Por EVERALDO DE OLIVEIRA ANDRADE*
A cidade de São Paulo precisa de uma nova universidade pública que aprenda e dialogue na periferia, uma verdadeira “Escola da Cidade” que esteja próxima da classe trabalhadora
A pandemia e os ataques dos governos federal, estadual e municipal contra a população retirando seus direitos econômicos e sociais têm realçado e ampliado o imenso fosso de desigualdades da cidade de São Paulo e a marginalização crescente das periferias. O acesso à educação de qualidade e gratuita em todos os níveis virou um sonho cada vez mais distante. A prefeitura de uma cidade do tamanho de São Paulo não pode ficar indiferente a essa situação. Milhares de jovens e trabalhadores dos bairros mais afastados do centro da cidade querem estudar, entrar para uma faculdade ou universidade, se qualificar e ter melhores empregos. E é neste contexto que as universidades públicas e a própria ciência e cultura estão sendo atacadas e desvalorizadas por setores obscurantistas e conservadores. Isso quando avançam as empresas educacionais, modelos de universidade sem compromissos com a sociedade e as comunidades carentes, buscando impor estratégias não-presenciais e desqualificadas de ensino, demitindo ou precarizando em massa a atividade docente visando somente aumentar suas margens de rentabilidade. Os docentes, cientistas, acadêmicos e intelectuais comprometidos com a universidade socialmente referenciada nos direitos da maioria da população, em favor da igualdade e a ampliação de direitos sociais têm se sentido cada vez mais assediados pelos discursos anticientíficos que são produzidos pela extrema-direita, pelo mercado e seus modelos produtivistas, pela dinâmica de profissionalização rápida e vista como descartável que é oferecida aos estudantes. Em contraste, São Paulo tem algumas das mais importantes universidades públicas do país (USP, UNESP, UNICAMP, UNIFESP, UFABC) algumas com seus campi na capital e envolvidas com a produção de alto nível de ciência, cultura, serviços de extensão e apoio social mas muito aquém das necessidades da cidade.
A imensa maioria dos estudantes do ensino superior da cidade de São Paulo cursam instituições privadas que, infelizmente, oferecem pouquíssimas contribuições – apesar do esforço e dedicação dos seus docentes – aos principais problemas do município. As empresas educacionais privadas pouco se preocupam com os imensos dilemas e dificuldades de nossa população, hoje mergulhada no desespero do desemprego, da falta de oportunidades de qualificação e dos baixos salários; mas se beneficiam expandindo-se na carência de vagas nas universidades públicas e da imensa demanda por cursos superiores entre a população que quer estudar e se qualificar profissionalmente. Essas carências são ainda maiores na periferia da cidade, distante dos principais centros universitários. É preciso hoje reafirmar a importância e o direito do ensino superior público, gratuito, de qualidade, próximo da população trabalhadora, com aulas presenciais que permitam um diálogo vivo da universidade com a comunidade em que está inserida. Não existe ainda uma instituição universitária pública com esse perfil e foco de atuação. A cidade de São Paulo poderia e deveria ter mas não possui ainda uma instituição municipal de ensino superior e há dezenas de exemplos pelo país de universidades municipais públicas que ocupam um importante papel em suas cidades como polos científicos, culturais, tecnológicos, profissionalizantes.
A periferia paulistana é viva e atuante, produz cultura, conhecimento, ciência, é expressão do verdadeiro caleidoscópio popular e trabalhador, social e cultural da cidade, mas vem sendo ignorada e discriminada econômica e socialmente, deixando amplos espaços de exploração ao narcotráfico e ao mercado religioso. Uma nova universidade pública e gratuita, municipal e popular pode e precisaria nascer compromissada com a superação das imensas desigualdades sociais e econômicas que marcam nossa cidade, oferecendo novas oportunidades, um novo espaço de interlocução e um novo projeto e perspectiva de ensino superior. Que nasça com autonomia para dialogar e propor soluções, produzindo conhecimento científico desde o interior da realidade da juventude e da classe trabalhadora paulistana que mora nas periferias. Teremos a possibilidade de construir novos elos entre os diferentes saberes destas periferias, das suas entidades populares locais e auto-organizadas com a ciência acadêmica de alta complexidade desenvolvida hoje quase só nas grandes universidades públicas, e que ainda estão muito aquém de suprir a imensa e legítima demanda da população. As distâncias entre os campi universitários e as periferias não são apenas geográficas, mas culturais, políticas e principalmente sociais.
