A palavra falsa

Kazimir Malevich, Sportsmen, 1930-31, óleo sobre tela, 142 × 164 cm.
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Por STELLA SENRA*

Armand Robin, a propaganda política, e a linguagem totalitária

A publicação do livro A palavra falsa de Armand Robin pela Editora n-1 pede explicação. Por que agora uma obra sobre a propaganda política da URSS feita a partir da escuta das rádios locais e internacionais durante parte da Segunda Guerra e da Guerra Fria? O leitor descobrirá que esta análise (feita ainda por cima por um poeta) ainda encontra ecos insistentes na propaganda de hoje; ainda mais porque, diante da realidade atual da informação, ele já sente dificuldade em distinguí-la da propaganda política.

No tempo da Guerra Fria Robin notava que nunca houve tantas notícias, mas que era impossível saber o que estava de fato acontecendo. Palavras que hoje, talvez, como nunca, nos soam familiares. Mais particularmente, desde que a transformação tecnológica operada na era digital revolveu o campo da informação, nos vimos praticamente soterrados por uma massa de notícias que exige discernimento, análise, e um entendimento mínimo desse processo avassalador.

Também talvez mais que nunca, a Guerra tem comprovado, dia a dia, que a informação é uma das frentes principais de ação. Somos inundados de notícias mas, seguindo as palavras de Robin, como saber o que de fato está acontecendo? A grande máquina constituída por poderosas agências de notícias e jornais no Ocidente derrama em nossos ouvidos, sem nenhum contraponto, informações que tem a mesma origem e propósito. Evidentemente pode-se supor, também do outro lado, a existência de outra máquina de informação igualmente poderosa. Mas como saber, se de lá quase nada nos chega?

O discernimento se torna mais difícil ainda quando os Estados não se limitam à propaganda política, adentrando o campo das fake news.

 

Armand Robin

Escritor, poeta, crítico e tradutor, Armand Robin tem biografia mínima: nasceu camponês pobre na Bretanha em 1912; morreu na Enfermaria da Polícia Central de Paris, em 1961, sem que se saiba como ali foi parar. Caído no esquecimento, ainda é evocado pelo livro A palavra falsa, de 1953, no qual desvenda a retórica da propaganda da URSS de 1941 a 1961. O livro resulta de seu trabalho original e único de rádio-escuta, e da publicação de boletins diários com exame detalhado da propaganda política das rádios russas para o interior e exterior durante parte da Segunda Guerra e da Guerra Fria.

Em seu livro ele usa termos como linguagem obsessiva, enfeitiçamento, gaviões mentais, psicofagia para descrever como foi feita, e o que fazia ao espírito humano, a propaganda política da URSS: assassinato da palavra, morte spiritual. “Os assassinos de almas estão enfim sorridentes e cheios de certeza – escreveu: uma ferramenta hipermoderna lhes confere, ano a ano, a esperança de conseguir à distância, sem fio e sem vestígio, o assassinato psíquico, de conduzir toda a humanidade à alienação mental. Para dizer com precisão, eis um trabalho de enfeitiçamento mental”.

O poeta via seu trabalho como o de um “desenfeitiçador”: “Conhecer este projeto é precisamente ter a ele escapado; nomeá-lo é destruí-lo; descrevê-lo em detalhe, tão objetivamente quanto os entomologistas descrevem um inseto, é ainda pior que destruí-lo, é por assim dizer tê-lo banido…”.

Chamo a atenção para um dos aspectos menos destacados de seu trabalho, que se aplica de modo perfeito aos nossos tempos: Robin ouviu também as grandes rádios internacionais do mundo ocidental, e estendeu a elas o mesmo entendimento que teve da propaganda soviética. Destacou semelhanças antes impensadas entre ambas, buscando não privilegiar nenhum dos dois lados que se enfrentavam naquele período.

Robin foi apontado como um dos maiores conhecedores da situação política mundial de seu tempo. Muito de sua obra se perdeu quando a polícia, após sua morte, esvaziou seu quarto e jogou fora tudo o que encontrou. Amigos salvaram três malas de papéis; dos boletins restaram pouco mais de trezentos.

Antes de abordar o tema da informação, uma breve evocação de seu trabalho dela inseparável, de poeta e tradutor.

 

Poeta e tradutor

Seu primeiro livro de poemas, Ma vie sans moi (1940), anunciava já o projeto de uma vida que escolheu se esvaziar. O romance Le temps qu’il fait (1942) foi saudado pelo prestigiadíssimo crítico francês Maurice Blanchot em seu primeiro livro, Faux pas, também de 1942. Os Poèmes indésirables saem em 1945, mas a grande maioria de seus poemas e traduções está reunida em livros póstumos editados por estudiosos de sua obra.

