Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*
André Mendonça no STF e as muitas versões de Deus com suas consequências para a política e a democracia
Como compreender as manifestações de Deus hoje?
Nosso ponto de partida alicerça-se no pensamento do teólogo brasileiro Leonardo Boff. Para o pensador, experimentar Deus não é falar de Deus aos outros, mas falar a Deus junto com os outros na caminhada humana. Para encontrar o Deus vivo é preciso ir além daquele Deus construído pelo imaginário religioso, esculpido à nossa imagem e semelhança, segundo nossos interesses pessoais e corporativos, aprisionado nas malhas de doutrinas com suas pretensões de enquadrá-lo, submetendo fiéis ao rigor de concepções redutivas e controladoras de suas liberdades e de seus por quês. (Experimentar Deus, a transparência de todas as coisas, Vozes).
Apesar de ser Mistério, mas por ser real e significativo, projetamos imagens dele e construímos representações, mesmo se Deus é algo que não pode ser representado. Deus é identificado com os conceitos que dele fazemos. Em vez de experimentarmos Deus, vivenciamos nossas imagens de Deus. Nesta forma de pensar, concebe-se a palavra de Deus ao modo das palavras humanas; a vontade de Deus como a vontade humana; o poder de Deus como o poder humano. Nessas formas de representação, tudo é assumido por Deus, não havendo lugar para a história humana. Uma concepção antropomórfica de Deus com consequências políticas e religiosas profundas.
Todavia, para uma pessoa mística, o Mistério é um acontecimento a ser acolhido com total disponibilidade; e como tal, não está em oposição à inteligência. Pertence ao Mistério ser conhecido sempre mais e mais. É o ilimitado da razão. Felizmente, há quem procure pensá-lo a partir da existência humana, histórica, aberta, dinâmica e contraditória, onde, de fato, transparece o Mistério com sua dimensão imanente e transcendente. Deus somente é real e significativo para o ser humano se emergir das profundezas de sua própria existência humana no mundo-com-os-outros.
É pela compreensão da historicidade humana que podemos encontrar aquilo que é denominado de imanência e transcendência. Imanência e transcendência são dimensões da realidade humana histórica concreta. A imanência é a situação dada, conjuntural e estrutural; a transcendência é dimensão humana pela qual os humanos ultrapassam tais situações. Elas se encontram unidas no mesmo ser humano concreto. A esse processo unitário e complexo chama-se de historicidade. Portanto, Deus não é um objeto fixo. Não se pode enquadrá-lo nos moldes de paradigmas reducionistas, normativos ou científicos.
Mas como compreender Deus face ao drama de milhões e milhões de inocentes, ao longo dos séculos, que foram e continuam sendo presos, torturados barbaramente por suas convicções libertárias face ao poder opressor religioso, militar, político e econômico; ou aqueles que padecem pela miséria e pela fome devido à injustiça estrutural de classe; como também todas aquelas mulheres vítimas de feminicídio, seviciadas e violentadas em seus corpos pelos senhores da Casa Grande, pelos coronéis Ustras torturadores dos porões das ditaduras, ou pelos maridos e amantes valentões do tempo presente?
Um caminho indicado pelo teólogo Leonardo Boff trata do fato de que para falar em experiência de Deus é preciso assumir uma postura crítica dentro da crise geral de nossas representações sobre o Mistério de Deus. Afinal, nossa época se caracteriza por uma suspeita contra todos os discursos que tentam traduzir o radicalmente decisivo da vida humana. A crítica colocou em xeque todas as ideias sobre Deus por meio do desmascaramento da função político-ideológica, assumida pelas religiões, a fim de justificar o status quo ou para preservar diversos modelos de sociedades desiguais e hierarquizadas. (BOFF, Leonardo. Experimentar Deus, a transparência de todas as coisas).
Um pastor no supremo
A explosão do crescimento de determinadas igrejas e comunidades “carismáticas”, de forte apelo popular, obedece à lógica individualista do Mercado ao submeter a religião à ideologia neoliberal por meio de teologias da prosperidade e do arrebatamento emocional, em vez de desenvolverem uma mística de interiorização que conduza a uma forte crítica do status quo para promover uma profunda transformação pessoal e social. Seus fundadores e líderes são proclamados como “pastores do rebanho”, intérpretes da vontade de Deus para suas comunidades de fiéis. Essas teologias apresentam a vontade de Deus fracionada em inúmeras leis, dogmas, cânones, preceitos cada vez mais minuciosos, de acordo com interesses de poder não explicitamente revelados. Poder é subjugar as coisas aos interesses de uma pessoa, de um grupo, de uma classe, de um sistema político.
