Por LUIZ ROBERTO ALVES*
O gestual do assessor de Bolsonaro no Senado não foi sem razão
Muito provavelmente Pacheco (Senado) e Lira (Câmara Federal) serão enrolados nas suas próprias dependências, favores e acordos a fim de salvarem tanto Martins quanto Ernesto, especialmente depois que o senador mudou o seu discurso sobre o inepto total das relações exteriores, ou seja, já disse que a atuação do pária internacional “ainda está falha”. Em breve não estará mais, especialmente quando o Jair – talvez ao lado do Martins – demonstrar o papel especial do Ernesto e da Damares numa campanha eleitoral. Está claro que eles se entendem. Conhecem os códigos. Sabem que vai dar samba.
Ainda mais. Se a polícia legislativa não tomou imediatamente o celular do moço para análise, não vai encontrar nada. Encontrará, sim, aquela frase que bocas honestas não emitem, com a qual ele aproveitou para nos chamar, a todos, de palhaços. Não repito a frase porque mexe com valores que me são caros. Todos sabem.
No entanto, o discurso introdutório do prócer do senado sugeriu um jogo de significações a exigir vários retornos a ele. Ver e ouvir vária vezes. Em primeiro lugar, o lugar do moço. Martins estava em local especial, focalizado todo o tempo. Quem o colocou lá? Só aquele lugar era dado a ele? Tratava-se de sua importância política?
Siga-se. A pessoa ali posta era inquieta e fazia muitos gestos. Parecia estar sempre desarrumada e, portanto, arrumou diversas vezes a lapela de seu paletó como todo mundo faz (e não com gesto especial), só mais ansiosa. Seus olhos se comunicavam com pretensa ou possível interlocução visível e, enquanto Pacheco falava e falava, ele se comunicava com interlocutores. Estava em processo múltiplo de comunicação e raras vezes seu olhar bateu no orador, saindo em retirada décimos de segundos depois na direção de sua comunicação social.
Houve duas exceções. Quando Pacheco enunciava uma das razões do encontro, isto é, o questionamento do chanceler sobre a vacina pela ótica das relações internacionais, Martins moveu o conhecido conjunto de dedos por três vezes, mal tocando o paletó e, especialmente, num lugar que já não é mais, a rigor, lapela. Destaquemos o questionamento, então sinalizado pelo especialista, segundo dizem. Adiante, a audição da palavra enfrentamento, lida pelo dirigente da reunião, provoca o segundo movimento, de igual tempo e medida. Portanto, questionamento e enfrentamento movem dedos e levam a imediata caída de olhos sobre o celular. Ele não repete o gesto na repetição das mesmas palavras.
A semiótica pode ser marítima, médica, linguística. Sempre simbólica, sempre a dizer coisas importantes, mas que exigem aprofundamento de relações entre fenômenos psicossociais e pessoas, acuidade noutros comportamentos da pessoa ou pessoas em questão, análise de seus equipamentos de trabalho etc.
Será que na iminência do companheiro, ou chefe, ou mestre, ou representante do guru americano, ser questionado por ilustres representantes da Federação, cabe mandar tomar…? Ou os questionamentos devem sofrer resposta nas redes, especialmente com vistas a cortar qualquer questionamento pela raiz?
A frase que não cito, banalizada para além de todas as medidas pela figura analisada, não tem qualquer valor senão como enunciação a pegar desprevenidos os incautos no joguinho semântico desse tipo de gente que se engasga de tanta rede, net, rede, net. Portanto, qualquer análise, ou mesmo o trabalho da polícia legislativa mandada trabalhar pela voz empostada do senador Pacheco, terá de caminhar por trilha séria. Mas não vale conversar com o Jair, que não sabe o que é seriedade diante da vida e da morte, conforme todos viram e ouviram nesses dois anos que parecem mais de 100.
