A cúpula do clima

Wols (Alfred Otto Wolfgang Schulze), [sem título], 1988
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

Ou mudamos ou corremos o risco de desaparecer da face da Terra

Em Glasgow, nesse final de 2021, com a COP26 se discute como reduzir os níveis de gases de efeito estufa para não chegarmos em 2030 a 1,5 graus Celsius e então a um caminho sem retorno. A maioria está cética, pois os grandes emissores não cumpriram o Acordo de Paris. Reduzirem apenas até 7% e o Brasil, ao contrário, cresceu em 9% sua emissão. Dada a engrenagem do processo produtivo mundial de viés capitalista que tende a não assumir nenhum limite em seus ganhos, provavelmente não alcançaremos esta meta. Nossos filhos e netos herdarão uma Terra devastada e poderão nos amaldiçoar por não termos feito a lição de casa. A situação dramática da Terra está ausente nos debates. Não se fala da relação destrutiva para com a natureza. Vejamos rapidamente, no curso da história, como chegamos ao drama atual.

 

A interação com a natureza

Nossos ancestrais que se perdem na penumbra dos tempos imemoriais, entretinham uma interação não destrutiva: tomavam o que a natureza fartamente lhes oferecia. Esse tempo durou milênios, começando na África, onde surgiu o ser humano, pela primeira vez há alguns milhões de anos. Por isso, somos todos, de alguma forma, africanos.

 

A intervenção na natureza

Há mais de dois milhões de anos, irrompeu, no processo da antrogênese (a gênese do ser humano na evolução) o homem hábil  (homo habilis). Aqui ocorreu uma primeira virada. Inicia-se aquilo que culminou de forma extrema nos nossos dias.  O homem hábil inventou instrumentos com os quais operava uma intervenção na natureza: um pau pontiagudo, uma pedra afiada e outros recursos semelhantes. Com eles podia ferir e matar um animal ou podia cortar plantas. Essa intervenção se desenvolveu muito mais intensamente com a introdução da agricultura e da irrigação, ocorrida por volta de 10-12 mil atrás na era chamada do neolítico. Desviavam-se águas dos rios, melhoravam colheitas, criavam animais e aves para serem abatidos.

É o tempo em que os humanos deixaram de ser nômades e se fizeram sedentários, com  vilas e cidades, geralmente, junto aos rios como ao Nilo no Egito, ao Tigre e ao Eufrates no Oriente Médio, ao Indo a o Tanges na Índia e ao redor do imenso lago interno, o  Amazonas que há milhares de anos, desaguava no Pacífico.

 

A agressão à natureza

Da intervenção passamos à agressão da natureza, na era industrial a partir do século XVIII. Surgiram as fábricas com a produção em massa. Forjou-se todo tipo de instrumentos técnicos que permitiam extrair enormes riquezas da natureza. Partia-se da premissa de que o ser humano é “senhor e dono” da natureza, não se sentindo mais como hóspede e parte dela. A ideia-força era a vontade de poder, entendida como capacidade de dominar tudo: outras pessoas, classes sociais, povos, continentes, a natureza, a matéria, a vida e a própria Terra como um todo. Foram produzidas armas de destruição em massa, químicas, biológicas e nucleares.

O inglês Francis Bacon, tido como o fundador do método científico moderno, chegou a escrever: “Deve-se torturar a natureza como o torturador tortura a sua vítima, até ela entregar todos os seus segredos”. Os conhecimentos científicos foram logo transformados em técnicas de extração de bens naturais, cada vez mais aperfeiçoadas, para realizar o propósito de acumulação ilimitada. Aqui a agressão ganho estatuto oficial. Foi e continua sendo aplicada até os dias atuais.

 

A destruição da natureza

Nos últimos tempos de modo especial, depois da segunda guerra mundial (1939-1945) a sistemática agressão ganhou dimensões de verdadeira destruição de ecossistemas, da biodiversidade, dos bens e serviços escassos da natureza, até da Mãe Terra  agredida em todas as suas frentes.

