Assassinato político

Imagem: Nothing Ahead
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SANDRA BITENCOURT*

Não! Não é uma guerra, porque só o bolsonarismo mata

O jornalismo é essencialmente discurso. A informação é basicamente uma questão de linguagem e a linguagem não é transparente. Como a mídia não apenas transmite ou reflete o que acontece na realidade social, mas a constrói, o modo como torna visível os fatos e como seleciona aspectos da realidade normalmente está subordinado aos interesses daqueles que a controlam. É assim que os meios de comunicação de massa constroem uma visão do espaço público. A responsabilidade é enorme e estamos em um momento para evitar eufemismos e tomar o lugar que o jornalismo deve ter numa democracia: vigiá-la, defendê-la, ampliá-la.

Essa noção de gênero discursivo, embora possa ser problematizada em vários aspectos, é uma chave importante para acessar a compreensão das complexidades da função e da operação jornalística. Nos ensina Charaudeau (2003) que ela é necessária para ajudar a revelar quais são as circunstâncias enunciativas em que circula um discurso e como essa circulação discursiva se materializa em produtos textuais concretos. Nos anos 1930, a Escola Russa (Bakhtin, Voloshinov, Medvedev) se concentrou no estudo do uso linguístico em situações da vida real e não apenas na retórica.

O que Charaudeau chamou de “campo da prática social”, onde atores constituem instâncias de comunicação em torno de um dispositivo que determina sua identidade, o(s) propósito(s) estabelecido(s) entre eles e o campo temático que constitui sua base semântica. Ou seja, no dispositivo jornalismo está a finalidade da informação (dar a conhecer) e da demonstração (relação de conhecimento centrada na verdade). Os objetivos podem ser articulados e combinados, mas um é sempre predominante. Quando olhamos para o jornalismo são várias as particularidades, mas é sempre necessário operar o debate sobre o poder e o papel dos sujeitos condicionados por vários interesses e cenários históricos. São essas noções valiosas para a compreensão da atividade jornalística. Conceitos que os profissionais da área conhecem (ou deveriam conhecer), compreendem e operam cotidianamente.

Mas para além do que a literatura teórica do campo nos diz, podemos nos socorrer da prática mesmo. Não há jornalista ou rotina de redação que não discuta exaustivamente as palavras escolhidas para construir manchetes e narrar acontecimentos, senhores. Não há. Quem trabalha há muito tempo numa redação sabe como deve proceder na escolha das palavras, na seleção e hierarquia do que vai contar, na consulta às fontes que escolher. Quando a gente redesenha a realidade para publicar o que desejamos contar do mundo, nada é por acaso. Nunca. Nenhum jornalista pode reivindicar um sentido neutro para o uso de determinada expressão ou para não nomear o crime, a violência, o assassinato, exatamente de crime, de violência e de assassinato.

A linguagem é disputada o tempo todo. Era assim quando trabalhei em um importante grupo de comunicação e tinha a proibição de usar a palavra ocupação para caracterizar alguma ação do MST. O termo determinado era invasão. Do mesmo modo, era rigorosamente vedado utilizar na montagem de alguma matéria a sonora (entrevista) de sindicalistas como última fala da reportagem. Ou seja, está claro que a escolha de determinados termos importa e são decisivos para construir o acontecimento no espaço público.

Desde este último domingo me escandalizo como alguns veículos e algumas figuras públicas, líderes de partidos e candidatos, que se atrevem a definir o assassinato do militante petista pelo bolsonarismo como guerra, briga ou discussão. O assassinato de um militante do PT, por ser do PT, deve por fim ao cinismo midiático que utiliza eufemismos, subterfúgios e falsa simetria na cobertura política onde de um lado está a sociedade e os escombros democráticos e de outro está a barbárie, a violência e a destruição.

O Poder360, blog noticioso importante, teve o descaramento de noticiar o assassinato político como “bolsonarista e lulista morrem em troca de tiros no Paraná”. A justificativa do editor é que a matéria explicava mais detalhadamente o ocorrido. Ora, os títulos devem anunciar e resumir a informação e convencer o leitor de que o viés apresentado é importante, além de atraí-lo para a leitura e “vender” para ele a importância do texto. Não adianta contar a verdade depois da manchete.

Não é esta a primeira morte autorizada por uma facção política que cultiva a violência, que defende o crime, que agride instituições, que viola a constituição, que desmonta a República, que persegue cientistas, que acusa artistas, que nega a ciência e distorce informações vitais, que desmancha as funções públicas do Estado. E não é de hoje que a imprensa noticia sem dar o nome que as coisas têm: crime, fascismo, machismo, misoginia, racismo. Segue em seu jornalismo declaratório. A Folha de São Paulo teve o peito de estampar em uma manchete que o jornalista assassinado pelos criminosos – cujas práticas de garimpo, pesca criminosa e outras ilegalidades são defendidos pelo governo e suas autoridades –, Dom Phillip, era malvisto na região. Que tipo de manchete é essa?

Na Rádio Gaúcha, que façamos justiça, tem buscado fazer jornalismo ante o show de horrores de suas concorrentes, ouvi de um comentarista escritor o lamento de que a violência do futebol, o regime de arquibancada havia se transferido para a política, o que era grave porque todos agora andavam armados. Não! Não é uma guerra, porque só o bolsonarismo mata. Não adianta ao microfone lamentar genericamente e pedir paz, pedir a profissionais do ódio e milícias armadas que sejam respeitosos com a opinião do outro e se desarmem.

