Por TARSO GENRO*
Uma “visão” comum de resistência contra o fascismo miliciano instalado em Brasília
Reza a lenda que quando Guimarães Rosa esteve como diplomata na representação do país na Colômbia (Bogotá), na Conferência Interamericana de 1948, nossa delegação esteve por vários dias protegida na Embaixada local, já que em toda a cidade a insurreição campeava e ninguém tinha condições de segurança para transitar nas ruas ou mesmo viajar para sair da capital. O assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, líder popular anti-imperialista, despertara a ira do povo que se traduziu num grande movimento político insurrecional.
Depois da sua volta ao Brasil, um jornalista perguntou a Guimarães Rosa o que ele fizera naqueles dias históricos, obtendo dele a seguinte resposta: “reli Proust”. Rosa nunca foi um alienado político, nem um insensível perante a sorte alheia, pois como Cônsul brasileiro em Hamburgo durante o nazismo – antes do Brasil entrar na 2ª. Guerra – “falsificou” centenas de passaportes que liberaram famílias judias para viajarem e assim fugirem do massacre nazista. Ao dizer que somente “relera Proust”, o grande escritor apenas afirmava que, independentemente das suas preferências políticas, reconhecia a situação concreta e a sua impossibilidade real de atuar sobre ela, ao contrário do que fizera em Hamburgo.
O encontro de Lula com Fernando Henrique ajustando – não uma aliança eleitoral, mas uma “visão” comum de resistência contra o fascismo miliciano instalado em Brasília – mostra que ambos se convenceram, ao meu ver corretamente, que não teriam nenhuma justificativa para “reler Proust”, fugindo do impasse que nos e lhes cerca.
Neste contexto de tragédia nacional e dor alheia, sob pena de irem para a margem da História sem dignidade, viram que o que está em jogo não é qualquer pleito social democrata, mas a própria existência da República e da Democracia, Quando nos aproximamos de 500 mil mortes provocadas pelo negacionismo criminoso e pela inépcia arrogante do Governo conversa dos dois é um jato de luz na conjuntura. Em alguns momentos, “reler Proust” é um ato de sabedoria política omissiva, outras vezes é de omissão que seria um crime, como seria em Hamburgo e, em outras oportunidades, omitir-se de tomar uma decisão pode ser uma negação da verdade e igualmente uma ação de colaboração com o desastre. Lembremos um fato histórico significativo para o movimento comunista mundial – hoje em desuso e em vencimento – que foi a atitude dos comunistas perante a ascensão do nazifascismo. No Sexto Congresso da Internacional Comunista, em 1928, com a vitória do ponto de vista de Stálin, apoiado pela verve revolucionária de Zinoviev, foi homologada a visão de que fascismo e social-democracia eram irmãos gêmeos. Posição que colocava num mesmo plano, portanto, as democracias parlamentares do ocidente e o nazifascismo em ascensão. A tragédia que se seguiu é conhecida e a revogação tardia desta simplificação supostamente revolucionaria não conseguiu bloquear as piores faces da barbárie.
A tese chancelada neste Congresso “patrolou” todo o movimento comunista mundial, que esperando a revolução que estaria no horizonte, aceitava uma falsa identidade que levou à impotência a resistência ao fascismo. O que estava em jogo era derrotar o fascismo no horizonte e não a aposta numa revolução que sequer ainda mostrara a suas virtudes igualitárias na terra do bolchevismo.
As grandes lideranças políticas que, em distintas épocas, assumiram governos democráticos na Federação, desde a Revolução 30 até os dias que correm, nunca pretenderam encaminhar os seus liderados – de dentro e de fora dos seus Governos – para uma luta contra o sistema capitalista. Os seus programas sempre foram “reformistas”, ora à direita, ora à esquerda e jamais propuseram revoluções de natureza socialista.
Todos estes líderes conviveram com grupos socialistas, social-democratas e comunistas, e estiveram – segundo a história pessoal de cada um – mais próximos ou mais distantes, tanto do conservadorismo tradicional, como das ideias de igualdade e solidariedade do iluminismo democrático, que vêm atravessando o ciclo histórico da revolução francesa, do qual a revolução russa foi o seu exemplo mais radicalizado. O ciclo dos últimos sessenta anos de disputas pelas reformas do capitalismo no Brasil, todavia, tem marcos políticos importantes que devem ser lembrados, que não podem ficar subsumidos no debate imediato da reação fascista e dos discursos do “mito”. Vários marcos exemplares foram produzidos no campo do que se convencionou chamar esquerda, para o desenvolvimento de um Brasil mais justo e soberano, como a declaração de “utilidade pública” (para desapropriações destinadas à reforma agrária) ocorrida no fim do Governo João Goulart: ela designava 10 km ao longo das margens das rodovias federais, se terras improdutivas, para a efetivação da reforma agrária.
Getúlio, Juscelino, Jango, Sarney, Itamar, Fernando Henrique e Lula – nem todos apontados ou autodesignados como “esquerda”, jamais defenderam ideias comunistas ou socialistas em qualquer sentido, mas sim políticas públicas de caráter social, mais ou menos avançadas (ou progressistas e “populares”) em distintas épocas, em maior ou menor proximidade de um pensamento de esquerda.
A aparente radicalidade dos seus Governos veio mais do desconforto das nossas classes dominantes de extração escravista do que de qualquer sentido “expropriatório” dos privilégios dos ricos. Penso que alguns episódios políticos avançados em termos democráticos, deste período, devem ser considerados neste momento de unidade necessária: a coragem de Goulart em busca da Reforma Agrária defendida por Brizola, as ações “desenvolvimentistas” de JK, as políticas de Direito Humanos desenvolvidas no Governo FHC por Paulo Sérgio Pinheiro, os projetos sociais estratégicos de Lula que retiraram da miséria 40 milhões de brasileiros e inauguram o Brasil de respeito global. As narrativas de boa parte da esquerda socialista ancorada no pensamento dominante da III internacional, sobre estes Governos – como se eles fossem suscetíveis a se tornarem companheiros de viagem para um projeto socialista – sempre foi uma discussão heroica, proposta por quem não conseguiu gerar um partido revolucionário com independência de classe e assim pensou que a carona no reformismo progressista facilitaria o advento do socialismo.
Hoje, todavia, o que importa é defender o país da agressão fascista, que faz o limite para um campo único de resistência que, se fracassar, fechará o futuro para todos num país dominado pelo crime e pelo ódio. Ainda bem que Lula e FHC entenderam que não era o momento moral e político legítimo de ficar “relendo Proust” e releram — cada um deles – a sua memória política democrática. Pode até não dar certo, mas este almoço já está na História e o seu cardápio político pode ajudar a mudá-la para melhor.
*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.