Evaluador, de Noé Jitrik

Imagem: Marcio Costa
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Por AFRÂNIO MENDES CATANI & ANA PAULA HEY*

Comentário sobre a novela acerca da avaliação universitária

“A investigação é assim, a realidade escapa por todas partes: três quartas partes de conjeturas e uma quarta de desencanto” (Fala do Professor Hermógenes Goldstein).
À memória dos amigos queridos Alberto Pla (1926-2008), Pedro Krotsch (1942-2009) e Horacio González (1944-2021), que nos ajudaram a conhecer melhor a Argentina.

1.

Universidad del Centro de la Província de Buenos Aires, Tandil, 30 de agosto de 2007, conferência de abertura do V Encontro Nacional e II Latinoamericano, “La Universidad como objecto de investigación”. Plateia lotada. No palco do auditório, o coordenador da mesa, Pedro Krotsch, recepciona e apresenta o conferencista, o professor e crítico literário argentino Noé Jitrik (1928), também autor de contos, novelas, ensaios críticos, literários e históricos.

A partir de 1960, Jitrik publicou mais de 50 livros, fundou e dirigiu revistas literárias, além de lecionar em várias universidades em seu país e no exterior e escrever roteiros para filmes. Desde 1997 dirige o Instituto de Literatura Hispanoamericana da Universidade de Buenos Aires. Foi agraciado, ainda, com vários prêmios literários. Jitrik sacou o texto de “una carpeta” e, após agradecer a calorosa recepção, leu com toques de picardia e comentários paralelos o trabalho “Relato especulativo sobre dichas y desdichas de la universidad”.

A conferência durou menos de 40 minutos, tendo agradado a todos. Terminada a sessão, fomos falar com ele. Solicitamos a autorização para a publicação de sua fala no Brasil, trocamos nossos e-mails e, no dia seguinte, ele nos escreveu dando o seu OK. Quando já nos despedimos, de forma meio matreira, nos perguntou se conhecíamos a novela Evaluador, que ele havia publicado em 2002. Ante nossa negativa, sorriu e acrescentou: “Se vocês a lerem, acho que vão gostar. É divertida!” Voltamos a Buenos Aires e, no mesmo dia, compramos o livro. É desse livro que passamos a falar a partir de agora.

 

2.

Evaluador tem como epígrafe um expressivo trecho extraído de O Castelo, de Franz Kafka, que é o seguinte: “Em suma, como se podia ver de longe, o Castelo respondia às expectativas de K. Não era um velho castelo feudal nem um palácio de construção recente, mas sim uma ampla construção composta de alguns edifícios de dois andares e de um grande número de casas pequenas, construídas uma ao lado das outras”.

Na contra capa lê-se que a justiça, bem como seu estranho efeito sobre os seres humanos, foi uma grande obsessão de Kafka, levando-o a escrever textos relevantes da literatura mundial. “Algo menos universal, o ´juízo`- não a justiça – sobre ações e valores intelectuais – que incide sobre centenas de milhares de pessoas, pesquisadores, acadêmicos, escritores e meros postulantes –, isso que se impôs com o nome de ´avaliação` e que foi crescendo como uma planta parasitária na sociedade contemporânea”, é o objeto da novela do escritor argentino. As páginas de Evaluador esboçam uma situação delirante em que a inteligência é a grande derrotada e o poder, como metáfora da demência, visto com suas redes obscuras e asfixiantes.

Dividida em nove capítulos com extensões praticamente homogêneas – Os anúncios;  O castelo; O Centro Único; Cada vez menos; A ciência colocada em xeque; Dois jardins diferentes; O presidente;  O retorno das águas;  O tempo roda em círculo –, Evaluador possui um narrador desapaixonado que observa um acontecer de dupla face, que não tem sentido e, ao mesmo tempo, possui sentido pleno: um sentido irônico, devastador e, citando uma vez mais a Nitrik, “uma roda da fortuna em que todo valor desaparece no mar de uma exatidão de linguagem e de um extremo controle de sua trama insólita”. O juízo narrado constitui-se em um sarcasmo, “o poder em uma ilusão, os personagens em caricaturas grotescas e a realidade em um espelho partido”.

 

3.

No primeiro capítulo, “Os anúncios” (p. 9-26), somos apresentados ao personagem narrador, o professor Segismundo Gutiérrez, antigo docente que se encontra aposentado de seu trabalho na universidade após toda uma vida voltada ao ensino e à pesquisa. No momento em que começamos a leitura, informa-se que ele dedica a maior parte de seu tempo a sua atividade ao “Conselho”. Não se detalha explicitamente o que seja este órgão burocrático, mas logo se fica sabendo que é uma agência de fomento à pesquisa. Suas jornadas de trabalho são consumidas em “ler textos sem interesse, solicitações, memoriais variados e pretensiosos, mas também elaborar relatórios, emitir pareceres, dar opiniões, decidir o destino de pessoas que não conhecia e que queriam, quase sempre por meio de frases feitas ou lugares comuns, obter um cargo, uma promoção, um subsídio para tarefas vagas  que nunca iriam concluir…” (p. 9-10). Em suma, o professor Segismundo era um avaliador, que exercia a penosa, porém prestigiosa e complicada atividade de emitir pareceres (p. 10).