A estrutura da prefeitura da cidade de São Paulo já deu passos importantes e possui estruturas para que se deem as primeiras iniciativas. Uma nova universidade para o ensino, a pesquisa e a extensão pode começar já aproveitando o que existe do aparelho administrativo municipal, suas estruturas físicas, seus profissionais qualificados e seu enraizamento social na periferia. A rede UNICEU, por exemplo, formada durante o governo Fernando Haddad expressa as grandes possibilidades existentes. Ela previa originalmente cursos semipresenciais para capacitação de professores da rede pública municipal e depois foram abertos cursos para comunidades locais. Inicialmente oferecidos em parcerias com a Univesp, agora vêm progressivamente reduzindo seu alcance. A atual gestão pretende privatizar e restringir ao invés de ampliar esses espaços. Seria preciso reverter esse sentido e expandir os serviços púbicos em geral. A rede Uniceu é uma experiência a ser mantida e ampliada transformando a rede, passo a passo, em uma verdadeira universidade pública municipal. Existem hoje centenas de atuais docentes da rede municipal com formação (mestres e doutores) que poderiam se incorporar ao projeto. Há uma demanda gigantesca por formação e qualificação profissional entre os professores municipais, mesmo no amplo funcionalismo municipal que uma universidade municipal poderia incorporar como parte de seus objetivos. Os docentes municipais vêm defendendo a anos que as DREs (delegacias regionais de ensino) se transformem em polos de formação de professores, uma universidade municipal supriria esse papel.
Podemos pensar inúmeros caminhos alternativos para atingir esse objetivo. Um passo a mais e importante poderia ser a articulação de um consórcio de instituições públicas de ensino superior para agir e contribuir na formação da nova universidade, apoiando projetos e iniciativas para dinamizar novos polos de pesquisas, de avanços tecnológicos, de criação cultural e qualificação profissional desde os espaços dos CEUs inicialmente; atividades de extensão universitária conectadas aos espaços e instituições do município dialogando com as experiências e iniciativas populares para fazer desta nova universidade espaço para verdadeiras “escolas de cidadania”; que ajudem a dinamizar cursos de extensão e especialização junto com à nova universidade municipal. As dezenas de instituições de ensino superior municipais existentes pelo país fornecem exemplos que poderão ser reproduzidos ou inspiradores para desenvolver a universidade popular paulistana.
O financiamento destas iniciativas rumo a uma universidade municipal é uma questão política, mas não poderá concorrer e nem disputar verbas da educação básica e suas imensas carências, mas buscar caminhos, estratégias e recursos alternativos para se viabilizar e garantir ensino superior gratuito e de qualidade. É preciso romper com imensa camisa de força da desigualdade de renda, de direitos, de acesso ao conhecimento, cultura e ciências que a elite financeira e o conjunto da burguesia brasileira impôs ao povo trabalhador. Na lógica liberal e de mercado que hoje orienta todas as políticas de estado e da maioria dos governos sempre faltarão recursos quando se tratar de ampliação de direitos e serviços públicos gratuitos para a classe trabalhadora, mas sempre haverá disposição para negociar e conceder isenções fiscais, pagar sem contestação dívidas bilionárias aos especuladores e ajudar de boa vontade empresários, banqueiros e os privilegiados de sempre. Um fundo público específico e alimentado por esses setores privilegiados poderia ser constituído para ajudar a financiar ou viabilizar a universidade municipal, o que exigirá também mobilização e pressão popular. Há muitos exemplos recentes de movimentos populares e da juventude que conseguiram recursos mobilizando e pressionando os poderes públicos como o “movimento pela universidade pública na Baixada Santista”, o movimento por uma universidade pública na zona Leste e que conseguiram conquistas importantes ainda que parciais e mostram que é possível seguir esse caminho.
A cidade de São Paulo precisa de uma nova universidade pública que aprenda e dialogue na periferia, uma verdadeira “Escola da Cidade” que esteja próxima da classe trabalhadora e ofereça possibilidades de formação profissional, cultural e científica para milhares de jovens hoje excluídos de qualquer acesso à formação superior, que abra novas oportunidades de empregos, ajude a dinamizar a economia, que aprofunde a qualificação dos atuais docentes e o funcionalismo da rede municipal; uma universidade aberta, gratuita, autônoma e democrática que ao mesmo tempo possa garantir o acesso ao patrimônio cultural, científico e tecnológico da humanidade a todos, conectada com o ensino fundamental e médio, que seja capaz de ouvir, aprender e elaborar a partir dos problemas, demandas e críticas nascidas da periferia popular e trabalhadora, da juventude hoje excluída das possibilidades para seu pleno desenvolvimento. As próximas eleições municipais provavelmente possam permitir que esse debate ganhe a dimensão que merece.
*Everaldo de Oliveira Andrade é Professor do Departamento de História da FFLCH-USP