Por DANIELA VIEIRA & JAQUELINE LIMA SANTOS*
Apresentação das coordenadoras da recém-lançada coleção de livros sobre o hip hop
“Para mim, o hip hop diz: “Venha como você é”. Somos uma família …. O hip hop é a voz desta geração. Tornou-se uma força poderosa. O hip hop une todas essas pessoas, todas essas nacionalidades, em todo o mundo. O hip hop é uma família, então todo mundo tem como contribuir. Leste, oeste, norte ou sul – viemos de uma mesma costa e essa costa era a África” (DJ Kool Herc, 2005).
As palavras de Kool Herc, jovem jamaicano que se sobressai como um dos precursores da cultura hip hop em Nova York, centra-se no sentimento que mobiliza jovens de distintos contextos marginalizados ao desempenharem as expressões culturais do movimento: “fazer parte”. As experiências negras, marcadas pela escravidão moderna e por ações de reexistência, levam pessoas afrodescendentes a construírem referenciais de interpretação das suas realidades e a redesenharem os seus destinos.
Em consequência, as culturas afro-diaspóricas, como o hip hop, apresentam produções que colocam em pauta colonialismo, racismo, nação, classe, gênero, sexualidade e desigualdades sociais; temas não exclusivos deste segmento, mas que impactam as juventudes de diferentes contextos globais cujo passado e/ou presente são marcados por relações de opressão e exclusão social. Isso torna o hip hop um movimento sociocultural global que se destaca por ser constitutivo e também por constituir sujeitos transgressores e narradores de si próprios. A despeito do colonialismo, pós-colonialismo, da estratificação social e, ao mesmo tempo, devido a esses marcadores, é possível ser sujeito. Ou seja: fazer parte, ter parte e tomar parte.
Ora, malgrado o contexto de fluxo migratório árduo, segregação racial e exclusão social que marcou o surgimento do hip hop na década de 1970 por imigrantes jamaicanos, caribenhos e porto-riquenhos residentes no Bronx, essa manifestação segue se renovando na medida em que inspira e sintetiza práticas inovadoras de expressão artística, conhecimento, produção cultural, identificação social e mobilização política. As organizações dos grupos (crews e posses) vinculados ao mundo do hip hop têm auxiliado para a compreensão das estratégias de mudança, de construções coletivas, dos associativismos periféricos e, até mesmo, de transformações das trajetórias e ascensão social das classes populares, em sua maioria não brancas.
Nesse sentido, contesta e supera as construções convencionais, os limites e os estereótipos de raça, identidades, nação, comunidade, cultura e conhecimento. Por meio de expressões artísticas diversas – rap, breaking, grafite – revela as dinâmicas sociais locais e as suas contradições. Assim, a despeito das possíveis tendências contrárias à sua estruturação, aclimatou-se nos centros urbanos das periferias globais, dando origem ao “global hip hop”. Os estudos sobre o assunto desvelam esses processos.
Em vista disso, a coleção Hip Hop em Perspectiva reúne livros pioneiros e relevantes sobre esse fenômeno sociocultural e político inicialmente originado das classes subalternizadas. Por meio da edição de obras expressivas de temas candentes da nossa vida contemporânea, a iniciativa demonstra como as práticas, narrativas, visões de mundo e estilos de vida elaborados pelos atores dessa cultura contribuem para análises e intervenções em assuntos significativos para o entendimento da realidade social e suas possibilidades de mudança. A coleção apresenta um conjunto de obras que evidenciam o quanto este movimento juvenil configura-se como uma lente amplificadora de visões e de percepções sobre facetas cotidianas de diferentes contextos e sociedades. Uma experiência sócio-artística que disputa narrativas e imaginários, ampliando os repertórios e se engajando na construção do pensamento social.
A reflexão sobre os impactos de toda ordem desse fenômeno tornou-se matéria de interesse para pesquisas diversas constitutivas dos chamados Hip Hop Studies (HHS), os quais emergem institucionalmente a partir dos anos 2000. Exemplo desse processo atesta-se pelo número de instituições e revistas acadêmicas, conferências, acervos de museus, projetos e assessorias que englobam o universo da cultura hip hop. Destacam-se como espaços de referência o “Hiphop Archive Research Institute”, localizado na Universidade Harvard, a “Hip Hop Collection”, na Universidade Cornell, a “Hiphop Literacies Annual Conference”, sediado na Universidade Estadual de Ohio (OSU), a “Tupac Shakur Collection”, disponível na biblioteca do Centro Universitário Atlanta (AUC), o “CIPHER: Hip Hop Interpellation” (Conselho Internacional para os Estudos de Hip Hop), localizado na Universidade College Cork (UCC), entre outros.
