Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO*
Essas megaoperações criminosas não têm valor como repressão ao tráfico. São manobras para desviar o foco da sociedade da corrupção, que alimenta integrantes de forças policiais e de aparelhos do Estado no Brasil
Durante os dias 24 e 25 de maio, estávamos encerrados no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP, em São Paulo, participando da 50ª Sessão do Tribunal Permanente dos Povos. Examinávamos, entre outros temas, os crimes contra a humanidade atingindo a população negra, praticados pelo presidente Bolsonaro e seu governo de extrema direita.
Enquanto isso, lá fora, no Rio de Janeiro, a Polícia Militar, a Polícia Rodoviária Federal e outras forças especiais levavam ao cabo uma operação de doze horas, iniciada na madrugada. Armaram emboscada contra varejistas de drogas, à guisa de conter o narcotráfico, na favela Vila Cruzeiro, na região da Penha, no Norte da cidade. O saldo: 26 execuções, incluídas mortes por bala perdida.
Foram os próprios moradores que recolheram os corpos. Porta-vozes das polícias informaram que a tal “operação” – uma chacina – foi longamente preparada a fim de reprimir traficantes. O que se revelou, no entanto, foi (mais) um arroubo de incompetência das forças públicas, que resultou no extermínio de varejistas do tráfico – cinco com ficha criminal pregressa e o restante suspeito –, em vez de uma verdadeira operação de combate ao crime organizado. Evidentemente, várias mortes foram exibidas como consequência de um confronto “faz de conta”.
As polícias podem dizer o que quiserem sobre como essas mortes ocorreram, pois a cena do crime foi totalmente desfeita, os corpos abandonados na mata pelos policiais. Claro que, pela necropsia, onde a verdade emerge com exame das balas e das armas dos envolvidos, será possível saber mais. Mas a tradição carioca é fazer investigações rigorosíssimas sempre de mentirinha, muitas vezes, como em outras grandes chacinas, conduzidas em segredo, impedindo-se a sociedade civil de ter acesso aos dados da investigação.
Faz tempo que a policiais militares agem, até mesmo como forças de ocupação das favelas no Rio de Janeiro, tendo como alvo a população negra. A organização Favela Não Se Cala até chama esses “campos de extermínio” de “faixas de Gaza brasileiras”. As polícias no Rio, sem controles e sem limites, agem até mesmo com treinamento e armas israelenses, como as forças de ocupação dos territórios palestinos – as quais, segundo o jornalista Gideon Levy escreveu no Haaretz, o respeitadíssimo jornal de Israel, “tornaram-se tropas de assalto (do inglês, storm troops) no sentido mais profundo e carregado desse termo; não há outra maneira de descrevê-las”.
Essas storm troops brasileiras ousam criticar o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, por suas decisões corajosas para conter a sanha de extermínio e de racismo nas operações policiais, desde a pandemia de Covid-19. Decisões que governantes do Rio de Janeiro, em campanha eleitoral, não têm coragem de tomar, por demagogia com a extrema direita bolsonarista.
No passado recente, estava na moda considerar o mau funcionamento das polícias, em conluio com organizações criminosas, narcotraficantes e com as milícias – que hoje controlam a maior parte do território do estado do Rio de Janeiro – como um Estado paralelo. O fato é que nunca houve paralelismo algum. O crime organizado, o narcotráfico e as milícias estão incrustados no funcionamento do Estado, em todas as unidades da federação.
Como disse Pedro Constantine, um dos dirigentes do Favela Não se Cala, em entrevista à TV 247, o aparelho repressivo estatal não tem interesse de enfrentar o tráfico e as milícias para não perder lucros advindos da tolerância às atividades criminosas nas favelas. As armas de uso exclusivo das Forças Armadas, ostentadas pelos criminosos (no atacado e no varejo de drogas) não caem do céu. Muito provavelmente são fornecidas por aqueles que se beneficiam do comércio de drogas.
Está mais do que na hora de deixarmos farsas inúteis. Essa megas operações criminosas que resultam em chacinas não têm valor como repressão ao tráfico. Simplesmente são manobras para desviar o foco da sociedade da corrupção, que alimenta integrantes de forças policiais e de aparelhos do Estado no Brasil.
*Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos; relator especial da ONU para a Síria e membro da Comissão Arns. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).