Um papel dúbio

Colt Third Model Dragoon Percussion Revolver, 1853.
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Por IGOR GRABOIS*

Por uma revolução em assuntos militares.

Os militares se colocaram, desde o fim da ditadura, como um ente acima da sociedade brasileira. O mundo político aceitou essa posição, em uma espécie de acordo tácito, vocês não dão golpes e nós não interferimos na vida interna das Forças Armadas. As relações entre governo e militares se limitaram a disputa orçamentárias – menos verbas com FHC e mais com Lula, diga-se de passagem – e vetos a prestações de contas da época da ditadura.

A guerra, assunto por demais importante para ficar a cargo dos generais, segundo Churchil, não é assunto da vida nacional, muito menos do campo progressista. Houve um início de discussão que extrapolou as fronteiras das corporações militares na elaboração da Estratégia Nacional da Defesa em 2008. Mas foi só. No governo Temer, os generais consolidaram seu controle absoluto sobre assuntos de defesa. Deu no que deu.

Há uma necessidade de uma mudança profunda na política, organização, estratégia, na doutrina operacional, e na formação de pessoal militar. Em se derrotando o fascismo, algumas questões que devem ser debatidas.

Segurança e defesa são conceitos diferentes, não obstante a necessidade de se pensar segurança e defesa de maneira integrada. E a segurança pública é um dos aspectos da segurança, que forçosamente tem outras dimensões: segurança ambiental, segurança alimentar, segurança energética, segurança da informação, dentre outras. A função precípua das forças armadas é a defesa, voltada para ameaças externas.

Portanto, é preciso acabar, de uma vez por todas, com a dubiedade do papel das Forças Armadas, suscitadas por uma interpretação torta do famigerado artigo 142 da Constituição de 88. Deixar claro que as Forças Armadas não são polícia, muito menos gendermeria.  Seu emprego em assuntos internos do país só pode ocorrer em ocasiões definidas de maneira taxativa, como desastres naturais, apoio a órgãos governamentais em momentos de crise e operações subsidiárias, como transporte aéreo na Amazônia, por exemplo. O emprego das Forças Armadas não pode ser tapa-buraco da incapacidade dos órgãos de segurança pública.

As funções de polícia administrativa da Marinha, Exército e Aeronáutica devem ser repassadas a outros órgãos governamentais.

A criação de uma Guarda Costeira uniformizada, de caráter civil, de carreira única deve absorver as atribuições de polícia marítima, segurança do tráfego aquaviário e proteção ambiental hoje exercidas pela Marinha.

Da mesma forma, deve-se completar o processo já em curso, ainda de maneira lenta, da transferência do controle do tráfego aeroespacial civil da Força Aérea para um órgão de navegação aérea ligado ao ministério dos transportes. Pode-se discutir, também, a criação de uma polícia aeroportuária, similar à proposta de Guarda Costeira.

A fiscalização de produtos controlados – armas e explosivos – deve ser transferida do Exército para um órgão civil a ser criado, com engenheiros e técnicos civis especializados. A extinção da Inspetoria Geral das Polícias Militares é urgente para livrar o Exército de encargos de segurança pública. Essa medida deve vir acompanhada de uma reorganização profunda dos entes de segurança pública estaduais, em uma discussão que deve caminhar paralela.

Valendo para as três armas, o controle de fronteiras em seu caráter policial deve deixar de ser tarefa das Forças Armadas. A lacuna seria preenchida por uma Polícia de Fronteiras, de ciclo completo e carreira única, de caráter administrativo e uniformizada. As Forças exerceriam o controle de fronteiras no que tange à defesa, prevenindo ameaças externas.

Liberando Exército, Marinha e Força Aérea das atribuições de segurança pública, é possível que as Forças se concentrem na solução das questões de defesa. Deve-se partir do princípio que os assuntos de defesa são assuntos do Estado Brasileiro. O fortalecimento e a ampliação do papel do Ministério da Defesa é fundamental.

Nessa reconfiguração de atribuições e papeis, existiria uma clara divisão de tarefas. Os comandantes das forças singulares – Exército, Marinha e Aeronáutica – teriam a responsabilidade pelo Preparo, a saber, ensino militar, adestramento, avaliação e doutrina, saúde assistencial e apoio à família militar, administração de pessoal e serviço militar, engenharia, pesquisa e desenvolvimento, gestão de material de emprego militar, orçamento, licitações, aquisições e contratos, cultura e desporto militares, e tecnologia da informação. Muitas dessas tarefas podem ser compartilhadas, sob a direção do Ministério da Defesa.

O Emprego seria responsabilidade do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. Os atuais Comando de Operações Terrestres (COTER), Comando de Operações Aeroespaciais (COMAE) e Comando de Operações Navais (ComOpNav) passariam ao controle do Estado-Maior Conjunto, com comando sobre as unidades terrestres, navios e aeronaves operacionais. As operações militares e a logística imediata seriam dirigidas pelo Estado-Maior Conjunto.

Como decorrência do emprego operacional unificado, deve-se proceder a unificação dos centros de inteligência das forças singulares em um único organismo de inteligência da defesa, com funções de defesa, jamais de segurança interna.

Um debate que merece ser aprofundado é a criação de uma quarta força singular, que enfeixe as dimensões cibernéticas e eletromagnéticas dos conflitos armados. Essa força, talvez, nem precise ser militar strictu senso.

A interoperabilidade é a norma dos conflitos atuais. Nenhuma força singular sobrevive ao combate sem operações mútuas. A unificação do emprego levará à racionalização e à economia de recursos, além de minimizar o corporativismo e evitar a duplicação de esforços.

Mudanças profundas na carreira militar devem ser postas em prática. A formação de uma reserva, o emprego de pessoal militar temporário e a valorização das carreiras civis da Defesa são fundamentais para a integração dos militares na vida governamental e social em geral. Os postos e funções combatentes deverão ser facultados a mulheres e homens indistintamente, sem discriminação de gênero e opção sexual.

As novas tecnologias e sistemas diluíram a separação estrita entre oficiais e praças. A valorização da carreira de praças, muitos com formação universitária, será um norte da reestruturação da carreira militar, levando, inclusive, ao fim da divisão da carreira de praças e oficiais.

A promoção de oficiais-generais pelo Presidente da República hoje é mera formalidade. As escolhas são feitas interna corporis. O processo de escolha deve ser ampliado, aumentando o papel do ministério da defesa. A aprovação dos nomes no Senado, como ocorre com os embaixadores, seria uma forma de publicizar e normatizar os critérios.

O ensino militar não pode continuar a formar oficiais com uma cultura estrita de caserna. Ao invés de graduar os oficiais nas academias, pode-se criar uma sistemática de recrutamento junto aos concludentes de curso superior. A graduação militar se transformaria em uma especialização de dois anos nas academias, por exemplo.

Essas são apenas algumas propostas por um debate mais amplo. Nada disso terá validade se as questões militares não forem debatidas no conjunto da população. E é questão liminar a apuração e denúncia dos crimes da ditadura, sob pena das Forças Armadas carregarem essa mancha por toda sua história.

E para as novas doutrina, estratégia e cultura militares ganharem materialidade é preciso fazer o desenvolvimento, a fabricação e a logística dos equipamentos de emprego militar no Brasil, consolidando um verdadeira Base Industrial de Defesa, como vetor para reindustrialização do país.

*Igor Grabois, economista, é diretor da Grabois Olímpio Consultoria Política.

 

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