Considerado um dos melhores tradutores de sua geração, Robin fez chegarem ao francês dezenas de grandes poetas de todas as línguas indo-européias e orientais. Do chinês ao árabe, do japonês ao finlandês, foi conhecedor de um grande número de línguas (na poesia traduziu mais de vinte delas; a rádio-escuta se deu em quarenta e uma). A tradução de poesia foi uma de suas grandes tarefas; muito cedo parou de escrever a sua – a “importuna” – da qual “se livrou.

Sua outra tarefa foi a rádio-escuta e os boletins informativos que dela extraía. Na verdade as duas atividades foram complementares, como duas faces de uma mesma moeda: na tradução tratava-se de povoar a cabeça com vozes de todos os poetas que “antecipavam” suas palavras, ou então as “ecoavam”. Na rádio-escuta tratava-se de esvaziar a cabeça, de se fazer transparente para ser “atravessado” pela palavra falsa que visava dominar a mente dos homens. Acolhendo-a, acreditava “retirá-la” de circulação.

Robin mudou-se muito jovem para Paris no intuito de abrir seu campo de conhecimento e de convívio. Foi ligado ao meio intelectual de esquerda, foi comunista e visitou a URSS em l932. Chocou-se profundamente com a opulência dos dirigentes e a miséria do povo – com o qual conviveu de perto –, e com a mentira da propaganda onipresente. Um grande golpe para um comunista que, falante de uma língua oral, o bretão, só aprendeu o francês na escola, e escolheu a língua russa “como sua pátria”.

 

A rádio-escuta

Iniciou a rádio-escuta e a redação dos relatórios sobre a situação política mundial em 1941, no Ministério da Informação sob a ocupação alemã – o que abalou sua reputação e nunca lhe seria perdoado pelos amigos intelectuais. Mesmo que sempre passasse à Resistência todo o seu trabalho, desempenhando na verdade papel de agente duplo. Logo demitido do posto, deu prosseguimento sozinho à tarefa, agora sua.

Robin trabalhava a noite inteira (quando as transmissões eram melhores) na escuta em ondas curtas, redigia o boletim (intitulado “A situação internacional segundo as rádios em línguas estrangeiras”) pela manhã e o distribuía pessoalmente à tarde. Artesanal, caro, visava um pequeno número de assinantes: os grandes das finanças, da diplomacia, da política e da informação (embaixadas, o Vaticano, o Ministério das Relações Exteriores, jornais…).

Com sinais de improvisação dada a urgência da sua produção, os boletins eram cheios de informações inéditas, de finas análises; com o tempo eles primariam pela previsão dos acontecimentos, o que Robin denominava “previsão à distância por dedução lógica”. O fim do culto a personalidade, a emergência da tensão sino-soviética, a ascensão de Kruschev estão entre os eventos que ele foi capaz de “deduzir”em consequência do desvendamento da lógica do sistema de propaganda da URSS.

A escuta de Robin é a de um poeta que se deixa conduzir por uma percepção quase sensual dos acontecimentos: notava o tom do locutor, sua respiração, a hesitação casual, a escansão das propagandas. Destaca também, mais de uma vez, as reações do próprio corpo no curso desse trabalho: o cansaço, a posição curvada sobre o rádio, o entorpecimento.

Concentrado especificamente na propaganda da URSS, A palavra falsa é um texto ao mesmo tempo político e poético. É trespassado pela dor do poeta que vê as palavras assassinadas pela propaganda política – “a matança do verbo” –, e a destruição do espírito humano. Por isto considerava seu trabalho como uma tarefa ontológica. Robin demonstrou como se constitui a lógica da propaganda política, expôs seus métodos e processos – desde a sua concepção até seus efeitos no ouvinte, o “enfeitiçamento”. Intitulava-se como o “desenfeitizador”. Usou termos sugestivos como robôs mentais, povo de telecomandados, psicotécnicos, para denominar a criação e o domínio do pensamento criado no período stalinista.

Robin tinha profundo conhecimento da técnica radiofônica, o que lhe permitiu detectar e descrever seu uso maligno; ao mesmo tempo foi capaz de perceber seu grande potencial de criação fazendo programas experimentais na RTF, Rádio e Televisão Francesa, nos anos 50. Ao indicar as duas características mais importantes do rádio – a instantaneidade e a simultaneidade – mostrava aguda percepção desses que viriam a ser mais tarde dois trunfos da Internet. Em plena Guerra Fria, também foi capaz de identificar a homogeneidade de procedimento das rádios internacionais, quer do mundo ocidental quer da URSS – uma surpreendente análise que hoje poderia ser comprovada.