Após aposentar-se, o exercício de realizar avaliações se constituía em uma poderosa dose de trabalho que, a exemplo de uma droga, o mantinha vivo e ativo mas, ao mesmo tempo, “o esvaziava, o exterminava, o desafiava todos o dias com novas impossibilidades” (p. 11). Entendia sua tarefa como dotada de natureza que lhe parecia inútil. Porém, dizia que “às vezes se deparava com algo de valor, alguém a quem, na verdade, deveria se premiar… (p. 12-13).

O professor Gutiérrez, um ano antes de começar a “honorária e honorífica” tarefa de avaliar os textos de outros, bem como as avaliações de outros avaliadores, estava trabalhando com papéis e documentos do legendário Gumersindo Basaldúa, envolvendo todo um conjunto de mitos sobre ele, além das várias lacunas e de tentativas de chantagens. As pesquisas sobre Basaldúa assinalavam caminhos controversos: ora indicavam que ele vivera parte de sua vida entre os índios, ora que havia supostamente escrito um livro a que ninguém tinha (ou tivera) acesso, intitulado Breve descripción de paisajes y costumbres de los naturales de la región pampeana, ou ainda que teria sido um herói das querelas civis na Argentina (p. 14).[i]

Ele conversava a respeito das incertezas em sua investigação envolvendo seu fugidio personagem com Eugenia Fioravanti de Gutiérrez, sua esposa há trinta anos, quando recebeu duas cartas: a primeira, da Universidade da Califórnia, com informações sobre o desaparecimento, das bibliotecas da instituição (e também da biblioteca do Congresso dos Estados Unidos), do suposto livro de autoria de Basaldúa – é encontrada apenas a ficha da obra, mas como tendo sido escrita por outro desconhecido, Gustavo Bazterrica; a outra carta, da Presidência da República, continha ofício assinado pelo “Diretor de Expediente da Secretaria Geral da Presidência” (p. 23), acompanhado de um decreto, cujo artigo primeiro era o seguinte: “Cria-se o Centro Nacional Único de Avaliação (CNUA) que reunirá todas as dependências e organismos que na atualidade realizam tal função” (p. 23) – os demais artigos esclarecem que o Centro era subordinado à Secretaria Geral, bem como sua integração, instalação física, orçamento etc.

A narração irônica do autor vai explorar os considerandos do decreto, que explica a necessidade da concentração do conjunto das atividades de avaliação existentes na Argentina em apenas um organismo centralizado. “Tudo leva à concentração; em primeiro lugar, concentrar as histórias dos solicitantes de maneira que sempre se possa saber o que fizeram, a fim de evitar superposições e dirigir seus passos em apenas uma, precisa e documentada direção; logo, concentrar os avaliadores mais capazes em um local adequado para poder cumprir com todas as atividades do presente decreto e, finalmente, concentrar todas as atividades que, de uma maneira ou outra, exigem avaliação: investigações científicas, concursos literários, solicitações de ingresso a postos de trabalho, bolsas, prêmios, títulos honoríficos, organização de estruturas de ensino e tudo aquilo que exija um parecer autorizado” (p. 24).

Havia outros papéis no envelope, sendo um deles sua designação, após muitos elogios, como “membro ativo do Centro Nacional Único de Avaliação”, esclarecendo-se ainda que o avaliador, por meio de uma resolução complementar, receberia uma justa gratificação por seus serviços, para que ele pudesse concentrar-se exclusivamente em tais funções.

Em sua perplexidade, Gutiérrez não deu muita atenção a outro papel que também estava no envelope, onde se podia ler “Plano de Traslado ao Centro Nacional Único de Avaliação”, em que lhe concediam 24 horas para preparar uma bagagem simples e forneciam outros detalhes para que pudesse chegar ao heliporto da Presidência e, dali, em um helicóptero reservado, viajar à sede do Centro (p. 25-26).

“O castelo” (p. 27-45), o segundo capítulo, inicia-se com o professor se preparando para a viagem. Como bom scholar, possui uma malinha fácil de preparar: algumas peças de roupa, seu diário, os lexotans, as pílulas digestivas, os chás calmantes (p. 27). Levava consigo uma pasta contendo os documentos que conseguira reunir sobre Basaldúa, com a finalidade de prosseguir trabalhando. Experimentava uma sensação ambígua: ao mesmo tempo em que se sentia apreensivo pela viagem, sentia-se pela primeira vez considerado, em sua longa carreira de avaliador, pois viajaria em um helicóptero especial, com tudo muito organizado, lugares marcados, soldados pegando bagagens e as colocando nas naves. Não houve praticamente tempo para as despedidas e não se informou para onde eles seriam levados (p. 27-30). Ao chegar ao destino, após cerca de duas horas de viagem, constatam que o CNUA, que se encontrava situado em uma antiga residência no campo, que pertencera à família Santainés, fora totalmente restaurada e adaptada para ser a sede do órgão governamental dedicado à avaliação. Situava-se em um prado verdíssimo, deslumbrante e bem cuidado que encantara a todos, sendo a casa preparada para abrigar 135 avaliadores, mulheres e homens (p. 35-36). O professor Segismundo Gutiérrez e seus colegas – com prenomes como Rudecindo, Etelfredo, Benigno, Hermógenes, Epigmenio, Artemisa, Calixto, Saturnino, Epifanio, Telésforo, Emérito – são recebidos pelo licenciado Antenor Sepúlveda, novo diretor administrativo do centro, à entrada do edifício-sede, construído originalmente por Hermenegildo Santainés em 1915 e, como destacado, agora pertencente ao Estado. O diretor e seus três adjuntos (Anselmo, Antonio e Anacleto) dão as boas vindas aos avaliadores; os quatro encontram-se bem penteados, bem vestidinhos, com roupas bastante semelhantes, fazendo todos os movimentos de forma sincronizada e provocam uma observação de Gutiérrez: “os quatro nomes iniciam-se com a mesma sílaba” (p. 38).

