Por FRANCISCO PEREIRA DE FARIAS*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Adalberto Cardoso e Edmond Préteceille
O livro de Adalberto Cardoso (Uerj) e Edmond Préteceille (FNSP- Science Po./FR) constitui um estudo amplo e abalizado das condições de trabalho e das situações culturais dos agrupamentos considerados de classe média no Brasil, especialmente a partir dos anos 2000. Com base nesta pesquisa, construída com rigor teórico-metodológico, apresentam uma caracterização da presença políticas dos grupos de classe média no Brasil das manifestações de 2013 até o golpe do impeachment de 2016.
No capítulo I, filiando-se à tradição aberta pelos trabalhos de C. W. Mills, os autores ressaltam a importância da estrutura ocupacional como principal “componente causal de oportunidades de vida” das classes trabalhadoras, como é o caso da maioria das classes médias. O capítulo II é dedicado a analisar o perfil das classes médias brasileiras. Duas hipóteses de trabalho organizam os dados empíricos: as classes não são indiferentes às relações etárias, de gênero e de cor prevalecentes numa sociedade desigual como a brasileira; em momentos de significativas mudanças na estrutura econômica e nos mercados de trabalho, como se observou no Brasil entre 2002 e 2014, devem mudar também os perfis de classe. O capítulo III investiga a relação entre classes sociais e condições de vida das famílias, dando um passo em direção a mostrar que “a classe conta”. A mobilidade social do ponto de vista das classes médias é o objeto do capítulo IV.
Finalmente, a relação entre classes médias e política é apresentada no capítulo V. A hipótese dos autores, aplicada a amplo leque de informações em órgão de imprensa, em pesquisas de opinião pública e em outras evidências, é de que a conjuntura de 2013-2016 “foi um momento de constituição e afirmação de identidade de classe por diferentes parcelas das classes médias brasileiras, que teve como principal eixo organizador as práticas e processos de construção de significado em torno do exercício do poder de Estado” (p. 33).
Num breve comentário, gostaria de destacar o ponto da clivagem política dos agrupamentos das classes médias nesta conjuntura brasileira. Diz-nos os autores sobre essa clivagem política: “As frações mobilizadas das classes médias trouxeram às ruas ao menos dois projetos antagônicos (entremeados por outros não tão explícitos). Um deles não tem compromisso com a superação das desigualdades sociais. Muito pelo contrário. Ele se alimenta das desigualdades, valoriza-as e contrapõe-se com veemência a projetos alternativos – um projeto propriamente conservador, ancorado em estilos de vida e concepções de mundo próprios. O outro teve por base ideias como igualdade, solidariedade e justiça social, podendo ser nomeado progressista, com raízes também em estilos de vida e concepções de mundo próprios. De um lado, uma ética burguesa do trabalho tal como identificada por Weber na ética protestante, liberal e elitista, e no caso brasileiro, com claro pendor autoritário em termos políticos. De outro, uma ética do trabalho assalariado, fruto das lutas sociais do século XX, de que foram protagonistas, primeiro, o operariado, e depois, as classes médias em processo de crescimento, sobretudo as classes médias baixas dos serviços e aquelas vinculadas ao serviço público, bases de sustentação dos Estados de bem-estar no Ocidente e também no Brasil” (p. 232).
Em suma, a chamada classe média superior (os gerentes de empresa, etc.) inclinou-se ao campo da direita política; ao passo que “as classes médias baixas” (comerciários, profissionais da escola estatal etc.) foram mobilizadas pela esquerda política. Sintomática, porém, é a atribuição aos dois grupos de classes médias de uma relação de antagonismo social. Ora, se esses agrupamentos fossem frações de um coletivo – a classe média -, ficaria difícil se explicar a sua agregação, dada a polarização de valores e interesses. Mas se, ao contrário, esses grupos diferenciados são reunidos pelo critério da estratificação – não compondo de fato um grupo como força social -, então se indica, mesmo que sem esta intenção, que se trata de agrupamentos de classes sociais distintas, pois perpassados por valores antitéticos.
Podemos, então, indagar: se o fracionamento no interior da classe dominante tende a projetar variantes na política de desenvolvimento capitalista, também no seio da classe assalariada o seu fracionamento pelos circuitos do capital não manifestaria padrões diferenciados de política de classe? A fração da esfera produtiva – a “classe operária” – tenderia a sustentar, dada sua situação de produtora direta da riqueza material, uma diretriz estratégica de controle dos meios de produção pelos trabalhadores e de planejamento descentralizado e participativo, o que implica o pluralismo partidário, a democracia política. Ao passo que as frações da esfera da circulação – as chamadas baixas classes médias – estariam inclinadas, em razão de sua separação do trabalho produtivo, a delegar ao aparelho de governo os encargos de controle da posse dos meios de produção e de planificação centralizada da economia e da cultura, o que as compromete com a unicidade partidária e a meritocracia política.
Em relação à classe média superior, para Cardoso e Préteceille, “as gerências autoritárias”, identificadas em pesquisas pioneiras sobre as classes médias no Brasil, “ficaram, ao menos idealmente, no passado. Os novos ambientes de trabalho dependem da cooperação de todos, inclusive dos subalternos, na execução não de produtos, mas de projetos horizontalmente integrados, etc. A luta de classes na fábrica e na empresa contemporânea já não é a mesma de quarenta anos atrás” (p. 215).
Este tema da corporate governance, de fato, precisa ser melhor visto. Teríamos de levar em conta a proposição de Peter Gourevitch & James Shinn, em Political power and corporate control. The new global politics of corporate governance (Princeton University Press, 2005), de que “os conflitos dentro da sala de administração [da grande empresa atual] sobre o poder e a quota econômica são resolvidos no mercado político” (p. 64), ou seja, o processo das coalisões políticas e sociais frente a política do Estado influencia, ou mesmo determina, a dinâmica das disputas não apenas entre os tipos de papéis sociais – acionistas, gerentes, trabalhadores – dentro da grande empresa, mas também de setor produtivo e setor bancário; empresa nacional versus estrangeira; capital privado e capital estatal.
*Francisco Pereira de Farias é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí e pesquisador de pós-doutorado na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Reflexões sobre a teoria política do jovem Poulantzas (1968-1974) (Ed. Lutas anticapital).
Referência
Adalberto Cardoso & Edmond Préteceille. Classes médias no Brasil: estrutura, mobilidade social e ação política. Rio de Janeiro, UFRJ, 2021.