Um autêntico filho do neoliberalismo

Imagem: Thgusstavo Santana
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Por GABRIEL BRITO*

Pouco importa se Pablo Marçal será eleito ou não. O sistema político e institucional pode até barrá-lo. Para logo em seguida reiniciar sua gestão da cidade coronelizada pelos grandes capitalistas da urbe

Não há como evitar. Pablo Marçal é o maior fenômeno político-midiático das eleições municipais de 2024. Como se explica neste vídeo de Ícaro de Carvalho,[1] ganhar ou perder o pleito pela prefeitura de São Paulo pouco incide nessa consideração. Pablo Marçal já ganhou, ao menos no que lhe interessa pessoalmente.

Aqui, cabe buscar as razões para seu sucesso, que independem dos resultados eleitorais. É possível que até vejamos a impugnação de sua candidatura, pelos evidentes crimes eleitorais de abuso de poder econômico, como demonstrado pelo comitê de campanha de Tabata Amaral e mesmo investigações jornalísticas que mostram como Pablo Marçal faz de sua campanha eleitoral uma espécie de pirâmide financeira. No fim das contas, seu sistema de trabalho político promove estímulos semelhantes à compra de votos.

No entanto, uma eventual derrota de sua candidatura, pelas urnas ou pela justiça eleitoral, não poderá tocar nas causas da ascensão deste autêntico filho do neoliberalismo. Pois é disso que se trata: Pablo Marçal é um raro case de sucesso de um sistema que impôs à classe trabalhadora a luta individualizada pela sobrevivência.

Massacrada por reformas econômicas ditadas pelo grande capital monopolista e sua ideologia – não há nada de técnico no liberalismo econômico tardio –, o Brasil abandonou sua imensa massa de trabalhadores ao cada um por si, sob a falsa máscara do empreendedorismo, nada mais do que uma atualização da relação capital-trabalho e suas novas formas de subordinação e superexploração (tanto do ser humano quanto da natureza).

De onde surgiu sua base de apoio?

Estamos diante das consequências da reprimarizacão econômica sob orientação do sistema bancário-financeiro e sua acumulação privada de riquezas mediante espoliação da natureza e aplicações financeiras lastreadas nos atuais extrativismos, daí o avanço brutal sobre florestas, rios, terras indígenas etc. Um modelo agrário-financeiro que parece uma digitalização do Brasil do século XIX.

Isso num país altamente urbanizado, com população concentrada em 10 grandes zonas metropolitanas, onde a vida é infernal para a maioria (não à toa, fatias cada vez maiores alegam problemas de saúde mental). A última rodada de privatizações de ativos públicos e estatais, reformas precarizadoras do trabalho e amplificadoras da rotatividade do emprego, a desindustrialização típica do capitalismo dependente, associadas ao avanço da internet como espaço de circulação de produtos e riquezas variadas, criou uma massa inaudita de pessoas desesperadas por estratégias de sobrevivência.

Pablo Marçal e seus cursos de autoajuda que prometem riqueza são produto deste vazio de horizontes sociais e econômicos. Seus seguidores são as pessoas que nosso modelo de capitalismo atirou no campo de batalha sem armas e proteção alguma. Ao contrário de Jair Bolsonaro, é um verdadeiro outsider que pode afirmar de forma crível que o Estado não funciona, pois ele e seus seguidores realmente foram abortados do suposto ideal do progresso.

Vale lembrar a fala de Paulo Guedes na famosa reunião ministerial da gangue de Jair Bolsonaro, em 22 de abril de 2020, início da pandemia: “não tem dinheiro pra empresinha”. Ou seja, não há incentivos reais ao que seria um verdadeiro empreendedorismo, que poderia estar amplamente associado à quarta revolução industrial e uma economia digital-informacional com valor agregado, inclusive nos sistemas de educação e saúde, integração social e sustentabilidade ambiental.

Assim, a pandemia radicalizou um modelo econômico que fragmentou ainda mais a classe trabalhadora e acelerou as novas formas de produção e circulação, mediante plataformas digitais para a massa de trabalhadores(as) e home office para uma parcela um pouco mais qualificada, mas também absorvida pelo aprofundamento da concorrência entre trabalhadores.