No dia 29 de abril de 2020, quando tomou posse como ministro de Bolsonaro, o pastor presbiteriano André Mendonça, definido pelo seu Chefe como “terrivelmente evangélico”, em seu discurso de posse, atribuiu ao presidente da República palavras fortemente carregadas de teor teológico-messiânico, recorrendo à imagem de “profeta enviado por Deus para salvar o seu povo” para categorizar o Capitão, cumprindo o rito político da linguagem estratégica bolsofascista centrada na identificação sistemática de Bolsonaro como Messias prometido.
Em comício no ano de 2017, o Capitão em alto e bom som afirmava seu objetivo nazifascista de transformar a democracia brasileira num Estado terrivelmente teocrático: “Como somos um país cristão, Deus acima de tudo. Não tem essa estorinha de Estado laico não. É Estado cristão! E quem for contra, que se mude! Vamos fazer o Brasil para as maiorias, as minorias têm que se curvar às maiorias. As leis devem existir para defender as maiorias. As minorias se adequam, ou simplesmente desaparecem”. Portanto, ele já deixara claro para todas e todos os cidadãos brasileiros o seu intuito nazifascista de submissão autoritária, na marra, das minorias políticas. Consequentemente, foi eleito pela maioria dos eleitores brasileiros em 2018 com tal plataforma nazifascista.
Já em julho de 2020, o então ministro da Justiça André Mendonça informava que havia solicitado à Polícia Federal abertura de investigação baseado na Lei de Segurança Nacional, escombro famigerado da ditadura militar, contra opositores do governo, em pleno exercício do seu direito à liberdade de expressão. Todavia, um mês antes, em 14 de junho de 2020, a sede do Supremo Tribunal Federal (STF) foi violentamente atacada por bolsofascistas, estimulados por integrantes da estrutura do poder executivo, lançando rojões e fogos de artifícios, para ameaçar a mais alta corte de Justiça, gritando: “Estamos em frente aos bandidos do STF”. Um espetáculo degradante. O pastor presbiteriano André Mendonça, ministro de Bolsonaro, mansamente, com medo de aborrecer o seu Profeta, soltou uma nota oficial na qual não condenou o ataque, e ainda afirmou que as instituições deveriam respeitar aqueles agitadores que perpetraram o ato terrorista.
Na última quarta-feira, 1º de dezembro, foi a vez do Senado brasileiro se alinhar com o projeto teocrático bolsonarista ao aprovar este pastor presbiteriano para ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal. O aparelhamento de Bolsonaro no STF faz parte da sua promessa de campanha de acabar com o estado laico e substituí-lo por um estado cristão. Após defender caninamente o governo quando chefiava a Advocacia Geral da União (AGU), o religioso foi premiado com uma vaga no STF, onde obviamente continuará fiel aos interesses do bolsonarismo.
Em sua manifestação após a aprovação, Mendonça externou: “A primeira reação foi dar glórias a Deus por essa vitória. É um passo para o homem, mas na história dos evangélicos do Brasil é um salto”. Portanto, a ênfase não foi dada nem à Lei, nem ao Estado de Direito, nem à laicidade do Estado brasileiro, mas ao clérigo representante da comunidade evangélica, como se tratasse de um cargo político e não jurídico. Moro já mostrou claramente, com sua nefasta atuação, o estrago para o Brasil quando a toga visa ao poder político pela manipulação do sistema jurídico. O ex-juiz, declarado suspeito pelo STF, foi capaz de vender os interesses estratégicos do país aos EUA, como assumiu inclusive no recente livro de confissão que acabou de publicar.
Finalmente, uma das cenas que mais marcaram o dia da aprovação de Mendonça ao STF foi o vídeo que circulou pelas redes sociais no qual a primeira-dama dá pulos de alegria, chora de emoção pela vitória, orando na língua dos anjos seu agradecimento a Jesus, numa sala onde diversos líderes também se congratulavam por esta manifesta vontade de Deus para a comunidade evangélica. Sabe-se que dos processos que Mendonça deverá julgar no STF está o pedido de investigação de Michele Bolsonaro pela saraivada de cheques recebidos em sua conta do assessor de Flávio Zero Um, Fabrício Queiroz. Com certeza, um motivo a mais para a ardorosa oração da primeira-dama.
