A estratégia da saúde pública

Imagem: Silvia Faustino Saes
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Por MARCIO LUIZ MIOTTO*

A pandemia tem revelado muitas políticas oportunistas, populistas e até fascistas

ὁ Ἡράκλειτός φησι τοῖς ἐγρηγορόσιν ἕνα καὶ κοινὸν κόσμον εἶναι τῶν δὲ κοιμωμένων ἕκαστον εἰς ἴδιον ἀποστρέφεσθαι

Uma jovem senhora chega à manicure. Sentando em posição mais alta do que as atendentes, de repente ela confunde altura com superioridade, tira a máscara e bafeja nas demais: “eu já me vacinei! Quem não se vacinou ainda, que lute“. Todas se entreolham. A dona do salão busca para ela outra máscara e aponta para a placa de obrigatoriedade, bem nítida na sala. Mas o recado está bem dado: para a madame, a vacina é uma garantia pessoal, privada, individual, não é uma coisa pública. Não importa se as outras pessoas do recinto não estavam vacinadas. O que importa é: quem quiser, “que lute”.

A fala da jovem senhora não é casual. Não faz muitos dias, o presidente do Brasil disse que recomendaria ao ministro da saúde para emitir documento embasando que os já vacinados e contaminados pudessem dispensar a máscara. Diante da recomendação negacionista e sem sentido, Queiroga fez o que outros ministros-médicos anteriores talvez não fizessem, justificando as palavras do presidente e ainda pondo palavras que sequer saíram de sua boca.

Mas essa fala do presidente – e a da jovem senhora – é muito importante e diz muito sobre como o brasileiro enxerga e combate a pandemia. Pois, numa pandemia como esta, em termos científicos e epidemiológicos a máscara tem pouca utilidade se não for vista como tática dentro de uma estratégia geral de saúde pública. E isso define tudo.

Define tudo, em primeiro lugar, porque quando o brasileiro usa máscara, muitos não entenderam que isso é uma estratégia de saúde pública, e sim entenderam que é uma medida simplesmente individual. O brasileiro ouviu em algum lugar o termo “EPI” (equipamento de proteção individual) e compreendeu que usar máscara visa a proteção própria. Uso máscara para me proteger da COVID do mesmo modo como ponho o casaco para não me gripar no frio ou o guarda-chuva para não ficar resfriado. Afinal, as pessoas não usam máscara também para se proteger num hospital? Eis a prova.

E isso revela tudo: se usar máscara é medida individual e não pública, isso significa, no fundo, que eu não estou vivendo como se estivesse numa pandemia, as coisas que faço e meus costumes não se orientam tal como se uma pandemia estivesse diante de meu nariz. E não seria nada inútil notar como é que tantos tratamentos falsos, do ozônio no ânus até o “tratamento precoce” com vermífugos e anti-piolho, tiveram tanto sucesso no Brasil. Afinal, a despeito da falsidade eles foram bem compreendidos como medidas de cuidado individual junto a outras medidas individuais, constituindo uma rede de cuidados cujo significado se resume ao âmbito privado. Eu tomo cloroquina, ivermectina, própolis, vitamina e até uso máscara para me proteger.

Essa, inclusive, seria uma das chaves para explicar como é que o Brasil é um dos poucos países nos quais as pessoas ainda falam em cloroquina (é claro que há outros fatores, como as Fake News).

De todo modo, isso tudo indica uma imensa carência em termos de jornalismo e, especialmente, de divulgação científica. Pois, mesmo que a função da máscara não seja simplesmente individual, é assim que milhões de pessoas entenderam e é assim que a usam – e isso quando a utilizam, pois se a máscara não passa de uma questão individual, isso também torna individual a decisão para usá-la (inclusive com o nariz de fora).

É como se, no meio de uma pandemia, uma sociedade inteira esquecesse do elemento pandêmico e populacional propriamente ditos.

Tome-se, por exemplo, as vacinas que tomamos desde quando éramos crianças: elas nunca foram vistas como simples questão individual. Posso tomar vacina e ainda pegar a doença (sempre aprendi que nenhuma vacina nunca foi garantia absoluta para mim), mas nunca tomei a vacina apenas porque isso me protegeria, e sim porque, mesmo sem entender direito, sempre me disseram que tomar é preciso. Mas por que é preciso? Ora, porque se as pessoas não tomarem, doenças praticamente erradicadas voltam e se alastram, quer eu garanta minha própria vacina, quer não.