Antonio Errázuriz, um dos diretores adjuntos, explica que os avaliadores em breve receberão os documentos relativos à organização do centro e avança em sua fala: “Os senhores já sabem: são 135, nem um a mais. Cinco por cada letra do alfabeto: cinco avaliadores cujos sobrenomes começam com A, cinco com B e assim por diante; inclusive pudemos integrar com cinco avaliadores os grupos de letras finais, o X, o W, o Y, o Z. Não foi fácil, mas se conseguiu (…)  Cada grupo tem designado uma sala de trabalho que está localizada no último andar, num corredor em que se encontram os 135 quartos que lhes estão destinados. As salas de trabalho constituem o coração do andar. Bastará os senhores saírem do dormitório para entrarem diretamente naquela que lhe cabe, sem maiores vacilações. Esta é a disposição física: o importante é, desde logo, o conceito. Em cada sala serão analisados temas ou processos cuja letra inicial é a sala do grupo; os avaliadores da sala A avaliarão solicitações ou temas de pessoas cujo sobrenome começa com A e, assim, sucessivamente” (p. 39-40).

As reações à fala de Errázuriz foram variadas, com alguns tomando notas (o que é incômodo, quando se faz em pé), outros balançando a cabeça afirmativamente e muitos com expressões de espanto. O professor Gutiérrez berrou: “Isto é uma loucura!” O professor Epigmenio García, por sua vez, defendeu os procedimentos, destacando que com este sistema “cada grupo avaliador podia ver toda a história de um solicitante, todos os pedidos que está demandando junto à diferentes instituições, todos os êxitos ou fracassos que teve em cada subsídio, bolsa ou nomeação que obteve, todas as candidaturas que pleiteou; enfim, cada caso podia ser examinado como uma totalidade e, portanto, cada resolução levará em consideração as anteriores e o conjunto de sua personalidade” (p. 40).

Errázuriz ignora as manifestações e prossegue em seu delírio, acrescentando que em cada sala haverá uma mesa e seis cadeiras, necessárias para acomodar os avaliadores e um assistente, assim como algumas mesinhas contendo os processos a serem examinados e um grande e moderno computador de última geração, no qual aparecerão todos os antecedentes de cada caso (p. 40-41). Para ele, o modus operandi adotado no processo de avaliação realizado pelo Centro é “simples e claro”. Este sistema tornará tudo mais fácil, não haverá mais superposições,  contradições,  protestos nem mais pressões: os senhores têm em suas mãos todo o sistema, os senhores têm todo o poder” (p. 41).

A um questionamento do professor Benigno Castorena, que diz não poder avaliar temas que não são de sua especialidade, e que isso poderá ocorrer em razão, por exemplo, do sobrenome de um determinado solicitante iniciar-se com C (“pode ser que eu não esteja em condições epistemológicas de dar uma opinião” – p. 42), Antenor Sepúlveda responde que sempre haverá alguém no grupo que poderá resolver dilemas dessa natureza (p. 42).

Entretanto, o professor Gutiérrez ficou decepcionado com o fato de não haver perguntas acerca do caráter clandestino ou reservado do Centro, pois aparentemente ninguém, além dos avaliadores e dos burocratas, sabiam que existia o CNUA.

O capítulo conclui- se com uma confusão desencadeada pelos empregados que haviam retirado as malas e apenas as devolvem se recebessem gorjetas – e isso se complica, pois a maioria das valises não possuíam etiquetas que as identificassem (p. 43-45).

“O Centro Único” (p. 46-64), terceiro capítulo, detalha a origem da casa que abrigava o CNUA, cujo proprietário, Hermenegildo Santainés, era um riquíssimo “estanciero”. Ele construiu o local utilizando materiais provenientes de quase todas as partes do mundo, dotando a residência de inúmeras salas, quartos e ambientes dos mais variados. Inaugurou-a com uma festa nababesca. Entretanto, Hermenegilgo tinha uma fraqueza: amava o jogo. Durante a festa de inauguração “perdeu tudo, a casa recém-terminada, os campos nos quais a propriedade se encontrava, os móveis, enfim, tudo. Derrotado, deixou o local nessa mesma noite, sem se despedir, sendo que seus convidados nem sequer se deram conta de que a festa tinha perdido todo sentido” (p. 47).

A partir daí, ninguém habitou o casarão e nem aqueles que o haviam ganho, pois os impostos eram astronômicos. A venda também tornou-se impossível, pois não existiam clientes para semelhante despropósito – a dívida havia crescido de tal maneira que o Estado ficou com a casa, mesmo sem saber o que fazer com ela. Ficou fechada durante décadas, até que surgiu a ideia do CNUA, após radical processo de restauração (p. 47).