Há anos que não estamos na normalidade. Há anos que cresce o armamento na mesma medida que o descontrole de armas, muitas, já se sabe, abastecendo o tráfico e as milícias. Já temos mais armas não mãos de civis no país que entre forças policiais e militares. Há tempos sabemos que isso ameaça a sociedade, ameaça a democracia e aumenta a violência. Não estão todos armados. Não é honesta fingir e lamentar o sofrimento de duas famílias, como se os dois envolvidos fossem vítimas de uma polarização.

O Marcelo foi mais uma vítima do bolsonarismo. E do jornalismo também. A bobagem da polarização que os veículos repetem só não é pior do que a bobagem da “ala ideológica do governo”, que a mídia criou para salvaguardar a parte que lhe interessa desse governo espúrio, a das reformas que prometeram criar empregos e crescimento e jogaram milhares na miséria, sem renda, sem emprego e sem comida.

Escolher entre duas opções políticas não é polarização. Polarização é entre extremos. E hoje temos de um lado a barbárie e de outro a democracia. É cristalino. O bolsonarismo está fora do quadro democrático. Ele insulta a mídia, ameaça as instituições, faz chantagem com as eleições. Mente, mente, mente.

Só posso entender que parte da mídia está acuada. Refém também da fúria, com medo das reações nas redes sociais. Está tentando lidar com a credibilidade que se esvai, com os ataques que não poupam nenhuma instituição, com os negócios que vão mal. Precisam tergiversar, precisam aderir, precisam fazer de conta. Mas esse simulacro não funciona em terra arrasada. Os negócios também não. Em algum momento será imperativo agir.

*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em comunicação e informação pela UFRGS, diretora de comunicação do Instituo Novos Paradigmas (INP).

 

Referência


Charaudeau, P. El discurso de la información. La construcción del espejo social. Gedisa: España, 2003.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Jorge Branco Remy José Fontana Slavoj Žižek Ari Marcelo Solon Dennis Oliveira Francisco de Oliveira Barros Júnior Eleutério F. S. Prado Bruno Machado Tarso Genro Fábio Konder Comparato Fernando Nogueira da Costa Chico Alencar Lorenzo Vitral Alexandre de Lima Castro Tranjan Salem Nasser Rodrigo de Faria Marcos Aurélio da Silva Eduardo Borges Elias Jabbour Jorge Luiz Souto Maior Paulo Martins Ricardo Fabbrini Antonino Infranca Priscila Figueiredo Flávio R. Kothe Henry Burnett Eugênio Bucci Gerson Almeida Marcos Silva Luiz Werneck Vianna Everaldo de Oliveira Andrade Thomas Piketty Marilia Pacheco Fiorillo Alysson Leandro Mascaro Julian Rodrigues Leda Maria Paulani Marcus Ianoni Mariarosaria Fabris Lucas Fiaschetti Estevez Tales Ab'Sáber Anselm Jappe Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Roberto Alves Igor Felippe Santos Gilberto Maringoni Vladimir Safatle Luís Fernando Vitagliano João Paulo Ayub Fonseca Matheus Silveira de Souza Lincoln Secco Afrânio Catani Luis Felipe Miguel Jean Marc Von Der Weid Paulo Nogueira Batista Jr Leonardo Avritzer André Márcio Neves Soares Manuel Domingos Neto Michel Goulart da Silva Francisco Pereira de Farias Yuri Martins-Fontes Carlos Tautz Vanderlei Tenório Bruno Fabricio Alcebino da Silva Liszt Vieira Michael Löwy Leonardo Boff Caio Bugiato Fernão Pessoa Ramos Boaventura de Sousa Santos Milton Pinheiro Gilberto Lopes Andrew Korybko Celso Frederico Manchetômetro Alexandre de Freitas Barbosa André Singer Michael Roberts Daniel Costa Francisco Fernandes Ladeira Vinício Carrilho Martinez Ladislau Dowbor João Lanari Bo Bento Prado Jr. Carla Teixeira Marcelo Módolo Luiz Renato Martins Berenice Bento Paulo Capel Narvai Marcelo Guimarães Lima Heraldo Campos Armando Boito João Adolfo Hansen João Carlos Salles Walnice Nogueira Galvão Luiz Bernardo Pericás Eugênio Trivinho João Feres Júnior Denilson Cordeiro Airton Paschoa Paulo Fernandes Silveira José Luís Fiori Henri Acselrad Luciano Nascimento Sergio Amadeu da Silveira Gabriel Cohn Maria Rita Kehl Mário Maestri Ricardo Musse Chico Whitaker Sandra Bitencourt Ronaldo Tadeu de Souza Dênis de Moraes Andrés del Río Plínio de Arruda Sampaio Jr. Bernardo Ricupero José Dirceu Samuel Kilsztajn José Machado Moita Neto Celso Favaretto Claudio Katz Antônio Sales Rios Neto Marjorie C. Marona João Sette Whitaker Ferreira Daniel Brazil Kátia Gerab Baggio Rubens Pinto Lyra Alexandre Aragão de Albuquerque Luiz Marques Renato Dagnino Benicio Viero Schmidt Érico Andrade José Geraldo Couto Leonardo Sacramento Juarez Guimarães Paulo Sérgio Pinheiro Ricardo Antunes Flávio Aguiar Rafael R. Ioris Valerio Arcary Marilena Chauí Jean Pierre Chauvin Alexandre de Oliveira Torres Carrasco José Raimundo Trindade Ronald León Núñez Osvaldo Coggiola Otaviano Helene Antonio Martins Daniel Afonso da Silva José Micaelson Lacerda Morais Eleonora Albano Ricardo Abramovay Eliziário Andrade Tadeu Valadares João Carlos Loebens Ronald Rocha Annateresa Fabris Luiz Eduardo Soares Atilio A. Boron José Costa Júnior Valerio Arcary

NOVAS PUBLICAÇÕES