O campo de sentidos do questionamento é o da relação entre representantes e ministro. Ou seja, a primeira hipótese é absurda, os representantes, que teriam a palavra para encontrar caminhos e sentidos no meio do horror nacional, deveriam, outrossim, receber respostas do expert em relações internacionais no cruzamento semântico gestualizado. O gesto se realiza nesse cruzamento, associado às mensagens imediatas dos seus dedinhos ágeis ao celular. Se alguém quisesse ir mais longe na pesquisa, caberia questionar como os discípulos de Carvalho e demais amigos tropicais de Trump (são tantos, de ateus e agnósticos a pastores das 99 ovelhas…), espalhados pelas redes, reagem a questionamentos que lhes são feitos! Ali a semiótica ganha novos sentidos, especialmente se combinada com a averiguação das mensagens do celular ansiosamente manipulado pelo Martins.
Qual é o campo de sentidos dessa net que ordena seus discursos para fazer cabeças por este país sofrido?
Ora, o mesmo raciocínio se aplica para o enfrentamento, que não se daria, segundo Pacheco, entre representantes e chanceler, mas entre sociedade brasileira e seu horror diante de mais de 300 mil mortes e desesperada por vacina. Seria pesado, até para nazistas e fascistas, imaginar que um fulano sentado na mira das câmeras de TV, ao lado do presidente do senado federal, mandaria a sociedade enlutada por tantas vidas perdidas tomar naque…!
Desculpem, não fui educado para usar palavras do universo linguístico chulo, essas joias idolatradas pelo Jair e sua trupe, que certamente não foi educado por outras, pois não as sabe. Pior é que até a gente do meu mundo está pegando a doença de usar 5 palavrões na frase de dez vocábulos, sob sintaxe medíocre. Jair deve estar a adorar. Incluam-se os jovens estudantes, que dizem fazer isso por esporte, ou sem sentido. Sem sentido?
Cabe ainda evidenciar que Martins não estava ali sem razão. Ele tinha maior importância que o presidente do Senado, como sugeriu Jean Baudrillard e outros quando trataram dos rituais públicos pós-modernos. Trata-se da simulação, ou da recriação da realidade na qual uma linguagem gestual segunda toma o lugar da primeira e que deveria ser a única: o debate esclarecedor. Em textos do crítico citado ele mostrou que torcedores fanáticos fazem o espetáculo nas arquibancadas, cabendo pouco interesse aos que correm atrás da bola no campo. No mínimo, suas reações são mais importantes do que o jogo. Especialmente quando há ameaças raciais e violências diversas. Aí o clima fica quente. De fato, a presença de Martins recriou uma realidade não pensada pelos senadores. Ele se sobressaiu e o presidente somente pôde executar sua simples função, ainda mais com um chanceler que diz um porre para não garantir sentido a nada… pois o nada é o sentido. Segundo ele, o Brasil é o pária internacional, graças a Deus.
É isso. Pelo sim e pelo não do que quis enunciar gestualmente, Martins não poderia permanecer nem um minuto mais a trabalhar para um governo sério. Mas, se o mundo, hoje, (e não só De Gaulle) tiver razão, diante da naturalização da atrocidade que vivemos desde o início do ano passado, então Martins ficará! E continuará a fazer o que gosta, bem como usando palavras de memória histórica candente para passar por cima dos ignorantes e tentar calar a boca dos inteligentes.
Martins dominou o cenário. Lá no Capitólio, em Washington, muita gente fez coisas semelhantes. Mutatis mutandis, dominou o espaço quase sagrado e ali deitou e rolou.
No entanto, se Martins ali esteve a fazer burbujas de amor a sua namorada (e provar isso), inclusive por meio daqueles gestos, já ressignificados, a semiótica não progredirá. Mas que ele deu a volta por cima, isso deu. E o Ernesto nada disse. Se pelo menos ele fosse o Arnesto do Adoniram Barbosa,
daria samba de vez em quando. Martins não estava ali para ouvir Ernesto. Nem Pacheco.
Mas, para lembrar da linguagem de minha avó, a considerar a frase que ele passou pela rede, quando nos chamou de palhaços, esse moço não é coisa boa não. Viva Piolin! Viva Mussum!
*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.