“As plataformas digitais de trabalho analisadas foram criadas em um contexto em que o trabalho ocupa todos os espaços da vida […]; em que as entidades sindicais estão extremamente fragilizadas, dificultando suas lutas; em que os Estados-nações são capturados pelas grandes corporações, e são elas que se encontram por trás da plataformização dos serviços; em que a precarização do trabalho é altíssima e as empresas detentoras de plataformas digitais vão intensificá-la ainda mais; enfim, em um contexto em que a racionalidade neoliberal faz crer que não há alternativas ao proletariado, senão aceitar os postos precários de trabalho que lhes são ofertados por benevolência”, define Vanessa Patriota, auditora do Ministério Público do Trabalho, em seu livro Subordinação (mal) camuflada: a dominação capitalista no trabalho em plataformas digitais, em resenha escrita pelo sociólogo do trabalho Ricardo Antunes.

Sua análise dialoga diretamente com as constatações do próprio Ricardo Antunes a respeito deste processo, em seus recentes livros, em especial a coletânea de textos intitulada Capitalismo pandêmico. A crise sanitária da covid-19 foi percebida pelo sociólogo como novo momento de destruição e reorganização produtiva de um capitalismo ainda mais mortífero, manifestado em eventos climáticos cada vez mais extremos, onde o Brasil se tornou palco privilegiado.

Tudo isso significou uma nova etapa do processo de concentração de renda e ampliação da desigualdade, contexto no qual o custo de vida não parou de aumentar. Não à toa esses mesmos trabalhadores acumulam um segundo emprego e se viciam em jogos e bets. Vale tudo pra ampliar a renda. Do outro lado da moeda, uma massa desempregada e subocupada vê essa mesma digitalização de baixo valor agregado da economia destruir o valor e a necessidade de seu trabalho, o que ainda será aprofundado pelo avanço da Inteligência artificial. Isso para não falar da ramificação do crime organizado pelos mais variados setores da economia formal, com a financeirização inerente a este processo.

É daí que surgem os inacreditáveis 13 milhões de seguidores no Instagram do “benevolente” Pablo Marçal, no fim das contas um vendedor de ilusões que não produz absolutamente nada de palpável. Mas tem uma história real de sucesso para vender.

Em terra de cego…

Pablo Marçal é, portanto, o rei dos desalentados, dos sujeitos neoliberais. O cara que deu certo na selva do cada um por si e, de fato, um self-made man. O exemplo a ser seguido pelos milhões de jovens trabalhadores que o capitalismo produziu e ideologizou, mas não incluiu no seu prometido mundo de prosperidade. É o líder do Brasil que as reformas neoliberais, em especial as últimas, produziram. Seus seguidores nada mais são do que pessoas sem horizonte coletivo, solidário, sem CLT e sem aposentadoria.

O rico empresário – ou coach – montou algo parecido com um esquema de pirâmide e recompensa os seguidores que voluntariamente divulgam seus vídeos. No fim das contas, a visualização de seus vídeos em número incomparável é fruto do “empreendedorismo” de um imenso número de subempregados ou jovens ainda desocupados, porém habilidosos usuários das ferramentas digitais, que não têm o menor discernimento ético ou moral das mensagens propagadas. Ou pior: têm exatamente o discernimento ético e moral de Pablo Marçal.

Se nos últimos anos fomos manipulados por robôs, trolls e bots que falsificaram a percepção do real a serviço de velhos parasitas do poder, militares e empresariado incrustrados no Estado, agora “evoluímos” para uma etapa na qual o debate político foi direcionado por um séquito de adolescentes e jovens que querem apenas saber dos 1.000 reais que podem receber como prêmio pelo trabalho de panfletagem digital.

Portanto, pouco importa se Pablo Marçal será eleito ou não. O sistema político e institucional vigente pode até conseguir barrá-lo. Para logo em seguida reiniciar sua gestão da cidade coronelizada pelos grandes capitalistas da urbe. Assim, o mal-estar da nossa civilização será reforçado na população excluída, segregada e precarizada, que seguirá condenada a laborar insanamente pela sobrevivência e criar as mais imprevisíveis estratégias para conquistar aquilo que o sistema, de fato, lhes nega.

*Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do jornal Correio da Cidadania.

Nota


[1] Ícaro de Carvalho é também um produto das novas plataformas de comunicação. Apresenta-se como copywriter de internet, isto é, um redator de marketing, área na qual se aprofundou. Diretamente envolvido na ascensão da produtora neofascista e bolsonarista Brasil Paralelo, e hoje aparentemente desconectado deste setor político, parece habilitado a descrever o fenômeno Pablo Marçal, uma vez que sua própria popularidade nas redes sociais e os produtos que vende em sua empresa O Novo Mercado guardam semelhanças com o personagem central deste artigo. Em suma, mais um filho do processo aqui descrito.


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