Entre o ruído e a morte

Jackson Pollock, Untitled, c. 1938–41
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Por JOSÉ FERES SABINO*

Considerações sobre o livro “Memória de minhas putas tristes”, de Gabriel García Márquez

1.

Num instigante ensaio sobre a função do narrador em Crônica de uma morte anunciada, Juan Villoro sugere uma espécie de vínculo entre os dois ofícios, jornalismo e literatura, a que Gabriel García Márquez devotou sua vida. Nos dois modos de usar as palavras, ele leva em conta um postulado: a realidade é um tribunal insubornável da verdade, ou seja, os fatos não podem ser modificados. O que pode sim ser alterado é a interpretação dos fatos ou a maneira de encadeá-los.

Nessa lógica de encadeamento reside a diferença entre os dois, que o próprio García Márquez demarcou numa entrevista a Paris Review: no jornalismo, “um único fato falso prejudica todo o trabalho. Já na ficção, um único fato verdadeiro dá legitimidade ao trabalho inteiro. Esta é a única diferença, e ela repousa no compromisso do escritor. Um romancista pode fazer qualquer coisa que queira, contanto que faça com que as pessoas acreditem” (p. 237).

Contando apenas com um instrumento – a palavra –, o desafio parece ter sido sempre o de agarrar o leitor e tornar crível o que lhe era contado. A verdade mantém seu estatuto de algo incontroverso, mas se, para o jornalista, ela deve ser verificada, para o ficcionista, ela deve ser explicada pela lógica do inverificável.

2.

Ao inaugurar com sua fala o I Congresso Internacional de Língua Espanhola, realizado no México, em 1997, Gabriel García Márquez contou como, aos doze anos de idade, descobrira o poder das palavras – que lhe surge atrelado à possibilidade de suspender a morte. A descoberta se deu assim: uma bicicleta só não atropelou o menino Gabriel porque um padre gritou “cuidado!” e o ciclista acabou caindo no chão. Em seguida, próximo do menino, o padre o instruiu: “Viu só o poder da palavra?”.

Anos antes dessa fala, no ano de 1982, tanto nas conversas que manteve com o amigo Plinio Apuleyo Mendoza, publicadas no livro Cheiro de Goiaba, quanto em seu discurso de agradecimento ao prêmio Nobel, “A solidão da América Latina”, ele reconheceu que as palavras são insuficientes para dar conta da experiência (pessoal ou histórica). Esta falta só pode ser vencida pelo exercício narrativo: ao narrar, transforma-se a linguagem.

3.

Alguns anos antes de falecer, García Márquez publicou, em 2004, uma novela, Memória de minhas putas tristes, que veio a ser sua última obra ficcional. Nela, o narrador, um velho nonagenário, após quarenta anos trabalhando num jornal local, se encontra aposentado da profissão de “inflador de cables”.

Esse ofício consistia em reconstruir e completar as notícias do mundo que chegavam por ondas curtas ou código Morse. Um telegrafista ouvia a notícia e a transcrevia. Cabia então ao “inflador de cables” – que o tradutor brasileiro Eric Nepomuceno verteu por “domador de telegramas” – transformar o garrancho em notícia, ou seja, redigi-la coerente e corretamente, datá-la, intitulá-la e posteriormente espalhá-la aos principais jornais da cidade.

Do ponto de vista biográfico, García Márquez esteve próximo às profissões de telegrafista e “inflador de cables” não só porque trabalhou em jornais, mas porque era filho de um telegrafista. Do ponto de vista linguístico, o verbo “inflar”, em espanhol, tem também o sentido de “exagerar”: exagerar uma notícia, um fato. “Cable” designa o telegrama ou mensagem escrita transmitida por cabo elétrico submarino. “Inflador de cables” pode ser lido como aquele que exagera a notícia.

Se deslocarmos essa denominação do âmbito jornalístico para o literário, ela pode caracterizar a posição do narrador (cronista ou fabulador): este é um inflador de cables. Narrando, ele, por um lado, calibra a linguagem para dar conta do informe (um ruído, um rumor, garranchos), transformando-o em prosa cadenciada, e, por outro, diante de uma língua murcha, ele, o soberano soprador, a infla para ampliarmos nossa compreensão daquilo que denominamos realidade.

Não se trata, portanto, de empolar ou mesmo rebuscar a linguagem, mas sim – assumindo sua natureza pública, compartilhada, por meio da qual podemos pensar e alcançar nossa “organização” comum do mundo interno e externo – tonificá-la de modo a permitir a entrada do possível.

4.

Ao defender que todo escritor habita a selva espessa do real, Juan José Saer quis jogar fora os milhares de estereótipos e clichês que são confeccionados e aplicados para se pensar as literaturas – sobretudo a latino-americana – de diferentes línguas e regiões do planeta.  Um deles – realismo mágico – é justamente o que foi aplicado indistintamente a toda obra de García Márquez desde 1967, data da publicação de Cem anos de solidão. Basta uma simples comparação entre este romance e a novela Crônica de uma morte anunciada e veremos que o rótulo mais atrapalha do que ilumina as obras.

Outro escritor, J. M. Coetzee, adota posição semelhante. No longo ensaio que escreveu sobre Memórias de minhas putas tristes, sustenta que apesar de Garcia Márquez ainda ostentar o rótulo de “realista mágico”, ele, na verdade, opera na tradição do realismo psicológico, cuja premissa é a “de que as operações da psique individual têm uma lógica que pode ser acompanhada” (p. 315). Este deslocamento o aproximaria dos autores de narrativas fantásticas.

