Por BERNARDO DO REGO MONTEIRO MOREIRA*
A permanência da ditadura militar
Se um texto escrito carrega marcas de seu tempo histórico, ele também inscreve e posiciona a si próprio em uma relação temporal, em uma forma temporal. Em 1964, o ano que não terminou,[i] Paulo Arantes escreve, ao fim da primeira década do século XXI, sobre um hoje que não apenas carrega cicatrizes do passado, mas que mal saiu dos porões de onde as violências ocorreram antes e ocorrem agora. Já em Quem dará o golpe no Brasil?,[ii] Wanderley Guilherme dos Santos (WGS) tem outra relação com seu hoje: em 1962, hoje era um tempo de golpe em marcha, que olhava para a tempestade do futuro pelas frestas do céu nublado e escuro do presente. Essas duas posições em relação à escrita de uma história apontam para uma convergência que dá o ponto de partida, mas deixa em aberto o ponto de chegada desta reflexão: como funciona a continuidade, ou melhor, a permanência que habita o tempo descrito por Arantes, e qual a relação desse hoje com o hoje do golpe em marcha de WGS?
Arantes começa seu texto com o diálogo interno ao livro[iii] em que aparece, mas que não é, de forma alguma, um diálogo interno a um punhado de teóricos, mas um dos pontos nodais da história política brasileira: “Tudo somado, o que resta afinal da ditadura? Na resposta francamente atravessada do psicanalista Tales Ab’Sáber, simplesmente tudo. Tudo menos a ditadura, é claro. Demasia retórica? Erro crasso de visão histórica? Poderia até ser, tudo isto e muito mais. Porém, nem tanto.”[iv]
A permanência é sintoma de um trauma fundamental, pois evidencia não só a contaminação do passado no presente, mas a forma pela qual a política de apagamento ou distorção das memórias da ditadura constrói a legitimidade para a intensificação de práticas violentas no regime atual, muitas delas restos da ditadura militar. A ditadura produziu um corte na história do país, uma fratura histórica, provocando uma alteração radical na forma da exceção na política brasileira. Muniu-se da aparência de legalidade para construir um limiar permanente de tutela e ameaça, pondo os corpos na gangorra da hiperexposição e do desaparecimento. Se governar é mandar prender, a transformação da lógica da exceção deve ser entendida segundo os dispositivos de poder que ela passou a mobilizar.[v]
Arantes interpela Virilio para falar de um poder desaparecedor, isto é, a forma que o terrorismo de Estado submeteu corpos a tortura e ao desaparecimento forçado, tecnologia de poder que produz um não lugar absoluto, peça-chave da nova lógica da exceção, presente nos voos da morte e câmaras de tortura, mas também nos presídios e manicômios.[vi] Em Virilio: “…a confissão dos interrogatórios político-militares, extorquida do suspeito graças à tortura do eletrochoque, tem também a importânica de uma experiência social, ou, melhor, tecnossocial, de um novo esforço em prol da transparência. Próteses técnicas e médicas tendem mais e mais a formar novas mesclas destinadas à pacificação…”.[vii]
O esforço pela transparência e pela pacificação se relaciona com um ponto de ligação entre as tecnologias punitivas e a construção da memória no país: “o tratamento de choque da ditadura apagou até a memória de que um dia houve inconformismo de verdade no país”.[viii] A capacidade de organização política das classes perigosas foi o alvo da ferramenta-terror do regime golpista de exceção; uma contrarrevolução que se apresentou como preventiva por um bloco civil-militar, assentando-se sobre um dilema ideológico de ditadura militar ou revolução popular, e assim declarando guerra ao Inimigo da nação. O Inimigo é uma não pessoa, é refratário ao direito;[ix] é Inimigo qualquer, “multiforme, manipulador e onipresente (…), de ordem econômica, subversiva, política, moral, etc.”; “inassinável Sabotador material ou Desertor humano sob formas as mais diversas”.[x] A ditadura militar armou-se com uma tecnologia de declaração de guerra ao Inimigo, produzindo a necessidade e a justificativa oficial de plenos poderes; uma Doutrina da Segurança Nacional que, deixando ovos de serpente para a posteridade, fundou um Estado de emergência econômico permanente.[xi]
