Chico Alencar*
Não seria exagero dizer que há uma espécie de “partido digital” que, dominado por quem exerce um controle planetário de vigilância, estimula a antipolítica, propondo “gestores” no lugar de governantes, consumidores em vez de cidadãos.
Há profundas transformações tecnológicas e produtivas no mundo, e elas chegam ao Brasil. As novas tecnologias empregam menos gente, a ponto de inúmeras funções de trabalho serem extintas. Os antigos “exércitos de reserva” deram lugar aos “excedentes”, “sobrantes”, “dispensáveis”, “descartáveis”. O capital, hegemônico, transita do fordismo ao toyotismo e à revolução tecnocientífica da robótica e da inteligência artificial, além da financeirização total através dos grandes fluxos do capital volátil (só a Bolsa de New York pode movimentar, em um dia, o equivalente ao PIB anual do Brasil!).
Isso criou uma nova configuração de classes na sociedade brasileira, que incide nas relações de trabalho, na dinâmica dos centros urbanos, nas áreas rurais e na produção agrícola. O IBGE atesta: entre 2017 e 2018 os sindicatos brasileiros perderam mais de 1,5 milhão de filiad@s! Em 2018, dos 92,3 milhões de brasileir@s ocupados, apenas 11,5 milhões tinham alguma ligação com entidades sindicais. A informalidade no trabalho e o estrangulamento das estruturas sindicais promovido pela mal chamada “reforma trabalhista” agrava esse quadro. É a “uberização” da economia.
Uma das formas de dominação do sistema hoje, muito estimulado pela revolução tecnológica do digital e da informática, é a extrema individualização. As sociedades “métricas”, dos algoritmos, cria redes virtuais (nada sociais) de proteção e conforto, onde grupos crescentes, negando a sociabilidade da política e rejeitando a cena pública, partilham seus desencantos e seu egoísmo, reação a um “mundo hostil”, que “não tem mais jeito”.
Não seria exagero dizer que há uma espécie de “partido digital” que, dominado por quem exerce um controle planetário de vigilância, estimula a antipolítica, propondo “gestores” no lugar de governantes, consumidores em vez de cidadãos. Ali prolifera a naturalização das diferenças de classe e das discriminações de cor de pele, de orientação sexual e de escolhas religiosas. A informação abundante e continuada não significa conhecimento.
A democracia liberal e seus sustentáculos tradicionais, os partidos políticos, estão em profunda crise. Estes, que não têm mais o monopólio da representação, são vistos, majoritariamente, e com razão, como aglomerados de espertalhões, cujos nomes “de fantasia” não correspondem a seu ideário. A negação dos partidos, entretanto, abre caminho para o individualismo salvacionista, para o neopopulismo personalista de direita.
Nessa “nomenklatura” ultraconservadora, Bolsonaro e alguns de seus ministros mais rudes e ruidosos falam para parcela do povo pobre e da baixa classe média, com suas diatribes raivosas, anti-intelectuais e agressivas. Moro e, de certa forma, Guedes, são os interlocutores “para cima”, face polida para a classe média e a burguesia um pouco mais ilustrada, mas igualmente conservadoras.
Ao constatar o tamanho da crise e como enfrentá-la, é preciso ver o nosso tamanho. Apesar dos ataques, notadamente nos direitos econômicos e sociais, na educação e no meio ambiente, a reação de organizações e movimentos, ou mesmo genericamente da cidadania, foi pequena em 2019. À exceção da mobilização liderada pelos estudantes, expressiva e intermitente, paira uma anestesia geral, um desencanto paralisante. A correlação no Parlamento também é muito desfavorável: no campo da chamada esquerda progressista não temos mais do que 135 deputad@s.