Breve enquete sobre o tema
No bojo dessas manifestações, tendo como referência o enfoque dado na primeira parte deste artigo, ocorreu-me realizar uma breve enquete, uma pesquisa relâmpago, no dia seguinte, 02/12, pelo Whatsapp, com um grupo de 30 (trinta) pessoas conhecidas minhas, engajadas de há muito tempo no cristianismo de matriz católica, todas com formação superior, de diversas partes do Brasil, para buscar captar uma mínima percepção delas diante da aprovação do pastor evangélico André Mendonça ao STF, segundo uma pergunta geradora apresentada: “Será que foi vontade de Deus?” Para este grupo pesquisado, a vontade de Deus representa um valor fundamental em sua ascese cristã.
Minha perspectiva era a de que, por ser um grupo católico, não vinculado à tradição representada por Mendonça, suas respostas poderiam apresentar algum grau de peculiaridade, diferentemente da unanimidade evangélica ligada ao pastor.
Primeiramente é necessário registrar que das 30 (trinta) pessoas escolhidas para a enquete, apenas 08 (oito) responderam à pergunta geradora.
Duas pessoas, um homem e uma mulher, afirmaram taxativamente “Com certeza, não”. Quando continuei com o questionário perguntando-lhes de onde eles retiravam essa certeza, não mais me responderam.
Outro entrevistado disse: “Não tem nada a ver”.
Já o quarto entrevistado disse: “Pergunte a Deus”.
A quinta pessoa disse: “Que pergunta maliciosa e não científica”. Mas depois respondeu com um NÃO haver sido vontade de Deus a indicação de Mendonça. Indaguei-lhe por que teria essa certeza. Respondeu-me: “Porque o que vem do demônio não é de Deus”. Então questionei: Você considera Mendonça um representante do demônio? Ela disse: “Ele não. Bolsonaro sim”.
O sexto entrevistado afirmou: “Deus é totalmente outro. A vontade de Deus é um conceito complicadíssimo. Mas os irracionais o defendem”.
A sétima pessoa entrevistada declarou: “Claro que não foi vontade de Deus”. Indaguei por que “Claro”, ela disse-me: “Porque eles são fundamentalistas e o Estado e nossas instituições precisam ser laicas”. Insisti: De onde você retira essa certeza de que não foi vontade de Deus? Ela respondeu: “Nem tudo o que acontece é vontade de Deus. Nós temos o livre arbítrio. Deus não escolhe por nós. Acredito que o Espírito Santo ajuda-nos a conduzir da melhor maneira possível, se nós dermos nossa ajudinha. Acredito que o Espírito Santo nos ajude na condução de nossa jornada. Temos o dever de ser éticos, de cuidar da Casa Comum, de cuidarmos uns dos outros como humanidade”. Ela ainda fez a seguinte consideração: “São muito boas estas questões que você levanta”.
Por fim, o último católico entrevistado expressou: “Foi sim vontade de Deus. É Deus se manifestando nos seres humanos para que nós acordemos e fiquemos vigilantes”.
Considerações finais
Apesar de ter sido uma pesquisa de pequena abrangência, impressiona atestar a disparidade de percepções sobre o fato concreto da indicação do pastor Mendonça. Quando utilizado o método comparativo entre a percepção do grupo evangélico vinculado ao pastor presbiteriano e os católicos participantes da enquete, leva-se a excogitar a possibilidade de não se tratar do mesmo Deus cristão, ou como se Ele apresentasse diversas vontades, inclusive antitéticas, sobre o mesmo fato.
Partindo do acima constatado, abre-se uma janela de perguntas acerca do tema, a partir da breve investigação realizada, podendo-se indagar: O Deus do rico seria o mesmo Deus do pobre? O Deus do opressor seria o mesmo Deus do oprimido? O Deus da Casa Grande seria o mesmo Deus da Senzala? O Deus do fascista seria o mesmo Deus do democrata? O Deus do colonizador seria o mesmo Deus do colonizado? Finalmente, haveria então um Deus verdadeiro? E qual seriam a importância e a relação de Deus com a Política, com a Democracia, com o Estado Laico e a Soberania Popular? Aparentemente são questões ainda não resolvidas que afetam a vida concreta das repúblicas contemporâneas, das democracias representativas com seus partidos políticos.
*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas públicas e sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).