Os 135 avaliadores convidados por carta pelo Presidente da República tinham seus nomes na porta dos quartos, dispostos em ordem rigorosamente alfabética, que se iniciavam à direita da escada com os da letra A e terminavam à esquerda com os da letra Z. O local era deslumbrante, com bosques maravilhosos, sendo os aposentos bem ajeitados e equipados com tudo que era necessário (p. 52). O restaurante possuía 20 mesas redondas com 7 cadeiras, toalhas de mesa e talheres (p. 54). Os garçons, os mesmos que haviam recolhido as malas e que possuíam um aspecto meio brutalizado, passavam repetindo a mesma cantilena: “temos empanadas de presunto e queijo, pizzas, sanduíches de milanesa e torta de maçã. Cada unidade custa um peso” (p. 56). O ambiente tornava-se pesado e meio deprimente, uma vez que além de não poderem escolher os companheiros de mesa, ainda eram obrigados a pagar para comer (p. 56).

As indagações e discussões surgiam a todo momento: Segismundo Gutiérrez desejava saber onde se encontravam, qual era a localização exata do castelo; a professora Carmela Gandía, colega de sala, observa com ênfase que o sistema ao qual se encontravam submetidos “permite que estejamos a salvo de cualquier tipo de pressão; nenhum solicitante saberá quem o  avaliou e se protestar deverá fazê-lo ante pessoas que não necessitam fazer esforços para resguardar o anonimato. Eu acredito que por isso nem sequer nós mesmos devemos saber onde estamos e, menos ainda, e com menor razão,  os solicitantes” (p. 58).

A comunicação dos avaliadores com seus familiares ou com seus escritórios era, na prática, quase impossível, em razão de haver apenas um aparelho na sala do administrador, mas um defeito na linha, alegava-se, impedia sua utilização. Aparentemente, outra forma seria através da internet, mas também não se podia contar com ela – ao longo dos capítulos verifica-se que as mensagens chegam ao destino ou são respondidas quando interessam à administração. Assim, a única maneira de se enviar mensagens para o “exterior”, sugere um dos auxiliares do diretor do CNUA, é a de escrever bilhetes ou cartas e a administração se encarrega de remetê-las (p. 59-60). Os professores Gutiérrez e Goldstein e a professora Arminda Guerra concluem que se encontram presos em local ignorado (p. 63-64). Gutiérrez escreve ao Presidente da República através do computador de seu quarto. Necessitava dos esclarecimentos básicos para entender o que estava ocorrendo, o que era tudo isso (p. 64).

No quarto capítulo, “Cada vez menos” (p. 65-82), lê-se que Gutiérrez, Hermógenes Goldstein e Arminda Guerra integravam a mesma comissão avaliadora, em que pese as distintas disciplinas a que se dedicavam: Gutiérrez era um literato voltado à história, o Goldstein era biólogo marinho, enquanto a professora Guerra atuava na área de antropologia social (p. 67).

Chegam ao castelo outras 100 pessoas para trabalhar com os avaliadores, exercendo a função de supervisores e auxiliares junto a cada uma das 27 comissões (p. 68). Esses novatos são chamados por Gutiérrez como “a tropa de auxiliares da avaliação” (p. 72).

Enquanto tentavam caminhar um pouco pelo jardim, os dois professores e a professora que tinham seus sobrenomes iniciados pela letra G são interrompidos em suas reflexões por gritos e correrias: dois homens e uma mulher bastante magros, vestidos com farrapos, com olhos enormes e fixos, arcados e descalços, são perseguidos e insultados, aos gritos, por dois outros homens robustos: “vou te pegar”, “loucos de merda” e outras falas menos edificantes são ouvidas pelos avaliadores, que ficam atônitos (p. 72).

Em seu retorno ao quarto, Gutiérrez, ao abrir seu computador, depara-se com uma mensagem do Presidente da República. A maior autoridade do país esclarece que Gutiérrez não deveria se preocupar com o estado de saúde de Dona Eugenia Fioravante de Gutiérrez e, também, no que dizia respeito a seus bens e contas bancárias. Comenta que sua esposa encontrava-se em “recuperação”. O velho professor quase fica em estado de choque e tenta usar o telefone, na sala do administrador. Inútil, pois o aparelho continuava com defeito. Ao retornar, encontra a porta de seu quarto escancarada, bem como a de seus amigos (p. 76-77 e 79).

Em seguida recebe carta em papel timbrado da University of California, Irvine, dizendo que a instituição possui o livro Breve descripción de paisajes y costumbres de los naturales de la región pampeana, de Gumersindo Basaldúa, mas que o mesmo havia desaparecido. Na carta ainda pode-se ler que as correspondentes do Professor Gutiérrez foram punidas disciplinarmente por terem retido em seu poder a obra – em seguida o livro reapareceu.  Tentam cobrar uma fortuna para providenciar fotocópia do volume, enviando trechos do mesmo. Gutiérrez logo percebe tratar-se de uma falsificação grosseira (p. 80-81).

No capítulo “A ciência questionada” (p. 83-100), há descrição mais detalhada dos 5 componentes da comissão G, posteriormente expandida para 7, a exemplo de todas as outras. A professora Carmela Gandía era especialista em física não relativista e em ecologia; o professor Epigmenio García era fisiólogo e químico; a professora Artemisa Galán engenheira de materiais; o professor Benito Galeana especialista em corpos celestes (p. 83) – a eles agregavam-se os professores Gutiérrez, Goldstein e a professora Guerra.