A convergência entre o livro e o momento que vivemos se torna evidente quando assistimos ao acirramento da propaganda política e ao retorno do espírito da Guerra Fria. Talvez os não-russos, como ele chamava – e sobretudo os americanos – não tenham mais o traço de uma certa “inocência” que ele lhes reconheceu, e nem acreditem mais, como os russos, no que diziam. Os russos, por sua vez, acolheram o capitalismo nos moldes ocidentais numa rota que Robin não poderia prever. Mas a análise que ele faz ainda dá conta, setenta anos depois, da realidade que vivemos no campo da informação.

A palavra falsa pode ser lido como um grande poema em prosa, que flui do ensaio à poesia e desta ao primeiro – o que constitui um surpreendente modo de analisar fatos politicos; e sua lembrança se impõe nesse momento em que a informação se tornou um campo de luta. A instantaneidade e a simultaneidade que Robin apontara como características da tecnologia do rádio são o fundamento da internet, abrindo novas possibilidades de intervenção. As redes dão lugar, assim, a novas modalidades de ação política (um campo de luta que também se afirma no Brasil a partir das eleições de 2018).

O novo sistema de informação com o qual convivemos, paradoxalmente tão próximo do que se consolidou na URSS em período tão distante, não visa mais transmitir, mas “transformar” uma dada situação – já observara Robin sobre a retórica totalitária. Com as redes se inauguraria também uma nova modalidade de notícia: as fake news; e é importante diferenciá-las do que Robin chamou de “palavra falsa”. Enquanto a última emana do Estado, e é fruto de sua lógica de poder, as fake news podem até emanar do Estado, mas resultam sobretudo da iniciativa de grupos de poder menos definidos, menos explícitos, muito mais difíceis de serem detectados e combatidos; diversificados, podem ir do capital financeiro ao indivíduo solitário diante de seu computador – donde seu poder devastador.

O texto abaixo aponta uma homogeneidade entre os dois sistemas de propaganda que nos parece mais que familiar, atual. Deixaremos que o leitor encontre menção à situação brasileira na introdução do livro: os ares totalitários que aqui se expandem a partir de 2018, e a insistente manipulação da linguagem e das palavras atestam o acerto de Robin. Já que seu tema foi a situação internacional, atentaremos aqui para o destino da informação na guerra Ucrânia-Rússia que explodiu há um mês. O leitor constatará que seu pensamento não envelheceu.

[…]

 

As rádios dos Estados Unidos ou as  inexperiências do pré-capitalismo – por ARMAND ROBIN

Antes de tudo, duas notas indispensáveis. Algumas das ideias que se seguem parecerão surpreendentes a alguns. Apesar de terem se formado lentamente em meu espírito ao longo do convívio com o aparelho de delírios chamado rádio devo dizer que, em sua forma final, elas não são propriamente minhas; são ao contrário, e apenas sob uma aparência diferente, muito corriqueiras nos movimentos de extrema-esquerda e nos meios operários avançados onde a URSS é considerada o regime capitalista mais caracterizado que já existiu.

A partir das próximas semanas esta “crônica” “descerá” aos detalhes dos programas internacionais; é preciso então finalizar previamente o trabalho que permitirá, na sequência e para cada caso, a “desolidarização”completa em relação às maquinações cujas engrenagens estudaremos uma a uma.

 

Acreditar no que se diz: fator de ineficácia

Quando passamos, de um segundo a outro, de um programa russo a uma emissão americana (ou, mais precisamente, a uma emissão não-russa), o que impressiona essencialmente é o contraste entre “a precisão”da primeira o caráter “vago” da segunda. Ali onde os técnicos soviéticos da “possessão dos cérebros” estabeleceram com impressionante minúcia a manobra ao modo materialista sobre milhões de espíritos, os dirigentes dos Estados Unidos ainda estão tateando à procura do “ponto mental” sobre o qual apoiar sua propaganda.

Rádios russas e rádios não-russas são do mesmo modo “mistificações”; mas nas primeiras o mistificador mantém-se acima e fora do processo de mistificação; nas segundas, o próprio mistificador é mistificado. Toda rádio não-russa se refere constantemente à noção de “homem de boa vontade”; constantemente elas são perpassadas, como uma última sombra, por sentimentos cristãos; constantemente aí se fala de justiça, do direito das pessoas, de liberdade de espírito; e, constantemente, nisto se crê, nem que seja um pouquinho. Este “pouquinho” tem consequências as mais graves: o esforço empregado para propagar essas noções morais é por isto mais despendido na consciência daquele que as emite, do que na daquele a quem a propaganda é destinada.