Desde que houve a possibilidade de universalizar a vacina, eu nunca fui exatamente obrigado (no sentido de constrangido) a me vacinar, nem meus pais nunca foram em sentido literal obrigados a isso (e apenas porque as vacinas foram tão bem sucedidas e universalizadas é surgiram os movimentos anti-vacina). Mas o fato é que as pessoas se vacinaram, não porque “decidiam” ou não se vacinar, mas porque vacinar sempre foi preciso, inevitável, um fenômeno simplesmente populacional como tomar água com cloro ou responder o pesquisador do IBGE (nunca “escolhi” qualquer vacina, do mesmo modo como nunca prestei atenção na marca do cloro da minha água). Aparecia uma doença nova ou a data prevista e… vacina.

É precisamente isso que é decisivo em relação ao uso individual da máscara ou à “decisão” para se vacinar nesta pandemia. Máscara e vacina são pouco vistas como questão pública e coletiva. Tome-se o caso da máscara: em termos epidemiológicos, usar máscara nunca foi apenas um cuidado pessoal, pois como cuidado meramente pessoal na pandemia COVID ela não é absolutamente eficaz. Agora, a máscara é essencialmente eficaz como cuidado coletivo.

Esse é o elemento do que chamamos de saúde pública. Se eu uso máscara eu reduzo em algo da probabilidade de me infectar, mas reduzo muito a chance de infectar outra pessoa. Isso significa dizer que uma rede populacional de pessoas usando máscara é uma rede muito eficaz de proteção, não individual mas coletiva.

Na prática, significa dizer: não tenho, com isso, nenhuma garantia absoluta de que não vou me infectar, mas tenho uma garantia certa de que os índices da pandemia reduzirão imensamente, ou não aumentarão como aumentariam se as pessoas não usassem máscara. Moral da história? Porque eu e outros usamos máscara, minhas chances de ficar doente tornam-se mínimas, elas diminuem muito mais do que se apenas eu resolvesse usar máscara (um pouco como eu já sabia sobre imunidade coletiva nos casos de sarampo ou paralisia infantil).

E aí entendemos como é que a máscara é uma dentre outras táticas em saúde pública, e porque o seu significado nunca deveria ter sido meramente individual. Mas há mais: usar máscara deveria ser apenas uma dentre outras táticas numa estratégia geral, e a mais importante delas é o isolamento social.

De todo modo, mais uma vez entendemos por que as pessoas andam mais propensas a usar vermífugo e criar superbactérias com medicação inútil, ao invés de se isolarem numa pandemia. É possível entender também por que é que discursos flertando com o fascismo dizem que os governadores e prefeitos é que interferem nas liberdades individuais quando pregam o isolamento ou multam as máscaras. Afinal, tudo é visto como apenas individual… E se tudo afeta apenas a mim, então é cada um por si e Deus por todos (e quem nunca ouviu o dito de que só se isola “quem pode”?).

Não é à toa que, mesmo com o avanço da vacina, em certo sentido o Brasil não tem vacinado milhões de pessoas, mas apenas átomos sociais, pois em muito a questão não parece populacional (imunidade coletiva) e sim privada (cada um “lutando pelo seu”). Basta estar numa fila de vacina e ouvir o falatório. Se a preocupação central é “qual vacina será a minha”, se as vacinas têm preferência definida por correntes de WhatsApp, é porque muita gente entendeu que o problema é individual e não coletivo (sequer importando que isso seja um falso problema). Não é raro, igualmente, ver gente indo até o estande de vacina apenas para negá-la. E se há tantos casos de enfermeiras fingindo aplicar a vacina para guardar a dose, é porque a medida não diz respeito a todos, mas à minha vacina. Se a vacina é decisão minha, posso então manter as mesmas condutas individuais (pró ou contra a transmissão), estando nem aí para os outros mas colocando a vacina ao lado dos outros ítens de minha rede privada de cuidados. Afinal, quem quiser “que lute”.

Isso tudo diz muito sobre o Brasil. A pandemia tem revelado muitas políticas oportunistas, populistas e até fascistas. Mas ela tem revelado também que tipo de povo é o que torna o fascismo e o populismo possíveis. É o povo que se atomiza, perde o elemento de solidariedade coletiva e, por vezes, sequer entende – ou pior, negligencia – o que significa saúde pública.

*Marcio Luiz Miotto é professor de fundamentos filosóficos da psicologia na Universidade Federal Fluminense.

 

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