Gutiérrez pergunta-se como seria possível o entendimento entre eles, provenientes de disciplinas tão diversas, em uma perspectiva pessoal ou humana? (p. 83). Com os docentes Goldstein e Guerra havia se dado bem, em termos pessoais, mas não ia muito além disso. Acrescente-se o fato de que os funcionários mais se assemelhavam aos seguranças, o que contribuía para uma grande sensação de angústia (p. 84).

Mas o que mais chocou a maioria dos avaliadores foi a explicação que o Dr. Calixto forneceu sobre os procedimentos avaliativos: existiam processos assinalados na capa com um pequeno círculo azul, que indicava que em avaliações prévias, realizadas por experts, já haviam sido consideradas de bom nível, encontravam-se plenamente justificadas. Assim, “vocês deverão, simplesmente, em respeito ao trabalho preliminar, aprovar as respectivas decisões mediante juízos fundamentados. Com relação aos processos que não tiveram nenhuma marca não há maior decisão a tomar, pois foram examinados escrupulosamente e se determinou que não podem, de maneira alguma, ser beneficiados com um subsídio, ou prêmio, ou nomeação, ou promoção; a vocês cabe a importante responsabilidade de explicar porque se lhes denega, uma vez que a filosofia do Centro é explicar sempre, enfrentar a frustração de alguns poucos ao invés de negá-la e suportar depois os nocivos efeitos da decisão…” (p. 85-86).

Alguns avaliadores concordam plenamente com o regulamento e iniciam de imediato o trabalho, enquanto outros são contra e acabam não executando suas tarefas. As contradições se tornam notórias: há projetos interessantes, que demandam pequenas somas financeiras, mas que devem ser rechaçados. Por outro lado, há outros completamente absurdos, que solicitam muito dinheiro e já se encontravam previamente aprovados. Os avaliadores consultaram a Dra. Aurelia, que explica detalhadamente que os mesmos não podem ser aprovados em hipótese alguma (p. 88). O clima vai se tornando cada vez mais tenso, o professor García acha os critérios justos e o professor Gutiérrez se pergunta: “Se as decisões já foram tomadas, porque precisam de nós?” (p.89). O professor Goldstein responde: “talvez não nos necessitem” (p. 89). “O que se quer é terminar com a ciência e entregar os poucos fundos que existem aos charlatães que se encontram próximos do poder” (p. 90). Em quase todas as salas das comissões, e não apenas naquela marcada com a letra G, se ouvia uma gritaria confusa, devendo estar ocorrendo o mesmo movimento de revolta e de perplexidade (p. 91).

O professor Castorena passa mal e é socorrido por pretensos enfermeiros (p. 91-94). Goldstein e Gutiérrez o procuram por todo o castelo e não o encontram. Acabam por enveredar-se pelos arquivos e saem novamente nos jardins, perto das grades que isolam o edifício do espaço exterior. Ao chegar lá, Gutiérrez identificou, do lado de fora, sua esposa, Eugenia e, de imediato, como se algum projétil o houvesse atingido na cabeça, e “antes mesmo de comprovar se era ela mesmo e de preguntarse que fazia nesse lugar, caiu direto ao chão, não escutou nem viu mais nada” (p. 100).

O atendimento do professor Gutiérrez por colegas médicos e seu transporte até seus aposentos, onde lhe ministram soro e lhe prescrevem uma alimentação mais leve (p. 101-104), marca o início do capítulo “Dois jardins diferentes” (p. 101-119). Ao lado de sua cabeceira se estabelece um breve diálogo entre os colegas mais próximos. A professora Guerra comenta que durante anos lutou-se pela melhoria do sistema de avaliação e, diante da situação em que se encontram, desabafa: “me sinto completamente inútil, tudo parece resolvido em outra parte, tudo é tão grotesco” (p. 104). O professor Goldstein concordou: “Não creio que se possa esperar muito deste tremendo engano; esta casa  mais parece um cárcere, uns arquivos que não servem para nada, uns funcionários cujo aspecto patibulário não condiz com a dignidade da ciência; na verdade, estou muito desconcertado. Viu os projetos que nos mostraram ? É ridículo. Um mestrado em tropa de lanceiros de luxo! (…) O que eu acredito é que estamos assistindo a uma mudança radical de civilização (…) Velhas formas são atacadas e o que as substitui é demencial, como se as formas e as relações girassem em falso, todas loucas…” (p. 104-105).

A doutora Vélez também vai ao quarto do professor Gutiérrez e lhe pede que assine algumas resoluções, argumentando que tudo “já estava resolvido quando chegou e o que tem de ser feito agora é avaliá-los”. Goldstein se exalta: “O que ? O mestrado em tropa de lanceiros de luxo, a bolsa de Armo Gómez para sua tese sobre os sonhos intermitentes do secretário particular do presidente, a mecânica dos caça-níqueis a serem instalados nas escolas primárias…?” “Sim”, disse a doutora Vélez baixando os olhos. “Eu não assino esse lixo”, disse o professor Goldstein” (p. 109). A Dra. Vélez, após um desabafo, deixa os aposentos de Gutiérrez sem ter obtido as assinaturas.