Os decretos do regime de exceção e sua rígida mas instável regulação são caracterizados por Napolitano como “fundamentais para a afirmação do caráter tutelar do Estado”.[xii] Tal caos normativo dos Atos não foi exclusivo à ditadura, afinal, as emendas à “Constituição cidadã” amontoam-se às dezenas, odores inconfundíveis das sobras. No atual Estado oligárquico de direito, a lei mantém-se em sua errância para garantir a segurança jurídica da plataforma de valorização financeira para a acumulação capitalista e para consolidar a lógica empresarial no setor público, em uma característica relação de hostilidade complementar entre Estado e mercado, que produz um Estado salvador em última instância.[xiii]
A Lei da Anistia, que assegurou a impunidade aos carrascos do regime militar, não seria, portanto, apenas um apêndice do processo Constituinte de ‘redemocratização’. Ela seria porém um sintoma de uma Constituição apresentada como cidadã, mas que mantém em sua letra de lei o Art. 142, que entrega às mesmas Forças Armadas que sustentaram um golpe por 21 anos o poder soberano de garantia da lei e da ordem. Tornando constitucional o golpe de Estado, desde que liderado pelas Forças Armadas, a Era da Impunidade não funcionaria apenas com uma Lei da Anistia isolada, mas exige que a própria Constituição cidadã contenha suas cláusulas de suspensão e ferramentas constitucionais para declarar regimes de exceção.[xiv]
“Do Banco Central ao Código Tributário, passando pela reforma administrativa de 1967, a Constituição de 1988 incorporou todo o aparelho estatal estruturado sob a ditadura. (…) o discurso da ditadura era o da ortodoxia econômica, que o mesmo Estado delinquente, cujos agentes executavam uma política de matança seletiva, se declarava, nas constituições outorgadas, meramente subsidiário da iniciativa privada”.[xv]
Tanto o regime golpista quanto o governo pós-ditadura se assentam nos paradigmas da salvação e da segurança nacional, cartilhas básicas da lógica da exceção. Se é pelos “dispositivos de exceção que as constituições democráticas se transformam no seu oposto”,[xvi] o Brasil pós-1988 garantiu dispositivos de exceção firmemente sustentados na militarização da segurança pública. WGS identifica algo similar e o atribui às ditaduras de “governo forte”: “…o governo constituído agiria acima dos partidos, solucionando os problemas de maneira “técnica”, e os militares, servindo a tal governo, dando-lhe força e autoridade, estariam simplesmente cumprindo as medidas, ou afiançando seu cumprimento, que visariam, na linguagem golpista, à defesa da segurança e da salvação nacionais.”[xvii]
O paradigma ideológico do Estado brasileiro pós-64 (incluindo tudo aquilo que restou no pós-88) sustenta a posição dual de garantia de um estatuto liberal-constitucional às classes proprietárias e um mecanismo punitivista e controlador às classes subalternas; mobilizando seus aparelhos de repressão sob as vestes do interesse geral do povo.[xviii] Destruindo a memória de resistência e reprimindo a organização política revolucionária, o que resta são multidões solitárias, capturadas pelo processo técnico do espetáculo e rendidas pela interpelação estatal violenta que as governa pelo medo da violência.[xix]
As resoluções técnicas às quais WGS se refere, frequentemente protagonistas dos discursos econômicos neoliberais, articulam a informatização do social para um governo dos corpos, essencialmente repressivo. Como em Negri e Guattari sobre a reação contrarrevolucionária: “As zonas de importância estratégica, os circuitos de reprodução que suportam a vida e a luta são cada vez mais controlados, esquadrinhados e, se for o caso, reprimidos preventivamente, de modo que o tempo da vida se encontra estreitamente esmagado sob o tempo militar do capital.”[xx]