Quando Italo Calvino organizou a coletânea de contos fantásticos do século XIX – justificando que esse tipo de narrativa “diz muitas coisas sobre a interioridade do indivíduo e sobre a simbologia coletiva” –, ele datou seus primórdios no campo filosófico dos séculos XVIII e XIX, tendo como tema a “relação entre a realidade do mundo que habitamos e conhecemos por meio da percepção e a realidade do mundo do pensamento que mora em nós e nos comanda” (p. 9). E um dos primeiros autores de sua coletânea é o alemão E. T. A. Hoffmann (1776-1822) – não só um dos primeiros inventores do conto fantástico, mas também do realismo psíquico. Em suas narrativas, um olhar íntimo – que realmente enxerga – faz o escrutínio do mundo interior e subjetivo e expõe a lógica que o preside.

5.

No caso do solitário solteirão, narrador do Memória de minhas putas tristes, ele parece abandonar a prisão de si quando, já ancião, se dá conta de que jamais havia sido brindado pelo sentimento de amor.

Até os noventa anos, havia passado toda sua vida na casa onde nasceu e onde também moraram e morreram seus pais; havia mantido relações com mulheres quase sempre pagas, fossem elas prostitutas ou não; havia desfeito o noivado com uma mulher; havia se esforçado para por e manter cada coisa em seu lugar. Em sua obsessão pela ordem, havia dissimulado a desordem, sua verdadeira natureza.

Para celebrar seus noventa anos, decide se presentear com uma noite de amor com uma adolescente virgem. Ao repetir o ato que sempre repetira com as mulheres, algo lhe escapa ao controle. O que ocorre nesse primeiro encontro é o ponto de partida da única experiência que ele julga merecedora de ser deixada aos seus sobreviventes. E a narrativa, em que a alma de um velho pode ser sondada e compreendida, é o material herdado pelos leitores.

Essa relação entre um homem mais velho e uma adolescente parece ter nascido, segundo J. M. Coetzee, de um episódio do romance O amor nos tempos do cólera, que García Márquez publicara quase vinte anos antes. Neste, o personagem central, Florentino Ariza, também manteve relações com uma menina de catorze anos.

Não só nesse tipo de relação se assemelham Florentino e o velho narrador do Memória de minhas putas tristes, mas também em algumas outras características: Florentino, por exemplo, “foi solteiro a vida inteira, é poeta amador, escritor de cartas de amor para pessoas com problemas ligados à palavra, frequentador devoto de concertos, um tanto avarento em seus hábitos, e tímido com as mulheres. Ainda assim, a despeito de sua timidez e de sua falta de atrativos físicos, meio século de romances sub-reptícios lhe rende 622 conquistas, sobre as quais mantém anotações numa série de cadernos”. O ancião também mantinha um registro dos encontros com as mulheres (até os cinquenta anos acumulara a soma de quinhentas e catorze mulheres) e, além de professor de castelhano e latim, escreve crônicas e resenhas de música e teatro para o jornal.

Se Florentino se desfaz da relação com a menina para a realização de sua relação amorosa com Firmina, nesta novela quem vai despertar o velho para o amor e o deixar completamente tomado por esse sentimento será uma menina que o espera, sempre adormecida, num quarto de bordel.

Na primeira noite, diante da menina, o velho sente veneração pelo corpo da mulher – que jamais havia contemplado antes – sem sentir as angústias do desejo e os estorvos do pudor. Deste dia em diante, o erotismo insufla seus sentidos e contamina toda sua vida (das crônicas que escreve ao rearranjo de sua relação com as mulheres – da mãe a sua faxineira semanal).

6. 

Por ser uma narrativa de caráter memorialístico, oscilando entre a fantasia e a realidade, alguns fatos reais podem ser esquecidos, diz o narrador, assim como alguns que nunca aconteceram podem estar na lembrança como se tivessem acontecido. Quando, na alma do velho, se instala a falta da menina, sempre um ausente, seja animal ou humano, mortos ou distantes, reaparecem como se ainda estivessem vivos. A concatenação entre o vivido e o não vivido só é possível porque a memória é insuflada pela imaginação. Assim, mesmo que na velhice a memória possa perder o que não lhe é essencial, raras vezes ela falha para o que realmente lhe interessa.

Tanto o autor quanto o narrador de Memória de minhas putas tristes coincidem ao menos num ponto: narrar é a maneira que ambos encontram para adiar a morte. Ao dar testemunho por escrito de seu aprendizado – o sexo “é um consolo para os que não desfrutam do amor” –, o velho narrador poderá postergar sua morte para um dia qualquer depois de seus cem anos. Gabriel García Márquez, na solidão de um quarto, com um arsenal de apenas vinte e oito letras e dois indicadores, lutou incessantemente contra os surdos poderes da morte.

José Feres Sabino é doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).

Referências


Gabriel García Márquez. Memoria de mis putas tristes. 7a ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2011.

Gabriel García Márquez. Memória de minhas putas tristes. Tradução de Eric Nepomuceno. 22a edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.

Italo Calvino (org.). Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

  1. M. Coetzee. Mecanismos internos. Ensaios sobre literatura (2000-2005). Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Marcos Maffei (seleção). Os escritores 2: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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