Gutiérrez recebe outra mensagem do Presidente da República, que lhe deseja  melhorias, informa que a Sra. Eugenia Fioravanti de Gutiérrez desapareceu e o professor Benigno Castorena, que fora hospitalizado, “não conseguiu superar fisicamente a descompensação que sofreu. Como uma homenagem em respeito a sua memória, ele será enterrado no jardim da casa…” (p. 112). Todos estranham como o Presidente sabia de tudo e fazem menção ao romance 1984, de George Orwell (p. 113).

Vão ao suposto enterro do professor Castorena. Nada há no jardim onde ele seria enterrado, além de um buraco com a terra ao lado. As pessoas que preparavam a tumba desapareceram. De repente, ouvem-se vozes e gritos desagradáveis e eles chegam a ver novamente pessoas vestidas com farrapos, magras, quase cadavéricas, desdentadas, todas gritando em uníssono e agarradas ao alambrado, “dispostas em uma composição concentracionária ou própria dos pintores flamencos, que tratavam de mostrar e explicar ao mesmo tempo os excessos da loucura (p. 115-116). Tais pessoas, acrescenta o narrador, “recordavam os sobreviventes dos campos de concentração” (p. 116).

Há uma correria generalizada quando surge um grupo de homens vigorosos e vestidos com jalecos, correndo a partir da casa e gritando. “Alguns tinham nas mãos pequenos chicotes e, outros, bastões e se via que seu alvo eram as pessoas agrupadas junto aos canteiros” (p. 116-117). Alguns homens eram os mesmos que haviam recolhido as malas na chegada dos avaliadores quando da chegada à casa, conforme se disse em linhas anteriores, atuando também como garçons e agindo de forma truculenta (p. 117).

Um dos empregados entregou ao professor Gutiérrez, dias antes, um pequeno bilhete em que dizia que o professor Castorena estava no portão quando Gutiérrez desfaleceu, bem como a sua esposa. Isso o deixou desconcertado e mais inseguro ainda. Seus pensamentos, entretanto, são interrompidos por uma forte chuva, que dispersa o grupo e o obriga a retornar às pressas ao Centro, para se refugiar da tempestade (p. 119).

“O presidente” (p. 120-138), o sétimo capítulo de Avaliador, é praticamente uma crônica da chuva e da tempestade incessante; “o jardim já se encontra  intransitável” (p. 125). Os trabalhos de avaliação prosseguem, com a necessidade da apreciação de vários outros projetos que possuíam o círculo azul na capa e que eram totalmente absurdos em suas temáticas e em seus conteúdos. Os processos recebiam o apoio dos professores Galeana, Gandía e García, mas eram rechaçados pelos demais. Os relatos seguintes narram os acalorados embates entre as duas facções existentes na comissão G. Quando o professor Gutiérrez está para abandonar a sala, em razão do absurdo das discussões, ingressa o licenciado Antenor Sepúlveda que, todo bem composto e vestido à maneira típica dos burocratas de órgãos públicos da área da educação ou dos domínios científicos afirmou: “Senhores avaliadores: a inundação continua e já cobriu o jardim; há risco de que a água atinja os arquivos (…) Dei instruções ao  al máster Venancio Aguirre para ir pegando os processos e levá-los a um lugar seguro; neste momento todo o pessoal do arquivo encontra-se trabalhando nisso” (p. 130-131).

Era domingo e o professor Gutiérrez estava em seu quarto, tentando trabalhar no computador, encontrando-se completamente entediado e pensa: “Se há  algo oposto à  esperança, isso é uma tarde de domingo”(p. 133). À frente do computador, depara-se com mensagem de Alexander Moore, identificando-se como sendo da Universidade da Califórnia, que tenta aplicar-lhe um golpe, pedindo U$S 3.000 para que possa lhe remeter o livro de Gumersindo Basaldúa (p. 134-135).

Neste domingo tedioso começa a pensar sobre o Presidente. Como se chama? Seu primeiro nome é Apolodoro, o que não dizia muita coisa. Era um militar, um general, embora tenha sido um coronel até antes de assumir o poder (ou, talvez, fosse tenente coronel ou tenente general). Se o prenome pouco dizia, o sobrenome também não acrescentava muito: Ibarlucía, “de indubitáveis reminiscências bascas. Basco como Basaldúa? Parentes, talvez? Talvez um parentesco remoto (…) Gutiérrez se pergunta se o sobrenome do Presidente não seria Ibarlucía Basaldúa (p. 138).

Através do computador o Presidente anuncia a evacuação do Centro, dizendo que todos deveriam se dirigir a um “lugar seguro”. Golpes na porta do quarto do professor Gutiérrez, acompanhados de gritos e de falas de ordem de comando indicam que era o momento de sair do prédio – não se sabia para onde e nem como iriam sair. De qualquer maneira, agarrou seus poucos pertences e a pasta contendo os documentos sobre a quase inexistente vida de Gumersindo Basaldúa (p. 138).

Em “O regresso das águas” (p. 139-160) constata-se que já não chovia mais e nas ruas e estradas que circundam o CNUA tudo estava seco (p. 139). Gutiérrez caminhava com os demais avaliadores por uma rota não pavimentada que se desenvolvia entre alambrados que cercam vastas extensões de terra (p. 140).