Sob as armas da Polícia Militar, na câmara de tortura ou no não lugar do desaparecimento, o terrorismo estatal abusa da morte como ferramenta biopolítica.[xxi] No tempo morto de uma ditadura que parece nunca passar, as classes subalternas, já violentadas economicamente e postas na posição de apêndices parciais e desfigurados das máquinas, mera função vital, são sujeitas às mais brutais privações em prol da segurança humana, que são, em última instância, “imperativos de segurança ou de salvação da classe dominante”.[xxii]
Se o hoje de WGS era o de um golpe em marcha que previa uma ditadura semelhante tanto a que se instaurou no golpe de 64 quanto ao governo pós-ditadura, o hoje de Arantes se expressa pelos restos, pelas sobras da ditadura:
“O resto, que é simplesmente tudo, é gestão punitiva e social compensatória de uma sociedade de mercado condenada pelo desassalariamento sistêmico a emitir sinais alarmantes de convulsão possível, o quanto basta para acionar poderes econômicos de emergência, fechando-se o círculo vicioso do controle.”[xxiii]
A manutenção do desemprego guiada pela política monetária, remetendo às análises de Marx sobre o exército industrial de reserva e seu papel de pressão sobre os trabalhadores ativos (para que aceitem condições piores sob a ameaça da demissão e dos mais pobres que poderiam facilmente tomar seu posto, tornando-o descartável) é mais um dos dispositivos de violência que foi intensificado neste governo pós-ditadura demasiado militar e demasiado oligárquico, onde a lei anda de mãos dadas com suas cláusulas de suspensão, com suas ferramentas de exceção. Eis portanto o imperativo do Estado brasileiro: na emergência econômica, baixar os decretos sobre a inflação e a taxa de juros, perdoar as dívidas dos bancos, cortar os auxílios; na emergência de segurança, prender os terroristas, grampear os telefones, fuzilar os criminosos. Enquanto o golpe pôs o Brasil em um ciclo ao qual este não conseguiu sair, a tendência, personificada atualmente por um tal sujeito de baixa patente, é de um prato cada vez mais requentado com as sobras da ditadura militar.[xxiv]
*Bernardo do Rego Monteiro Moreira é graduando em Ciências Sociais na Universidade Federal Fluminense.
Referências
ARANTES, P. “1964, o ano que não terminou”. In: SAFATLE, V.; TELES, E. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs — Vol. 5. São Paulo: Ed. 34, 2012.
JAPPE, A. et al. Capitalismo em quarentena: notas sobre a crise global. São Paulo: Elefante, 2020.
MARX, K. O Capital: crítica da Economia Política (Livro I). São Paulo: Boitempo, 2017.
NAPOLITANO, M. 1964: História do regime militar brasileiro. São Paulo: Ed. Contexto, 2014.
NEGRI, A; GUATTARI, F. As Verdades Nômades: Por novos espaços de liberdade. São Paulo: Autonomia Literária e Editora Politeia, 2017.
POULANTZAS, N. Poder político e classes sociais. Campinas: Editora da Unicamp, 2019.
SAFATLE, V.; TELES, E. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010.
SANTOS, W. G.. Quem dará o golpe no Brasil? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
SOARES, A.; COLLADO, F. O Vírus como Filosofia, A Filosofia como Vírus: Reflexões de emergência sobre a Covid-19. São Paulo: Glac Edições, 2020.
VIRILIO, P. Estética da desaparição. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.
Notas
[i] (Arantes, 2010).
[ii] (Santos, 1962).
[iii] (Safatle, Telles, 2010).
[iv] (Arantes, 2010:205).
[v] (Safatle, Telles, 2010; Arantes, 2010).
[vi] (Arantes, 2010).
[vii] (Virilio, 2015:55).
[viii] (Arantes, 2010:216).
[ix] (Arantes, 2010; Santos, 1962).
[x] (Deleuze, Guattari, 2012:166; Brossollet, 1975 apud Deleuze, Guattari, 2012:116).
[xi] (Arantes, 2010).
[xii] (Napolitano, 2014:75).
[xiii] (Arantes, 2010; Jappe et al, 2020).
[xiv] (Arantes, 2010; Safatle, Telles, 2010).
[xv] (Arantes, 2010:221).
[xvi] (ibid, 2010:226).
[xvii] (Santos, 1962:39).
[xviii] (Arantes, 2010; Poulantzas, 2019).
[xix] (Debord, 1997).
[xx] (Negri, Guattari, 2017).
[xxi] (Soares, Collado, 2020).
[xxii] (Marx, 2017; Arantes, 2010; Santos, 1962).
[xxiii] (Arantes, 2010:236).
[xxiv] (Marx, 2017; Arantes, 2010).