Terrorismo militar

Paulo Nash, Totes Meer (Mar Morto), 1940–1
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Por LISZT VIEIRA*

A base doutrinária para justificar a tentativa de ações de terrorismo por parte de militares instalados na cúpula do poder

A história da República no Brasil é permeada de golpes, intervenções, pronunciamentos e ameaças militares contra o poder civil. Da proclamação da República em 1889 até a Golpe de 1964, praticamente não houve poder civil sem ameaça militar. Os exemplos são numerosos, como, entre outros, a chamada Questão Militar, na República Velha, a Revolução de 30 e o golpe de 1937 que instalou a ditadura do “Estado Novo”. No caso do Estado Novo, cabe destacar o Plano Cohen, um documento forjado por militares brasileiros com a intenção de instaurar a ditadura em novembro de 1937. O Plano, misturando anticomunismo com antissemitismo, foi fraudulentamente atribuído à Internacional Comunista, que, pretensamente, buscaria derrubar o governo por meio de tumultos.

O jornal Correio da Manhã, em manchete de primeira página, anunciava em 1/10/1937 uma sensacional fake news:

As Instrucções do Komintern para a acção de seus agentes contra o Brasil

O tenebroso plano foi apprehendido pelo Estado-Maior do Exercito

No período democrático após o término da Segunda Guerra em 1945 e antes do golpe militar em 1964, tivemos tentativas frustradas de golpe. Foi o caso da Revolta de Jacareacanga em 1956, um pequeno ensaio de golpe militar, e da Revolta de Aragarças em 1959, feita principalmente por militares da Aeronáutica e Exército, ambas contra o governo de Juscelino Kubitschek. Antes disso, encastelados na chamada “República do Galeão” e sob o pretexto de combater a corrupção, os militares tentaram em 1954 um golpe de Estado para derrubar o governo eleito de Getúlio Vargas. Com o suicídio de Vargas, o golpe foi adiado dez anos.

Os militares brasileiros sempre tiveram uma tradição golpista, mas não necessariamente uma tradição terrorista, envolvendo militares diretamente com ações terroristas. A partir do Golpe de 1964, porém, os militares começaram a ir além da repressão política e das torturas e assassinatos praticados como parte da “normalidade institucional”. Isso também existiu em épocas anteriores. Mas a ditadura militar inaugura uma novidade. Não se tratava apenas de prender, torturar e matar opositores do regime, ações que viraram rotina nos governos militares após 1964. Alguns militares do Alto Comando conceberam e organizaram ações terroristas.

Enquanto a prática de atentados, visando matar uma pessoa como alvo específico, é mais comum em grupos armados de esquerda, as ações terroristas, visando matar um grande número de pessoas indeterminadas, é típico de ato de guerra ou de organizações de direita. Por exemplo, uma bomba que explode no metrô é uma ação terrorista que mata pessoas indeterminadas. No caso da ditadura militar no Brasil pós 64, os militares se consideravam em guerra contra o inimigo interno. Essa foi a base doutrinária para justificar a tentativa de ações de terrorismo por parte de militares instalados na cúpula do poder.

Vamos citar aqui apenas dois casos que merecem ser relembrados para compreender a atitude atual dos militares em relação aos desmandos criminosos do governo Bolsonaro, que apoiaram durante quatro anos e agora parecem atônitos com os escândalos que estouraram e que antes fingiam ignorar.

O primeiro caso foi a ordem dada, em junho de 1968, pelo Brigadeiro João Paulo Moreira Burnier para o capitão Sergio Ribeiro, conhecido como Sergio Macaco, botar uma bomba no Gasômetro da cidade do Rio de Janeiro, o que iria provocar a morte de milhares de pessoas.  Ele se recusou a cumprir as ordens do brigadeiro Burnier para explodir o gasômetro, dinamitar uma represa e jogar 40 líderes políticos no oceano. O objetivo era botar a culpa na esquerda. O capitão Sergio Macaco, que se notabilizou nas missões de salvamento de pessoas como integrante do esquadrão paraquedista de resgate do projeto Para-Sar, recusou-se a cumprir a ordem, foi expulso da Aeronáutica e nunca foi reintegrado, nem mesmo com o apoio posterior do Brigadeiro Eduardo Gomes, um ícone da Força Aérea.

O segundo caso foi o chamado Atentado do Riocentro, no Rio de Janeiro. Na realidade, tratava-se não de um atentado, mas de uma ação terrorista de grande porte perpetrada em 30/4/1981 por setores do Exército para incriminar os opositores da ditadura militar. Um grande evento marcado para aquela noite tinha como objetivo iniciar as comemorações do Dia do Trabalhador, e contaria com a presença de artistas famosos. O objetivo era explodir três bombas no local e com isso incriminar os grupos de esquerda, para cessar o processo de abertura política. Ocorre que uma das bombas explodiu em um carro no estacionamento do Riocentro, matando um sargento e ferindo gravemente o capitão que lhe acompanhava. Havia no veículo outra bomba que não explodiu. Mas uma terceira bomba explodiu na central de energia do local do evento.

