Transformações da arte no Brasil

Rubens Gerchman, Os Habitantes III , 1964, guache sobre papel, 55 cm x 75,2 cm
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Por CELSO FAVARETTO*

Comentário sobre o livro de Paulo Sérgio Duarte.

A ambição de Anos 60 – Transformações da Arte no Brasil é unir reflexão e didatismo, crítica e história. Concebido como trabalho acessível para jovens desejosos de conhecer as transformações artísticas dos anos 1960, propõe-se como uma “introdução à história da arte” e “um estudo sobre as principais questões e linguagens que dominaram aquele momento”. Além disso, pretende oferecer aos especialistas uma oportunidade de refrescar a memória e aferir perspectivas sobre a arte do período.

Operando uma seleção de artistas e obras, de propostas e atividades, Paulo Sérgio articula um campo histórico-crítico, preciso nas referências e na orientação teórica. Embora a intenção não seja produzir um capítulo de história da arte no Brasil, o livro é mais que uma introdução ao período, pois tem no horizonte um entendimento das principais experiências daquele tempo como fundadoras da arte brasileira contemporânea.

A composição de texto reflexivo, informação histórica, biografia de artistas e reprodução de obras resulta em uma interpretação sobre a produção do período, com sentido inequívoco: a afirmação da especificidade da arte brasileira dos anos 1960 em confronto com as experiências americanas e europeias, mediante a crítica às aproximações fáceis que comumente são feitas entre a Nova Figuração brasileira e a Pop Art ou o Nouveau Réalisme. A defesa da autonomia da produção de Antonio Dias, Nelson Leirner, Wesley Duke Lee, Roberto Magalhães, Rubens Gerchman e Vergara, por exemplo, ancora-se nos modos de articular as inovações formais e a figuração da situação histórico-cultural.

Traçando as direções preponderantes das pesquisas dos artistas focalizados e analisando obras, Duarte ressalta a originalidade formal das propostas e o agenciamento surpreendente do imaginário. Entre o ponto de partida das atividades vanguardistas, com a mostra “Opinião 65”, e a explicitação do conjunto das variadas experiências, na exposição “Nova Objetividade Brasileira”, de 1967, delineia-se a “diferença brasileira”.

Os trabalhos dos artistas nacionais apresentavam-se como crítica dos impasses da abstração construtiva e do informalismo, assim como das ideias e realizações das tendências internacionais, Pop, Op, Nouveau Réalisme, Primary Structures, que eram as referências do momento. A ideia de “participação”, surgida das experiências neoconcretas, foi erigida em princípio da posição estética que foi se definindo entre 65 e 67. Nela não mais se distinguiam os modos de efetivação de programas estéticos e exigências ético-políticas. A significação social da arte deveria passar necessariamente pela renovação das formas, dos processos e da própria concepção de arte.

Visando à imbricação de inconformismo estético e social, às transformações estruturais e do comportamento criativo, a participação do espectador e a relação artista-público, no texto “Esquema Geral da Nova Objetividade”, Hélio Oiticica formula os seguintes objetivos das atividades que compunham o que ele denominou “vanguarda brasileira”: vontade construtiva geral; tendência para o objeto pela superação do quadro; participação do espectador; tomada de posição ético-política; ênfase nas proposições coletivas; novas formulações do conceito de antiarte.

As aspirações, os problemas, as ambiguidades e a destinação das experiências, cifradas nesses princípios norteadores das transformações da ideia e da significação da arte, apontavam a existência, naquele momento, de uma produção que estava efetivamente abrindo no Brasil o campo do trabalho contemporâneo. Arte de ruptura, era também arte de fundação. Hélio Oiticica tinha uma clara ideia dessa abertura; não é outra a posição que define com a proposição do experimental, entendido como “elemento construtivo”: “Os fios soltos do experimental são energias que brotam para um número aberto de possibilidades”.

Nessa direção, o autor insiste na relevância do “sentido de construção” propugnado por Oiticica como a marca distintiva e mais característica da arte brasileira até hoje. Compondo abertura estrutural e ação no ambiente, crítica da arte e significação cultural, o peculiar construtivismo desatado nos anos 60 pela vanguarda brasileira ressignificaria as experiências que desde o neoconcretismo vinham provocando mudanças na concepção do objeto e sentido da arte, assim como dos modos de efetivação dos projetos, obras e acontecimentos. Essa orientação construtiva permaneceria mesmo depois que, no início dos anos 70, o conceitualismo e o minimalismo diluíssem as experiências brasileiras específicas pela consonância com o campo experimental internacional.

Na última parte do texto, Paulo Sérgio Duarte aponta aquelas “investigações e experiências” que, “depois do construtivismo”, depois do fechamento das atividades da vanguarda brasileira, teriam fundado e consolidado uma arte brasileira contemporânea, consentânea aos rumos gerais da contemporaneidade. Estes artistas – Oiticica, Lygia Clark, Mira Schendel e Sérgio Camargo –, desenvolvendo um “trabalho de laboratório”, teriam gerado as condições para o enfrentamento, por parte de outros artistas, do desafio surgido na encruzilhada da crítica dos anos 60, das proposições conceituais e minimalistas e dos novos problemas colocados pela mídia. Os artistas surgidos dessas experiências fundadoras, tendo incorporado a herança construtivista, iriam substituir a “violência simbólica” pela constituição dos simbolismos próprios da arte, situando-os no “confronto entre obras de arte e instituições”.

*Celso Favaretto é crítico de arte, professor aposentado da Faculdade de Educação da USP e autor, entre outros livros, de A invenção de Helio Oiticica (Edusp).

Referência


Paulo Sérgio Duarte. Anos 60 – Transformações da Arte no Brasil. Campos Gerais, 324 págs.

 

 

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