O professor Gutiérrez realiza mais uma série de considerações sobre Gumersindo Basaldúa, talvez parente distante do Presidente. Há, inclusive, interpretações que atribuem a Basaldúa o papel de traidor. Será que era isso que o Presidente queria ocultar? Mas talvez ele não houvesse traído ninguém (p.144-145).

A caminhada continua e alguns avaliadores vão conversando e discutindo acerca da continuidade do trabalho. O professor Galeana parecia desconsolado e o professor Gutiérrez procura acalmá-lo, dizendo que o mais provável é que vão prosseguir suas tarefas em algum outro lugar. O professor García, veemente defensor dos pontos de vista do sistema vigente, perde o controle e grita com Gutiérrez: “Você não entende! Você não entende que o arrimo do edifício científico reside na eliminação da inteligência!” (p. 148).

A discussão se interrompe, pois os caminhantes chegam a uma quase encruzilhada e tentam decifrar a placa que estava com algumas letras faltando. Após muito parlamentar, descobrem que estavam a cinco quilômetros de Puelche (p. 149), que é a maior reserva de água que possui o país. Estavam sobre milhões de metros cúbicos de água. O professor Rudecindo Funes, geólogo e vulcanólogo, esclarece que a grande quantidade de água “nas profundidades da terra a fertilizam e impedem que isto se converta em um deserto. O que se chama ´pampa úmido` é simplesmente Puelche, mas poucos o sabem. Esta inundação é Puelche, que sai de sua caverna e ocupa o que era seu” (p. 150).

Chegam a um novo edifício e o licenciado Antenor Sepúlveda é quem os recebe mas, estranhamente, afirma: “Sou o doutor  Telésforo Zapata, diretor deste estabelecimento” (p. 152). Gutiérrez e Galeana se olham assustados, pois viam os mesmos bigodes negros, o mesmo penteado para trás, “os olhos resplandescentes mas sombrios e o traje escuro e uma maneira de falar que evocava, a Gutiérrez, ecos de vozes ou de situações conhecidas” (p. 152). O doutor Zapata dá as instruções preliminares, explica que cada um receberá um número, haverá uma cama a ser ocupada num alojamento coletivo (p. 153). Cada avaliador recebe uma ficha com um número – Gutiérrez recebeu o número 425; a partir de agora, entendeu que deveria ser tratado como um número, exatamente o 425 (p. 154). Um funcionário lhe diz o seguinte: “Coloque a ficha na camisa, do lado esquerdo, para que se veja bem”. O 425 obedece.

São obrigados a se deslocar na chuva e no terreno encharcado para irem a outro edifício, acabando por sujar-se (p. 156-158). Chegando ao novo estabelecimento, um funcionário disse em voz bem alta, que eles deveriam comer algo, sendo necessário, entretanto, banhar-se antes de ocupar os lugares que lhe haviam sido designados. Quando os atendentes chegaram com as bandejas, apenas traziam mate e biscoitos (p. 158). Tomam banho em banheiro coletivo, homens de um lado, mulheres de outro, sendo todos obrigados a desnudar-se, desvencilhar-se das respectivas roupas – que seriam limpas e secadas pela administração, a tempo de poderem ir ocupar os lugares que lhes haviam sido designados quando chegaram. (p. 159).

No último capítulo,“O tempo roda em círculo” (p. 161-179), revela-se que as coisas não se apresentavam bem para os avaliadores, alojados precariamente em camas com colchões sem lençóis ( p. 161-162). Nas novas e precárias instalações o trabalho dos avaliadores se reinicia, e uma pequena mesa de rodinhas e “cheia de pastas” (p. 164) é colocada à frente de todos os integrantes do grupo G, com a ordem para que tudo fosse analisado. 425 reclama, alegando a impossibilidade de se trabalhar em tais condições; outros concordam com ele, mas o 413 aceita prosseguir e as atividades recomeçam, com os processos sendo examinados  pelos avaliadores sentados nas camas, com as pastas sobre os joelhos (p. 166). 425 se revolta contra os projetos que lhe dão para avaliar e que deve referendar, pois estavam marcados com o selo azul. Outros avaliadores também se revoltam e dizem que estão fazendo papel de tontos (p. 167). A confusão se generaliza, Gutiérrez joga no chão todos os processos que pode e os pisoteia. O trabalho se interrompe (p. 168).

O Dr. Fleischmann entra na sala, censura a rebeldia dos avaliadores e anuncia que o “senhor presidente”, Apolodoro Ibarlucía Basaldúa, os visitará em breve (p. 169). Gutiérrez descreve a chegada do mandatário: “a cena se parecia extraordinariamente com a da chegada ao Centro Nacional Único de Avaliação, só que agora não desciam de um helicóptero que o presidente havia colocado à disposição dos avaliadores para conduzi-los a esse lugar onde se terminariam todos os problemas referentes à avaliação, mas sim que o presidente havia descido de seu próprio helicóptero como, tampouco estavam iniciando uma tarefa tendente a consolidar o desenvolvimento científico do país; simplesmente  arrastavam seus corpos como se houvessem saído, apenas vivos, de uma catástrofe” (p. 171-172). Os avaliadores assistiram a tudo meio desorientados, sem estarem banhados e sem concluir o trabalho para o qual foram convocados (p. 173).

Eles se encontram com o Sr. Presidente e com os internos do manicômio num mesmo espaço físico, num ambiente deteriorado e com os avaliadores com baixíssima autoestima. Os internos tinham, em geral, “corpos disformes e seminus, crânios pontiagudos de mujeres desdentadas, quase todos descalços e emitindo grunhidos que indicavam que os integrantes dessa concentração ou, o que é o mesmo, os habitantes permanentes deste local, eram loucos (…) cretinos, destituídos da razão e da genética, esquecidos pela sociedade e pela vida” (p. 173-174).

Entretanto, o professor Gutiérrez se pergunta: “O que o senhor presidente poderia lhes dizer?” (p. 174). Obtém a informação de que o filho do mandatário integrava essa massa de desvalidos, estava recluso nesse inferno, inapresentável porém não esquecido (p. 174). Comenta que quase todos sabem acerca da síndrome do rapaz, o Estado Maior do Exército e, sobretudo, o Episcopado, “porque tanto o presidente como sua esposa encomendam, com frequência, missas pela saúde de seu filho” (p. 174).

O presidente, quando se expressa, dirige-se aos “concidadãos”, “senhores avaliadores”, “queridos enfermos”. O General Ibarlucía Basaldúa fala a respeito dos enfermos, que a ele muito lhe importa, porque “entre vocês encontra-se um ser que me é bastante querido, uma reprodução de minha linhagem cujo sofrimento me afeta profundamente. Eu o vi há poucos momentos e ele está feliz neste lugar, em que é tratado como todos vocês, sem privilégios, com amor e preocupação, sem que seja poupado o  mínimo dos recursos para uma recuperação que lhe permita comunicar-se novamente com sua pobre mãe” (p. 176).

O presidente prossegue, rebatendo comentários que ele considera como absoluta irresponsabilidade: que no lugar em que se encontravam existe tráfico de órgãos. Ele nega com veemência, dizendo que apenas gente sem sentimento e sem coração “pode afirmar que as mortes naturais de alguns enfermos queridos  não o foram por essa razão”. Aqui não se mata gente para vender seus fígados e rins sãos (p. 176).

Diante de tal situação Gutiérrez, ao observar que todos conversavam, aproveita e vai saindo de fininho, sem que nenhum obstáculo tenha se interposto: era possível sair por uma porta do Salão de Atos, por onde haviam entrado – foi acompanhado pelos professores Goldstein e Guerra (p. 176-177) e começaram a correr para o lado oposto ao da casa que agora poderiam definir como “asilo ou hospício e que para eles, nem internos nem loucos, poderia converter-se em cárcere” (p. 177).

Eles pensam que ninguém os observa, mas estão equivocados, pois alguém os vê, “embora não desde a casa da qual haviam saído, mas sim desde o outro lado do cercado, que se encontra no limite do terreno por onde correm” (p.178). Chegam a uma construção que tinha o aspecto de um castelo, com quatro andares. Encontram, em seguida, dois homens e uma mulher, bem vestidos e bem penteados, asseados e belos, que os olham como se quisessem entender quem eram eles e o que diziam os seres anômalos que gritavam pedindo ajuda, ao mesmo tempo que olhavam para trás, para o local de onde vinham. Também correndo, “encontram-se outras pessoas em piores condições, que uivavam ou gemiam, não se podendo saber a que distância, arrastandose alguns, em especial um ser que era puro tronco, sem pernas, montado em um carrinho que impulsionava com apenas um braço, abrigado em uma espécie de manto negro, seguidos a curta distância por um grupo de homens, munidos de chicotes, que gritavan ´Voltem, loucos de merda` e que estalavam os chicotes como querendo dizer que os golpeariam contra suas costas” (p. 178-179).

O relato se conclui de forma não menos apavorante: “Os loucos de merda  desviam seu caminho e marcham para o lado contrário, em direção a um monte que parecia ser de plantas espinhosas, hirsuto e rebelde a qualquer critério de agrado ou de utilidade, perseguidos por esses guardiães ou, talvez, fossem enfermos ou doutores, descobrem  os três que estão junto ao cercado, aproximam-se deles com a mesma atitude ameaçadora e, sem dizer palavra (…) começam a empurrá-los, não sem antes arrancar das mãos de um deles uma pasta (…) de tal modo que os papéis que nela estavam se esparramam e começam a voar por todos os lados… ” (p, 179).

 

4.

Ao longo do presente texto deixamos a novela de Noé Jitrik praticamente falar por si, revelando a sua crítica aguda e irônica a um processo de avaliação da produção acadêmica que atingiu um estágio que se poderia chamar quase de patológico A condensação do livro que realizamos ganhará muito se completada com a leitura do maravilhoso artigo do próprio Nitrik, “Relato especulativo sobre dichas y desdichas de la universidad” (2011).

*Afrânio Catani é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição.

*Ana Paula Hey é professora do Departamento de Sociologia da USP.

Versão reduzida do artigo publicado originalmente em Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior. RAIES / Uniso, v. 16, no. 3, novembro 2011.

 

Referências


Noé Jitrik. Evaluador. México: Fondo de Cultura Económica, 2002, 182 págs.

 

Nota


[i] Jitrik prossegue, entre as páginas 14 e 18, levantando uma série de divertidas conjeturas sobre Gumersindo Basaldúa: quem seria, quais suas ações, suas hipotéticas fugas, a eliminação de qualquer informação a seu respeito por parte do exército, sua participação em conspiração anti-rosista, sua carreira de latin lover etc.

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