Nas rádios russas fala-se igualmente (talvez até mais) das mesmas noções, mas sem acreditar minimamente nelas. A consequência é de que todo o “potencial mental” contido nas entidades evocadas “se descarrega” mais no espírito dos ouvintes visados pela operação tática em curso. Em um como no outro, a palavra difundida é igualmente falsa, vazia de qualquer substância autêntica, verdadeiro “cadáver”, em harmonia com a morte de todo um mundo. Mas no caso das rádios americanas (ou melhor, não-russsas) o propagandista da palavra falsa se esgota num último esforço para tirar de si mesmo o que possa lhe conferir um pouco de existência e, ao fazê-lo, reduz sua consciência e perde um pouco o jogo.

 

Ainda muitas bíblias nos cofre-fortes.

Por outro lado, nas rádios americanas a ideia do “bom negócio”, da “boa ação”, do “poder” e do “bem público” não estão ainda radicalmente separadas umas das outras. Donde uma ambiguidade permanente: flutuando ainda entre o ponto de vista moral e o ponto de vista do poder e do interesse, as rádios do mundo não-russo utilizam constantemente resíduos de noções cristãs com objetivos de poder e de dinheiro, mas o fazem com hesitação. Nelas, a exploração do sentimento moral para operações “antimorais” é ainda confuso, desajeitado. Em suma, tudo se passa como se estas rádios fossem incapazes de “aproveitar” qualquer uma dessas disposições contraditórias entre as quais vacilam; elas deixam que as rádios russas as vençam de modo quase certeiro no plano da manobra materialista nos cérebros e, ainda mais que estas últimas, as coloquem sob acusações no plano moral.

Desculpamo-nos por introduzir aqui o termo mais gasto pelas inumeráveis operações às quais serviu e ainda serve como veículo, mas não conseguimos evitá-lo: com efeito, de tanto falar do “capitalismo”, acabamos por constituí-lo. O regime assim designado assumiu pela primeira vez sua forma na União Soviética, disfarçando-se sob uma fraseologia extremamente hábil. Uma classe muito limitada em número conseguiu concentrar ao máximo em suas mãos todos os valores materialistas, organizou-se do melhor modo para conseguir que os trabalhadores produzissem cada vez mais e consumissem cada vez menos. Esta monopolização de todos os recursos nas mãos de uma equipe de técnicos e de “planificadores” da dominação, esse confisco babiloniano de todos os meios de vida garantem o conforto de um pequeno número – tudo isto apresenta no seu mais alto grau as características do capitalismo ultra-centralizado, e torna inevitável “o aprisionamento” de todas as palavras dirigidas aos escravos, para obter deles não apenas que aceitem sua sorte, mas que participem ativamente no enriquecimento e no fortalecimento do senhor.

 

Quando o porvir risonho chegar, o whisky equivalerá à vodka.

As aparências que distinguem a palavra falsa russa e a palavra falsa não-russa correspondem assim ao fato de que, fora da Rússia, ainda nos encontramos diante do pré-capitalismo. A exploração do homem pelo homem não sendo ainda ali levada adiante com todo o rigor possível, a consequência é que as rádios correspondentes são a expressão de homens para quem a exploração de outros homens não deve passar de certos limites vagamente designados por convenções morais, tradições, “o uso” ou até mesmo o “bom tom”.

No início sugerimos que essas diferenças eram provisórias, que o capitalismo brutal, sob uma forma ou outra, triunfaria sobre o capitalismo hesitante e não “planejado”; pode acontecer que, quando cobrir o planeta, a percepção do caráter apocalíptico da mentira gigante nos leve por engano a ver o futuro destino da humanidade sob formas muito sombrias. A cada noite parece-nos que em breve estaremos lado a lado, em perfeita concordância, as rádios russas cada vez mais “stalinizadas”e as rádios não-russas cada vez mais “burnhamizadas”.[1]

*Stella Senra é doutora em ciências da informação pela Universidade de Paris II. Autora, entre outros livros, de O último jornalista: imagens de cinema (Estação Liberdade).

 

Referência


Armand Robin. A palavra falsa. Tradução: Stella Senra. São Paulo, Editora n-1, 2022, 264 págs.

 

Nota


[1] James Burnham, filosofo Americano nascido em 1905. Depois de romper com o trotsquismo publicou em 1941 um ensaio, The managerial revolution”, traduzido na França com prefácio de Léon Blum e intitulado L’ère des Organisateurs ,. No fundo violentamente anti-comunista, defendia que, em virtude da complexidade crescente da economia, não será uma sociedade socialista que sucederá ao capitalismo, mas uma “sociedade diretorial” onde os tecnocratas (os “diretores”, os “managers”) reinarão como senhores. Segundo ele, os fundamentos dessa nova sociedade já estariam estabelecidos, tanto no ocidente quanto no oriente. Entre 19 de agosto e 3 de setembro de 1947, J. Burnham publicou no Le Monde uma série de artigos tendo por título “Pela dominação mundial”. Nota do autor.

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