Segundo notáveis cientistas, inauguramos uma nova era geológica, chamada de antropoceno, na qual o ser humano emerge como a maior ameaça à natureza e ao equilíbrio da Terra, particularmente de seus climas. Chegou-se ao ponto de nosso processo industrialista e o estilo consumista de vida dizimar anualmente cerca de 100 mil organismos vivos. Mais de um milhão deles estão sob grave ameaça de desaparecimento.

A partir desta verdadeira tragédia biológica começou-se a falar de necroceno, quer dizer, a morte (necro) em massa de vidas da natureza e de vidas humanas por miséria, fome de milhões e milhões e agora pelo Covid-19 planetário.

 

A erosão da matriz relacional

Perdeu-se a perspectiva do Todo. Ocorreu uma verdadeira fragmentação e atomização da realidade e dos respectivos saberes. Sabe-se cada vez mais sobre cada vez menos. Tal fato possui suas vantagens, mas também seus limites. A realidade não é fragmentada. Por isso os saberes também não podem ser fragmentados. Falamos da aliança entre todos os saberes, também dos populares (Prigogine).

Deixou-se de considerar as relações de interdependência que todas as coisas guardam entre si. Numa palavra: erodiu-se a matriz relacional de todos com todos, que envolvem o próprio universo. Nada existe fora da relação. Numa poética formulação do Papa Francisco em sua encíclica Laudato si: sobre o cuidado da Casa Comum (2015) se afirma: “O Sol e a Lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal, o espetáculo de suas diversidades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma; elas são interdependentes uma das outras para se completarem mutuamente no serviço uma das outras!” (n. 86).

Se realmente todos estamos entrelaçados, então devemos concluir que o modo de produção capitalista, individualista, depredador da natureza, visando o maior lucro possível sem se dar conta das relações existentes entre todas as coisas, emitindo gases de efeito estufa, está na contramão da lógica da natureza e do próprio universo.

A Terra nos criou um lugar amigável para viver mas nós não estamos nos mostrando amigáveis para com ela. Ao contrário, movemos-lhe uma guerra, sem chance de ganhá-la, a ponto de ela não aguentar mais e começar a reagir numa espécie de contra-ataque. Este é o significado maior da intrusão de toda uma gama de vírus, especialmente do Covid-19. De cuidadores da natureza nos fizemos em seu Satã ameaçador.

 

Ou mudamos ou podemos correr o risco de desaparecer

Até o advento da modernidade o ser humano percebia-se ligado ao Todo. Agora a Mãe Terra foi transformada “num banheiro” e “estamos cavando nossa sepultura” disse o Secretário Geral da ONU António Guterres ao abrir os trabalhos na COP26 no dia 31/10/2021, ou num baú cheio de recursos a serem explorados. Nessa compreensão que acabou por se impor, as coisas e os seres humanos estão desconectados entre si, cada qual seguindo um curso próprio.

A ausência do sentimento de pertença a um Todo maior, o descaso pelas teias de relações que ligam todos os seres, tornou-nos desenraizados e mergulhados numa profunda solidão, coisa que o impedia uma visão integradora do mundo, que existia anteriormente.

Por que fizemos esta inversão de rumo? Não será uma única causa, mas um complexo delas. A mais importante e danosa foi termos abandonado a referida “matriz relacional”, vale dizer, a percepção da teia de relações que entrelaçam todos os seres. Ela nos conferia a sensação de sermos parte de um Todo maior, de que estávamos inseridos na natureza como parte dela, como irmãos e irmãs, como afirma a Fratelli tutti do Papa Francisco e não simplesmente seus usuários e com interesses meramente utilitaristas. Perdemos a capacidade de admiração pela grandeur da criação, de reverência face ao céu estrelado, de respeito por todo tipo de vida e da capacidade de chorar pelo sofrimento da maioria da humanidade

Se não fizermos esta virada de “senhores e donos” (dominus) da natureza para “irmãos e irmãs (frater) entre todos, da humanidade e da natureza, não serão eventuais acordos alcançados na COP26 de diminuição de gases de efeito estufa que irão nos salvar. A questão é a mudança de paradigma. Ou mudamos ou corremos o risco de desaparecer da face da Terra.