Esse campo de estudos oportuniza a integração de distintas áreas do conhecimento, como sociologia, antropologia, economia, ciência política, educação, direito, história, etnomusicologia, dança, artes visuais, comunicação, matemática, estudos de gênero etc. Ao aliar pesquisas locais e comparativas dessas práticas artísticas nas Américas, Caribe, Europa, Ásia, Oceania e África, os trabalhos produzidos demonstram o quanto as especificidades desse fenômeno sociocultural e político são fecundas para a compreensão das dinâmicas sociais de diversas conjunturas urbanas.
Poderíamos dizer, igualmente, que os próprios artistas combinam as habilidades e competências desses diferentes campos de conhecimento para produzirem suas práticas e interpretações a partir dos contextos nos quais estão inseridos. A produção do rap envolve a observação e leitura sociohistórica, tecnologia de produção musical com samplings e colagens musicais, além de uma escrita que conecta cenário, análise crítica e perspectivas sobre o problema abordado; já o grafite é, ao mesmo tempo, um domínio de traços, cores e química e a elevação de identidades marginalizadas e suas ideologias projetadas nas paredes das cidades; o breaking, por sua vez, hoje inserido nos jogos olímpicos mundiais, exige conhecimento sobre o corpo, noção de espaço, interpretação da performance do grupo ou do sujeito rival, respostas criativas e comunicação corporal. Em síntese, não seria exagero afirmar que a prática do hip hop também é uma ciência.
Por isso, a coleção preocupa-se em trazer elaborações sobre os vínculos entre produção acadêmica e cultura de rua, pois parte significativa de autoras e autores aqui reunidos têm suas trajetórias marcadas pelo hip hop. Seja como um meio que lhes possibilitaram driblar o destino, quase “natural”, dados os marcadores de raça, classe e gênero. Todavia, por meio do conhecimento advindo das narrativas críticas do hip hop adentraram na universidade. Seja porque, mediante as condições de abandono e marginalização, encontraram no movimento componentes constitutivos de suas identidades. Em suma, o hip hop foi propício ao desenvolvimento do pensamento crítico, de capacidade analítica, leitura, escrita, chance de trabalho coletivo, garantindo as suas sobrevivências materiais e subjetivas. Da junção desses anseios os estudos de hip hop foram se desenvolvendo e, finalmente, a audiência brasileira tem a oportunidade de interlocução com essas obras.
Pois, embora as pesquisas acadêmicas sobre o tema tenham crescido exponencialmente no país – por exemplo, em 2018 foram defendidos 312 trabalhos, enquanto em 1990 o banco de teses e dissertações da Capes totalizou apenas 54 produções –, ainda não se estabeleceu um efetivo campo de investigação institucionalizado. Existe uma concentração de estudos nas áreas da educação e das ciências sociais. Contudo, há outros campos de conhecimento – economia, direito, artes, moda, matemática, filosofia, demografia, engenharias, biologia etc. – com os quais as produções desse fenômeno sociocultural poderiam contribuir e são pouco exploradas no Brasil. Logo, muitos são os anseios e expectativas aqui reunidos.
A coleção visa a circulação de bibliografia especializada sobre o assunto e a inserção dos estudos de hip-hop tanto como agenda de pesquisa acadêmica quanto possibilidade de diálogo para além do espaço universitário. Não menos importante, é o intento de colocar em destaque a produção cultural e artística de autores negros e autoras negras, inspirando a juventude negra e periférica que tem aumentado expressivamente sua presença nas universidades brasileiras, graças também ao sistema de cotas étnico-raciais. Além disso, é notável o interesse de estudantes pela temática.
O rap, em particular, durante muito tempo teve centralidade apenas em programas isolados, rádios piratas e nos territórios periféricos. Hoje, conquista cada vez mais espaço no mundo do entretenimento, perpassando o gosto de diversas classes sociais. E, ainda, orienta debates tanto sobre as agendas vinculadas aos Direitos Humanos e às lutas antirracistas, indígenas, feministas, de classe e LGBTQI+, quanto sobre a sua própria estética que igualmente se transfigura. Tais componentes, nos colocam diante de um panorama favorável para conhecer a fundo a fortuna crítica estrangeira dessa problemática.
Portanto, na certeza de ampliar ainda mais esses debates a Hip Hop em Perspectiva estreia como um chamado para a reflexão. Os livros aqui editados trazem ao público brasileiro interpretações dos processos sociais e de suas dinâmicas, em obras produzidas sobre diferentes países e que analisam a complexa e contraditória cultura urbana e juvenil que reposicionou o lugar das periferias globais e de seus artífices.
Em contexto no qual o horizonte é turvo, trazer à superfície literatura especializada sobre a cultura hip hop é semear alguma esperança.
*Daniela Vieira é professora de sociologia na Universidade Estadual de Londrina (UEL).
*Jaqueline Lima Santos é doutora em antropologia social pela Unicamp.
Publicado originalmente em Tricia Rose. Barulho de Preto: rap e cultura negra nos Estados Unidos contemporâneos. São Paulo, Editora Perspectiva.