Lula livre

Roy Lichtenstein, Pincelada, escultura em alumínio e tinta, 1962
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JR.

Lula sabe perfeitamente que foi convocado para administrar a barbárie de um arremedo de sociedade nacional em franca reversão neocolonial

A anulação da condenação de Lula nos processos arbitrários presididos por Sergio Moro repara tardiamente uma injustiça fragorosa, mas em nada contribui para a superação da falência política e institucional gerada pela crise terminal da Nova República. Lula livre para disputar eleições não reverte as consequências desastrosas da operação Lava Jato sobre a credibilidade do sistema político brasileiro, nem os cumulativos atropelos à Constituição que daí decorreram.

A surpreendente reviravolta na posição do ministro Edson Fachin – que passa de principal paladino da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF) a certificador das aberrantes ilegalidades da quadrilha do Paraná contra o ex-presidente – expõe o avançado grau de putrefação do sistema judiciário brasileiro. A redenção de Lula teve como contrapartida a total desmoralização do STF como guardião da lei. A falsa cruzada moralista era apenas cortina de fumaça para perseguir desafetos políticos e impulsionar uma avassaladora ofensiva reacionária.

Se a Lava Jato revelou à sociedade o intestino do sistema político brasileiro – a corrupção sistêmica como forma de controle dos partidos e dos políticos –, os vaivéns do STF expuseram as entranhas do sistema judiciário – a pressão política, militar e empresarial como forma de manipulação descarada dos juízes. Por baixo da toga que deveria simbolizar a razão de magistrados independentes e impolutos, subordinados aos ditames da lei, encontram-se prevaricadores, que traficam com os interesses do povo.

A recepção positiva da reintegração do ex-presidente à disputa eleitoral por parcela significativa da grande mídia – a mesma que achincalhava Lula diariamente – revela que a operação “volta Lula” vai muito além da mudança de partido de um juiz que manipula a interpretação da lei. A reabilitação de Lula não foi uma conquista da luta dos trabalhadores, mas uma manobra da alta oligarquia do Estado, preocupada em dar um mínimo de estabilidade à vida política nacional em face do risco crescente de convulsão social, no contexto de um colossal impasse histórico, no qual o velho (a Constituição de 1988) já não tem como ser restaurado e o novo (a institucionalização da situação neocolonial) não tem força para se afirmar plenamente.

No vácuo gerado pela ausência de uma contrapressão popular, os agentes do Estado – políticos, juízes, procuradores e militares – funcionam como verdadeiras marionetes do capital. A política transforma-se num jogo de cartas marcadas. Quando convém franquear o caminho para uma virulenta ofensiva contra os trabalhadores, as políticas sociais, a soberania nacional e o meio ambiente, a esquerda da ordem é retirada de cena sem cerimônia para que o serviço sujo seja feito com a brutalidade e a rapidez exigidas pelos imperativos do capital. Quando o risco de crise social ameaça fugir do controle, na impossibilidade de uma solução abertamente autoritária, a esquerda cordata, devidamente reeducada para compreender os novos limites do possível, é convocada novamente ao centro do palco, com o encargo de legitimar as maldades consumadas e apaziguar os ânimos da população, a fim de evitar a emergência de uma esquerda contra a ordem. O fundamental é que todo o descontentamento social seja canalizado para o circo eleitoral.

Lula sabe perfeitamente que foi convocado para administrar a barbárie de um arremedo de sociedade nacional em franca reversão neocolonial, que tateia por um caminho sem norte, no fio da navalha entre o autoritarismo aberto e o autoritarismo velado, em busca de uma improvável institucionalização da contrarrevolução reacionária. Em seu primeiro pronunciamento após a anulação de suas penas, o ex-presidente apresentou-se como o pacificador da Nação. Pelo que disse – não guarda mágoa de ninguém – e pelo que não disse – nenhuma palavra sobre a revogação das reformas de Temer e Bolsonaro – pode-se imaginar com relativa segurança como pretende conduzir seu eventual terceiro mandato.

Depois de atenuar os estragos de Fernando Henrique Cardoso, Lula oferece à burguesia seu ainda imenso cacife eleitoral para fazer o rescaldo da destruição inaudita de Jair Bolsonaro. Enquanto sua presença for funcional aos donos da riqueza, o ex-presidente será exaltado como grande estadista injustiçado. Assim que se tornar disfuncional, será imediatamente descartado e vilipendiado. O que vale para Lula, diga-se de passagem, vale para todos.

Num contexto de absoluta falta de perspectiva em relação ao futuro, a reabilitação de Lula pode dar um alento de esperança aos que esperam que a democracia possa ser resgatada pela ação de um homem providencial, mas objetivamente não tem, nem poderia ter, o condão de afastar o espectro do autoritarismo. É impossível sair do pântano puxando-se pelo próprio cabelo. Ao padrão de acumulação de uma economia em reversão neocolonial, baseado no rebaixamento sistemático do nível tradicional de vida dos trabalhadores, na destruição das políticas públicas e na depredação acelerada do meio ambiente, corresponde necessariamente um padrão de dominação autoritário. Sem modificar o primeiro, é impossível evitar o segundo.

A volta de Lula à política nacional dá à burguesia a possibilidade de ganhar tempo, mas, enquanto perdurarem as ilusões de um sebastianismo lulista, tira dos trabalhadores qualquer possibilidade de interromper a reversão neocolonial. Qualquer que seja o próximo presidente, seu raio de manobra para restabelecer a paz social será mínimo. Nas condições de uma profunda crise sanitária, econômica e social, nacional e internacional, a polarização da luta de classes inviabiliza até mesmo um simulacro de conciliação entre o capital e o trabalho.

