Por FERNANDO RIOS*
Poema contra a violência e seus desdobramentos.
Para Filipe, Tigre, Grave, Condor Azeredo Rios.
“— E quem foi que o emboscou,\ irmãos das almas,\ quem contra ele soltou\ essa ave-bala?\ — Ali é difícil dizer,\ irmão das almas,\ sempre há uma bala voando\ desocupada.
— E o que havia ele feito,\ irmãos das almas,\ e o que havia ele feito\ contra a tal pássara?\ …\ — Mas então por que o mataram,\ irmãos das almas,\ mas então por que o mataram\ com espingarda?\ — Queria mais espalhar-se,\ irmão das almas,\ queria voar mais livre\ essa ave-bala.\ — E agora o que passará,\ irmãos das almas,\ o que é que acontecerá\ contra a espingarda?\ — Mais campo tem para soltar,\ irmão das almas,\ tem mais onde fazer voar\ as filhas-bala” (João Cabral de Melo Neto, Vida e morte Severina).
1.
uma ave-bala perdida
sem eira nem beira
procura um lugar
para morar
e quase sempre
ao encontrar
não faz de seu corpo-ninho
um altar
mas apenas
um casto e raso velório
primeiro repertório
para uma nova morada
ave-bala da cidade
não serve de sobremesa
apenas se apressa na procura
de um novo corpo-ninho
e quando encontra
promove duas moradias
uma para ela mesma
ave-bala em agonia
e uma nova casa
para um corpo sem serventia
2.
aves-balas há muitas
soltas
……………..ariscas
…………………………aos bandos
nenhuma pousa no fio
senão por um fio
resvala em cada corpo
onde às vezes
…………………………ela pousa
penando na escuridão
das aves-balas urbanas
não se fala em ninho
senão de metralhadora
dali elas partem
se multiplicam
se avançam colina abaixo
resvalam colina acima
essas aves-balas
tão diferentes daquelas
de família cabralina
porque estas aves-balas
que escapam das carabinas
criam uma nuvem de medo
cobrem o sol
……………..levam pesares
……………..levam azares
……………..levam penares
e se aconchegam
em novos corpos ninhos
e neles
as aves-balas
ficam para sempre
mesmo quando retiradas
sobram ocos
no corpo adentro
preenchidos apenas
com as lágrimas
de um corpo-ninho
que não ressuscita
3.
uma ave-bala
é sempre de rapina
ela vem na surdina
e quando chega
mais do que espanto
abrem-se gargantas
em fúria divina
sem chance
um ser já era
mano ou não
cidadão ou não
polícia ou não
traficante ou ladrão
de repente
……………..de cara no chão
4.
uma ave-bala
sempre deixa um nome
numa lápide
e duas datas
e lágrimas e flores
e sonhos esparramados
e cabelos arrancados
e um azedo odor
………………………….de ausências
uma ave-bala
constrói um vazio
num corpo cheio
uma ave-bala
sem qualquer doçura
sem qualquer pergunta
sem qualquer pedir favor
se aloja
e então
o que pode um corpo
senão adernar
e profundamente
sucumbir
5.
uma ave-bala
……………..(de rapina)
……………..perdida
vem desembrulhada
loucamente alada
…………………………pelada
e ao penetrar
…………………………termina
sem qualquer orgasmo
uma ave-bala
nasce e mata
na capital e no interior
…………………………de qualquer corpo
uma ave-bala
nasce e mata
capital e trabalho
uma ave-bala
não escolhe tempo nem espaço
pode ser (a)manhã tarde noite ou hoje
chuva sol meio-dia orvalho
uma ave-bala
mais do que obra divina
faz parte da extensão
de um homem-bicho-homem
de seu ódio
de sua raiva
de seu errar
……………..ao céu
……………..ao léo
de seu estranho amar
de seu cavalgar estrelas
de seu dominar o mar
de seu atrever-se ao ar
6.
uma ave-bala ao léu
não escolhe continente
nem chapéu
para reverência própria
só apronta escarcéu
faz de qualquer corpo
ausente ou presente
coisa subjacente
coisa que bóia à toa pelo rio
uma ave-bala
……………..de rapina, ou não
faz do corpo quente
objeto frio
uma ave-bala solta ao vento
faz de cada sujeito
esquivo objeto abjeto
envolto em cantos, choros
murmúrios e ladainhas
mesmo depois de retirada
a ave-bala não traz de volta
a vida que voou
reina ela – a ave-bala –
na memória de quem ficou
no olhar estatelado de quem olhou
no gesto interrompido de quem calou
na voz engasgada de quem falou
no ouvido surdo de quem ouviu
o silvo sibilino
nem cobra nem felino
nem o risco no ar
só um tudo que antepara
um corpo diante da ave-bala
……………..rapinamente
……………..perdida
……………..de repente
um nada
e ela – a ave-bala achada –
fica suavemente esquecida
na mesa de autópsia
para ser lembrada
na soturna funerária
7.
uma ave-bala perdida
depois de achada
sempre deixa seqüela
e ninguém se livra
da memória dela
uma ave-bala perdida
jamais cai no esgoto
sai sempre de um
homem ira
homem raiva
homem tralha
homem ódio
homem cinza
homem escroto
tanto mais cresce o ódio
mais a ave-bala perdida
se transforma em rapina
e mais ela entra
às trombetas
ou em surdina
8.
a ave-bala perdida
……………..de rapina
não escolhe tempo bom ou ruim
quando ela se apresenta
pressente-se
alguém está perto do fim
e é sempre um presente
que se perpetua
seja criança jovem
velho adulto
basta ser gente
mulher e homem
e a ave-bala de rapina
perdida
não se faz de rogada
e se faz anti-semente
9.
mas as aves-balas perdidas
……………..de rapina
têm especial preferência
(juvenil predileção)
por meninos avião
esses que levam
……………..e polvilham coisas
para prazeres maiores
chamadas drogas
de alucinação
e deixam as pessoas
dentro de si de dentro
do lado de fora
do dentro do nada
e essas crianças jovens
encontram as aves-balas
achadas em qualquer escuridão
e caminham com ela nos seus bolsos
quando deveriam chupá-las
ao invés de entorná-las
em qualquer corpo são
e de repente
essas aves-balas
……………..de rapina
se voltam contra eles
aves-balas perdidas
de rapina
………………….bumeranguemente
………………….atrevidas
10.
e no acaso da bala
acha-se um ocaso
finda-se uma doce vida
que poderia ter sido
calma ou intrépida
e as aves-balas
……………..de rapina
……………..perdidas
…………………………..ao leo
cumprem cada vez
seu melhor papel
de povoar de
anjos arcanjos
querubins e serafins
…………………………..o céu
*Fernando Rios é jornalista, poeta e artista plástico.