*Leonardo Boff é eco-teólogo. Autor, entre outros livros, de Como cuidar da Casa Comum (Vozes).

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Renato Dagnino Matheus Silveira de Souza Walnice Nogueira Galvão Paulo Fernandes Silveira Leonardo Boff Alexandre Aragão de Albuquerque Vanderlei Tenório Maria Rita Kehl Gerson Almeida Marcos Aurélio da Silva Eleonora Albano Priscila Figueiredo Vladimir Safatle Lorenzo Vitral Flávio R. Kothe Tarso Genro Elias Jabbour Alexandre de Freitas Barbosa Rodrigo de Faria Bruno Machado Samuel Kilsztajn Rafael R. Ioris Marcus Ianoni José Micaelson Lacerda Morais Luiz Roberto Alves Sergio Amadeu da Silveira João Feres Júnior Michael Löwy Otaviano Helene Marcelo Módolo Paulo Capel Narvai José Dirceu Anselm Jappe Andrés del Río Armando Boito Paulo Nogueira Batista Jr Luiz Bernardo Pericás Salem Nasser Marilena Chauí Leonardo Sacramento Claudio Katz Tadeu Valadares Gabriel Cohn Luiz Werneck Vianna Mário Maestri Valerio Arcary José Geraldo Couto Eliziário Andrade Carlos Tautz Bento Prado Jr. Benicio Viero Schmidt Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marilia Pacheco Fiorillo Henry Burnett Valerio Arcary Celso Favaretto Daniel Brazil Afrânio Catani Lucas Fiaschetti Estevez Bernardo Ricupero João Paulo Ayub Fonseca Boaventura de Sousa Santos Atilio A. Boron Alexandre de Lima Castro Tranjan Everaldo de Oliveira Andrade Ricardo Musse Mariarosaria Fabris João Lanari Bo Marcos Silva Fábio Konder Comparato Luiz Carlos Bresser-Pereira Chico Whitaker Remy José Fontana Alysson Leandro Mascaro André Singer Manuel Domingos Neto Luciano Nascimento Luís Fernando Vitagliano Denilson Cordeiro Ronald Rocha Ricardo Abramovay João Adolfo Hansen José Raimundo Trindade Francisco de Oliveira Barros Júnior Jean Marc Von Der Weid Ari Marcelo Solon Michel Goulart da Silva Paulo Martins João Carlos Salles Andrew Korybko André Márcio Neves Soares Michael Roberts Carla Teixeira Leda Maria Paulani Yuri Martins-Fontes Érico Andrade Heraldo Campos Gilberto Lopes Ricardo Antunes Igor Felippe Santos Luiz Eduardo Soares Kátia Gerab Baggio Antonino Infranca Sandra Bitencourt Osvaldo Coggiola Ronald León Núñez Henri Acselrad Jorge Luiz Souto Maior Fernão Pessoa Ramos Dennis Oliveira Marjorie C. Marona Jorge Branco Milton Pinheiro Juarez Guimarães Luiz Marques Caio Bugiato Marcelo Guimarães Lima Slavoj Žižek José Luís Fiori Thomas Piketty Francisco Fernandes Ladeira João Sette Whitaker Ferreira Airton Paschoa Fernando Nogueira da Costa Chico Alencar Lincoln Secco Luiz Renato Martins Manchetômetro Francisco Pereira de Farias Julian Rodrigues Tales Ab'Sáber Luis Felipe Miguel Daniel Afonso da Silva Paulo Sérgio Pinheiro Liszt Vieira Flávio Aguiar João Carlos Loebens Annateresa Fabris José Machado Moita Neto Leonardo Avritzer Daniel Costa Eduardo Borges Ladislau Dowbor Vinício Carrilho Martinez Plínio de Arruda Sampaio Jr. Antonio Martins Berenice Bento José Costa Júnior Ronaldo Tadeu de Souza Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Gilberto Maringoni Dênis de Moraes Rubens Pinto Lyra Jean Pierre Chauvin Antônio Sales Rios Neto Celso Frederico Eleutério F. S. Prado Ricardo Fabbrini Eugênio Trivinho Eugênio Bucci

NOVAS PUBLICAÇÕES