Antes de apostar todas as fichas numa redenção do lulismo em condições impossíveis, a esquerda socialista deveria preocupar-se em abrir novos horizontes para o enfrentamento da crise colossal que ameaça os brasileiros. Sem disputar o futuro, não há como vencer a contrarrevolução reacionária. O ponto de partida deve ser uma leitura cuidadosa da realidade e uma crítica implacável das responsabilidades do próprio lulismo na tragédia nacional.

O único antídoto efetivo contra a escalada autoritária é a mobilização social e a entrada da classe trabalhadora em cena. Mais do que nunca, a tarefa prioritária da esquerda socialista é construir um programa político, colado nas lutas concretas dos trabalhadores, que coloque na ordem do dia a urgência de “direitos já” e sua necessária consequência: “fim dos privilégios já”. A revolução democrática, baseada na autorganização dos trabalhadores, com um horizonte socialista, é a única alternativa capaz de deter a barbárie do capital no Brasil.

*Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e editor do site Contrapoder. Autor, entre outros livros, de Entre a nação e a barbárie – dilemas do capitalismo dependente (Vozes).

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Eduardo Borges Eleonora Albano Andrés del Río Leonardo Avritzer Manuel Domingos Neto Ricardo Antunes Fernando Nogueira da Costa Paulo Sérgio Pinheiro Alexandre de Lima Castro Tranjan Ricardo Musse Daniel Afonso da Silva Alysson Leandro Mascaro Denilson Cordeiro Everaldo de Oliveira Andrade Eugênio Trivinho Leonardo Sacramento Manchetômetro Fábio Konder Comparato Priscila Figueiredo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Érico Andrade Luiz Carlos Bresser-Pereira Leonardo Boff Marcelo Módolo Luciano Nascimento Yuri Martins-Fontes Lucas Fiaschetti Estevez Mário Maestri Carlos Tautz Andrew Korybko Marilia Pacheco Fiorillo Caio Bugiato Ricardo Fabbrini João Sette Whitaker Ferreira Jorge Luiz Souto Maior Sergio Amadeu da Silveira Paulo Fernandes Silveira Antônio Sales Rios Neto Kátia Gerab Baggio Luís Fernando Vitagliano Carla Teixeira Marcus Ianoni Lincoln Secco Henri Acselrad Antonio Martins Matheus Silveira de Souza Salem Nasser Ladislau Dowbor Julian Rodrigues João Carlos Salles Sandra Bitencourt Afrânio Catani Gilberto Maringoni João Adolfo Hansen Berenice Bento Luiz Roberto Alves Paulo Nogueira Batista Jr Fernão Pessoa Ramos Vanderlei Tenório Armando Boito André Márcio Neves Soares Jean Pierre Chauvin Michael Löwy Liszt Vieira Vinício Carrilho Martinez Benicio Viero Schmidt Tales Ab'Sáber Paulo Capel Narvai Chico Alencar Jorge Branco Airton Paschoa Bruno Machado Marcos Aurélio da Silva Annateresa Fabris Tadeu Valadares Claudio Katz Samuel Kilsztajn Antonino Infranca Igor Felippe Santos Osvaldo Coggiola Plínio de Arruda Sampaio Jr. João Carlos Loebens Atilio A. Boron Bento Prado Jr. Ronaldo Tadeu de Souza Leda Maria Paulani Elias Jabbour Michael Roberts Luis Felipe Miguel Gabriel Cohn Juarez Guimarães Marilena Chauí Walnice Nogueira Galvão Celso Favaretto Flávio R. Kothe Bernardo Ricupero Maria Rita Kehl Luiz Werneck Vianna Chico Whitaker José Geraldo Couto Milton Pinheiro Mariarosaria Fabris Jean Marc Von Der Weid José Dirceu Celso Frederico Luiz Marques Remy José Fontana Henry Burnett Paulo Martins José Machado Moita Neto Vladimir Safatle Rodrigo de Faria Gilberto Lopes Flávio Aguiar Ari Marcelo Solon Heraldo Campos Ronald Rocha Rubens Pinto Lyra Luiz Eduardo Soares Daniel Costa Daniel Brazil Eliziário Andrade João Feres Júnior José Costa Júnior Eugênio Bucci Luiz Bernardo Pericás Dennis Oliveira Dênis de Moraes Boaventura de Sousa Santos Lorenzo Vitral Anselm Jappe João Paulo Ayub Fonseca Luiz Renato Martins Francisco de Oliveira Barros Júnior Alexandre de Freitas Barbosa Francisco Fernandes Ladeira Tarso Genro Renato Dagnino Bruno Fabricio Alcebino da Silva Thomas Piketty Valerio Arcary Otaviano Helene Gerson Almeida Eleutério F. S. Prado Francisco Pereira de Farias José Luís Fiori Marjorie C. Marona Slavoj Žižek Michel Goulart da Silva Valerio Arcary Marcelo Guimarães Lima Alexandre Aragão de Albuquerque José Raimundo Trindade Ronald León Núñez Ricardo Abramovay Marcos Silva José Micaelson Lacerda Morais Rafael R. Ioris João Lanari Bo André Singer

NOVAS PUBLICAÇÕES