No tempo da celeridade da comunicação e da excessiva informação, não conseguimos deter criticamente a consolidação da opinião conservadora nem garantir a necessidade do conhecimento. O que é raso e falso tem prevalecido na era da “pós-verdade”, do cidadão regulado, securitizado, endividado. Fragilizado e individuado, ele facilmente busca amparo em um guru, um mito, um pastor. Como temos combatido isso, opondo a essa “cultura” o valor do gregário, do coletivo, da construção comum pelos comuns?
O vento só ajuda quem sabe a direção que quer dar ao barco. O porto alcançável, no momento, é visível: a preservação das conquistas democráticas, a denúncia da “naturalização” das desigualdades, a luta contra a privatização da vida, o repúdio à violência crescente das milícias e de grupelhos terroristas autointitulados integralistas. Urge uma obstinada oposição à licença para matar e para desmatar em vigor. O desafio é evitar a fragmentação da classe trabalhadora, já em curso, e integrar as lutas chamadas “identitárias” com as pautas econômicas, pois elas se complementam.
Há fissuras na muralha! A popularidade de Bolsonaro, em um ano de governo, é a menor de todos os presidentes nessa etapa, em primeiro mandato. Isso não implica em desconhecer que ele mantém sólida fidelidade de algo em torno de 1/3 do eleitorado – sendo de 15 a 17% destes bolsonaristas convictos, cujo perfil característico é de ricos, brancos, do Sul e Sudeste. Outro terço, cuja espinha dorsal é formada por pobres, nordestinos, mulheres e jovens, tem postura de oposição consolidada. Os dados são da pesquisa Datafolha do final de 2019.
No mundo, a onda conservadora, real, não é unitária e incontrastável. Se Boris Johnson e o Partido Conservador tiveram vitória avassaladora na Inglaterra (alavancada pelo “concluir o Brexit”), a “Geringonça” portuguesa foi mantida. A Espanha, se registra um crescimento da ultradireita e uma queda do Podemos, manteve os socialistas moderados do PSOE como força majoritária. Bibi e a extrema-direita israelense estão em apuros para manter a hegemonia.
Em nuestra America, a farsa Guaidó não prosperou apesar da real crise de condução da revolução bolivariana na Venezuela. No Equador, a traição de Moreno também foi barrada. Mobilizações multitudinárias acossam os governos direitistas do Chile e da Colômbia. Macri foi previsivelmente derrotado na Argentina, “compensando” previamente o desgaste que levou a Frente Ampla à derrota por margem mínima no Uruguai.
As eleições nos EUA, ano que vem, são decisivas. O propalado favoritismo de Trump – tragédia para o mundo e estrangulamento final de Cuba – não significa vitória certa. Não é incorreto dizer que há, hoje, um equilíbrio de forças e uma grande imponderabilidade em relação ao voto popular que escolherá os destinos de muitas nações. Opulência e indigência coexistem, conflitados, nos mesmos territórios.
Entre nós, trata-se de costurar a frente progressista nas lutas desde já, única fiadora da credibilidade de uma aliança eleitoral programática. Essa frente – que pressupõe a singularidade das diferentes forças, que não podem negar suas identidades nem se diluir – precisa ter centralidade nas questões democrática e sócio-ambiental, além de não aceitar qualquer aproximação com o atraso, cuja experiência recente já mostrou onde vai dar. Nem hegemonismos de quem se considera “maior e mais apto”, apesar dos graves equívocos cometidos.
O que está em disputa é um novo modelo civilizatório. Essa disputa, que emerge nos enfrentamentos cotidianos e nas competições eleitorais, é de valores e significados. Impõe a árdua, delicada e “docente” tessitura de uma nova subjetividade, gregária e solidária. O socialismo, essa necessária utopia, deve servir para elevar as expectativas da maior parte da população na construção de uma sociedade do bem viver, da democracia sem fim, da diversidade como valor, da economia da cooperação, promotora da igualdade. A luta é longa, comecemos já!
*Chico Alencar, ex-deputado federal (PSOL/RJ), é professor de História (UFRJ) e escritor.