Como explicar para o país a morte do sargento Guilherme do Rosário e o ferimento do capitão Wilson Machado, que só não cometeram uma ação terrorista matando milhares de pessoas por uma questão de “acidente de trabalho”? A explosão da bomba no colo do sargento denunciou a tentativa de uma grande ação terrorista por ordem de algum comandante do Exército. O que fazer? O Exército resolveu então inventar uma ação terrorista executada pela esquerda e considerou ambos os militares como vítimas. O sargento foi enterrado com honras militares, como se fosse vítima de um crime de guerra. E o capitão, depois de hospitalizado e curado, passou a trabalhar em atividades administrativas internas do Exército, para não chamar a atenção.

O Exército foi obrigado a abrir um Inquérito Policial Militar (IPM) que, evidentemente, acabou arquivado sem conclusões. Mas, na edição de 23 de setembro de 1987, a revista VEJA publicou documentos secretos do general Golbery, falecido cinco dias antes. Entre eles, figurava uma nota confidencial dirigida ao presidente João Figueiredo em 4 de julho de 1981, em que o então chefe do Gabinete Civil acusava os “chamados DOI-CODI” de estarem infiltrados de terroristas e cobrava do governo o desmantelamento daqueles órgãos. Ou seja, os militares responsáveis pelas torturas e assassinatos nos DOI-CODI durante a ditadura militar, temerosos de perder o poder com a abertura política, passaram a executar atos terroristas. Nunca foram punidos.

Tendo em vista esse histórico, não é de se estranhar que os militares que apoiaram diretamente a tentativa de golpe em 8/1 passado, com a destruição das sedes de poder da República, não tenham até agora sido punidos. Serão algum dia? Os fatos são incontornáveis. O acampamento em frente ao QG do Exército em Brasília reuniu centenas de pessoas, muitas armadas, que dali partiram para o vandalismo nas sedes de Governo. Desse acampamento, partiram também aqueles que tentaram invadir a sede da Polícia Federal e depois colocaram uma bomba no caminhão tanque perto do aeroporto. Na noite de 8/1, oficiais militares impediram a PM de prender os criminosos alojados no acampamento sob a proteção do Exército.

Além da PM de Brasília, cujos comandantes estão hoje presos, alguns militares participaram diretamente da tentativa de golpe em 8/1, ajudando a invasão. Alguns já foram identificados. Não sei se foram processados, mas, pelo que consta, não foram condenados, pelo menos ainda. Serão algum dia? O que fazia a esposa do general Villas Boas junto aos invasores do Palácio do Planalto no dia 8/1? Ela não vai ser convidada a prestar depoimento?

Como se sabe, os torturadores e assassinos dos DOI-CODI não foram incomodados. Mas os militares que apoiaram, direta ou indiretamente, o vandalismo que destruiu as sedes do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, não podem escapar impunes. Isso seria um golpe mortal na frágil democracia brasileira. As Forças Armadas, não só o Exército, estão desmoralizadas pelo apoio às tentativas de golpe do ex-presidente Bolsonaro durante todo seu mandato. As FFAA foram cúmplices da política genocida de saúde que sabotou a vacina e distribuiu pelo Brasil afora remédios inócuos para COVID, como a cloroquina. Foram cúmplices da política de destruição do patrimônio ambiental e cultural brasileiro. O governo passado foi um governo militar com o respaldo total das FFAA, que apoiaram inclusive a tentativa de fraudar as urnas eletrônicas. Chegaram a receber um hacker no Ministério da Defesa sem registro na recepção. Ele declarou que entrou pela porta dos fundos…

Não é nosso objetivo aqui narrar todos os crimes cometidos pelo governo anterior com o apoio dos militares. Pretendemos apenas chamar a atenção das desculpas inventadas pelos militares para se eximirem de suas responsabilidades pelos crimes que apoiaram diretamente, durante e após o governo Bolsonaro. Nem mesmo o tenente coronel que apoiou o contrabando de joias e seu pai, o general muambeiro, foram até agora criticados pelo Exército.

O ex-presidente e sua quadrilha enlamearam a imagem das Forças Armadas, cúmplices da máfia criminosa que assaltou o Brasil nos últimos quatro anos. Cabe ao Poder Civil processar, julgar e condenar os responsáveis, seja quem for. Está mais do que na hora de os militares retornarem aos quartéis para redefinir, com o Poder Executivo a que estão subordinados pela Constituição, uma política atualizada de Defesa para o Brasil e superar, de uma vez por todas, a mediocridade que tem prevalecido nos altos postos de comando militar em nosso país.

Para alguns analistas, os militares estão buscando uma saída honrosa. Mas, em vez de inventar saídas mirabolantes como, por exemplo, o Relatório do Riocentro, a única saída honrosa possível é reconhecer a verdade dos fatos e fazer autocrítica. Mas isso não está no DNA dos militares brasileiros.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).


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