ultraliberais e entreguistas, será muito mais.

Apesar de tudo isso, se perdermos a esperança na possibilidade da reconstrução, estaremos entregando o país ao que de pior a história brasileira já produziu: autoritários, neofascistas, obscurantistas, racistas, homofóbicos, misóginos, entreguistas e todos os que são favoráveis a um capitalismo absolutamente violento e predador.

Mas não se pode ter ilusões. A luta será árdua. Muito árdua.

* Kátia Gerab Baggio é professora de História das Américas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES