Por PRISCILA FIGUEIREDO*
Sete poemas
A porta
É tão bom quando há uma porta
mesmo quando a encontramos fechada.
Mesmo que nos digam: “Para você e gente
como você ela estará sempre fechada”.
Insisto, é tão bom — eu bato nela com o nó
dos dedos, eu espero, eu bato de novo,
e a golpeio com a mão espalmada
se minha impaciência aumenta.
Mas a porta, é preciso dizer, tem
por onde se lhe pegar. Quando é tolerante,
ela permite até que nos deitemos junto dela,
que passemos a madrugada aninhados
em seu peito reto.
Há falsas portas,
como falsos livros, como falsos alçapões.
Em comum têm o fato de que não levam a nada.
Uma porta fechada também não te levará a nada,
mas nela você firma suas garras, suas marcas,
até seus garranchos, e, mais importante,
há o lado de dentro da porta,
a paisagem surda a seus apelos, prolífica e secreta.
Ansiedade de uma barata
Um dia pousei sobre o peito de uma bela moça.
Não fui atraída por ela, mas eu queria descobrir
até que altura eu voava
ou se voava melhor que uma galinha.
Eu era jovem, naquela época
estava em toda minha exuberância e era mais inteligente,
— me arriscava mais também —;
mas quando alguém a fez notar com muito cuidado
minha presença indesejada e insolente
ela baixou os olhos e um milímetro a cabeça
sobre mim, ficando paralisada; outros ali reunidos
fizeram um grande silêncio, de pavor e também
para se fazer de mortos até que o peteleco
de um moço me jogasse bem longe.
Sou vista de tal forma como inimiga
que certa vez uma dona de casa veio a me
engolir com a gordura branca e tudo,
disposta a me vencer e ao mesmo tempo roubar
toda minha energia, todo o meu poder.
Ela então perdeu a conta do tempo,
viu as eras passarem,
e depois relatou ter sido transformada,
ser uma nova pessoa —
é o tipo de experiência que só se obtém
devorando seu maior inimigo.
Quando os homens aguardavam a grande explosão nuclear
era comum ouvirmos: “Ao fim e ao cabo
só restarão elas, dominando a Terra, enxameando
nos estilhaços, cobrindo os campos incinerados,
contemplarão a paisagem de súbito esvaziada de nós,
seus algozes medrosos —
jamais teriam esperado uma promoção tão rápida —,
deixarão os esgotos, subindo de nível,
irão aos lugares mais altos cobiçados
e vão fazer a festa”.
De tanto ouvir isso
passamos a vislumbrar um horizonte mais fixo
que o de uma fresta, uma lixeira aberta,
um esgoto a céu aberto
— aberto é a esperança
dos que vivem no subterrâneo.
Por um bom tempo,
depois desse grande advento iríamos
fruir das sobras de inúmeros banquetes,
lamber caramelos recentes,
abandonados no chão de sombras;
nossa ceia se estenderia mais e mais — e mesmo que
não houvesse depois muito mais, sempre,
em alguma parte, encontraríamos ainda
guloseimas a nos fartar, e ninguém a nos pisar.
Mas e depois?, eu pensava. E depois de depois?
Quando tivéssemos fruído de tudo, do bom até o ruim?
Também sobreviveríamos? Não haveria
mais detritos nem carne engordurada.
Esse futuro preocupante dentro do futuro que
começaria ao findar o futuro do homem
estava tão, tão distante ainda e já me atanazava…
Talvez não seja bom sobreviver ao homem;
por uma estranha ambiguidade, a civilização
levou-nos a nos multiplicar, deu-nos um lugar
garantido, embora odiado. Diversificou
nosso paladar, nosso jeito de estar.
O nojo que lhe inspiramos é honroso,
esgoto, cárcere, mercados, tomamos conta disso
e de tudo o mais que vai ficando como isso.
Parece que somos as proprietárias
não importa se vivemos todo o tempo de tocaia.
É de somenos esse não-me-toques com a gente.
Nosso poder parece enorme.
Sim, que se preserve o homem.
Ah é a desculpa esfarrapada! —
não tenho como socorrer
tanta miséria molambenta:
pego na manga, a manga
se desfaz na mão;
puxo a barra, arre, é pó, tal ocorre
com cadáver em exumação.
Os botões não casam com as casas
na desculpa esfarrapada;
como a culpa comprida e contrita
ela arrasta a cantilena.
Vira pra lá teu rosto engraçado,
às vezes nauseante — devias
era trabalhar no circo, fazer malabarismo,
andar naquela corda bamba.
Que espetáculo seria
te ver duplamente em apuros
por ser ti mesma e ser ali!
Beijo-te a face sem vergonha,
feita de tudo que é material —
mas agora sai, escafede, evade, vai
ver se estou na esquina, palhacinha!
Reflexões a partir do meu aniversário
Amanhã completarei 48 —
8 é um arabesco no jardim,
é verde e cada um de seus anéis margeia
um balde d’água limpa.
A temperatura estará por um ano
sempre um pouco acima da temperatura ambiente.
Do 4 já fiz há tempo uma cadeira —
tem bom espaço para as minhas ancas,
nesta altura já tão destras
em se equilibrar sobre uma única perna.
É claro que vocês me encontrarão sentada nela amanhã
como tem sido nos últimos anos —
a novidade será
eu meter um pé
em cada balde
e largar aí o espírito:
“Ah agora relaxe
mergulhe seus pezinhos oprimidos —
depois de amanhã sabe-se lá se não
lhe darão sapatos ainda menores”.
Dobradiças
A janela está entreaberta
a porta também está
a porta da sala
do armário
do micro-ondas.
Estamos confusas:
feche de uma vez, abra de uma vez!
pode chover, pode entrar poeira ou formiga
quem sabe até coisa pior
podemos enguiçar, vamos enguiçar
não nos faz bem esta posição aqui
ficar paradas num gesto
que era para ser transitório e breve.
Imagine se você ficasse com um pé no ar
quando fosse dar um passo
e congelasse aí, imagine.
Decida se quer a luz
se não quer
se é frio ou calor
o que quer
se o que está dentro
deve vir para fora,
decida
Esse é o ponto, este
mais que esse; nosso é o tremor.
Este é o ponto, um espanto
análogo a quando avisam: Aqui passa
o Trópico de Capricórnio,
Aqui termina o Brasil,
Aqui acaba a Polônia etc.
Aqui, exatamente aqui,
você não vê, mas não duvida
do enunciado dir-se-ia sagrado,
vindo de um deus dos limiares.
Como um sol ele irradia,
como um rei é que decide
história, destino —
aqui
você pode respirar, aqui podemos nos casar,
aqui o fascismo não
mete o nariz.
Eis que passamos a ser nada,
nossa sombra ficou do outro lado.
Acuado pelo inimigo que avança,
alguém sempre tira a própria vida.
Agora conheceremos o que é vida.
Pois assim como tremo se me sei bem
em cima do meridiano ou da fronteira,
este é o ponto em que me quedo,
o ponto de virada,
de intelecção, a terra à vista
de um problema e seu contorno.
Ah o verdadeiro, o autêntico problema —
que frêmito raro se o encontramos.
Os sobreviventes
Entre eles, uma novata na tragédia —
com toda a pinta de vir de classe mais alta —
é observada com certa superioridade,
mas esta é para os que ainda têm energia,
e são poucos os que a têm.
Os pés trazem como uma auréola de folhas,
um suvenir macabro —
têm o ar assim de um Lázaro consciente
de ter escalado o reino da morte.
Os sobreviventes viram pelo avesso o bolso das calças
e o torcem com certo gosto:
é quando se vê a água de terra escura
e imaginamos de onde podem ter vindo.
Trazem um pouco do inferno consigo,
um pouco de sua primeira catástrofe
nessa longa aventura escalonada
— Oi, você, que brinca com um molho de chaves na mão —
Ainda existem as portas para a qual foram feitas?
— Neste momento cuido pouco de portas. Estavam
sob o boné de uma criança, o boné
sem a criança, quero dizer.
Eu não podia deixar estas chaves lá. Senti que seria
como abandonar órfãos.
As mãos, enrugadas de água,
parecem estranhamente animadas
embora sejam mais que restritos os gestos
de um corpo agora.
Perderam a vergonha de não saber falar
a língua um do outro, aguardam
um direcionamento administrativo.
“Ração a quem perdeu sua nação”,
diz para si um deles, muito jovem,
com amargura inteligente.
Entre o inferno e o purgatório,
junto a um muro, ou a uma cerca, ou a uma abstração
qualquer, mas vigilante,
estão em fila, agachados, segurando crianças de colo —
muitas berram sem consolo à vista, o que aumenta
a fadiga geral.
Apenas os boatos têm o poder
de deixar mais expressivas as fisionomias.
Os boatos sempre correm, e correm livres,
em geral soprados por guardas das fronteiras.
“Ela abrirá em 3 dias,”
“Ficará aberta por três horas,
depois do que fechará para sempre”,
“Seremos enviados de volta amanhã cedo”.
“Amanhã vão trazer carregamentos de haitianos”.
Etc. etc.
De onde tiraremos água?
Onde jogamos os que não sobreviverem
a sua sobrevivência?
Onde defecaremos?
Um princípio de que não abro mão:
os buracos —fossa, vala, poço —
não podem ser os mesmos
nem estar muito próximos.
Não é porque chegamos aonde chegamos
que isso não será considerado,
três buracos e nossa dignidade.
Isto aqui não é nenhum Auschwitz,
embora estejamos todos no mesmo barco,
que nunca acaba de virar
(como a balsa de Géricault, acrescenta
por conta e intimamente).
*Priscila Figueiredo é professora de literatura brasileira na USP. Autora, entre outros livros, de Mateus (poemas) (Bem te vi).