Por LUIZ ROBERTO ALVES*
A educação só se integraliza na cultura, quer na construção da pessoa individual, quer dos coletivos institucionalizados
A sequência das palavras no título sinaliza a proposta do colunista: pensar a prática da formação das novas gerações pela reinvenção do bem-comum educacional perdido na história republicana. Ao tratar do tema, surge um agravante, o tempo eleitoral. Mas também uma oportunidade para candidatos/as pensarem seus planos de governo e trabalho.
No Brasil, as disputas pelo voto são construídas por três pilares bastante enfadonhos e mesmo traidores de intenções e projetos. O primeiro é o engalfinhamento discursivo em tons e significações muito próximas de candidato/a para candidato/a, de que resulta informação memorial de baixa efetividade, o que, por consequência, leva eleitores e eleitoras a decisões emocionais na hora do voto. A segunda, um jogo pesado de egos com vistas a algum destaque, o que pode criar idolatria, mas não conhecimento.
Em terceiro lugar, em nome da divulgação imediata e do nível popular do discurso, ficam completamente ausentes dados técnico-científicos ou, pelo menos, uma explicação racional de um projeto ou uma política almejada para a candidatura eleita.
Nesse pega-pega eleitoral, até candidatos/as dados/as ao pensamento racional em seu campo de trabalho entram no corpo a corpo da geleia geral da falação e da profusão de imagens, o que determina que um desejável princípio democrático, a educação política, fica ferido de morte. E la nave và.
Pensemos, pois, o que poderia revolucionar o pensamento eleitoral fora da geleia geral e da quebra da memória dos eleitores e eleitoras. Tratemos do tema central do atraso e dos equívocos brasileiros, isto é, da não-priorização da educação e da cultura. Aos fatos.
Os anos de 1930 no Brasil sinalizam uma derrota maior do que o golpe e a fraude getulistas, que negaram a eleição de 3 de janeiro de 1938, sufocaram movimentos e instalaram uma ditadura. No interior desse processo, o amadurecimento do Modernismo, que priorizou leituras éticas, estéticas e histórico-políticas do Brasil, das cidades e dos estados, foi violentado por um nacionalismo canhestro e artificial, muito diverso do pensamento que visou conhecer e difundir a totalidade da vida brasileira feita por intelectuais como o líder múltiplo e único Mário de Andrade.
Fica mais claro, pois, entender por que o getulismo de ocasião agiu brutalmente para desmantelar a experiência cultural-educativa de Fábio da Silva Prado e Mário de Andrade, este nomeado diretor do Departamento de Cultura e Recreação em 1935 e demitido três anos depois.
O que ocorreu é que, invertidas as prioridades manipuladas pela elite econômico-política paulistana-paulista, a gestão do Departamento de Cultura e Recreação entre 1935 e 1938, incluídos Sérgio Milliet, Rubens Borba de Moraes, Paulo Duarte, Oneyda Alvarenga, Nicanor Miranda, Luiz Saia, Maria Aparecida Duarte, revolucionou as relações éticas, estéticas e políticas do serviço público e atuou diretamente com operários, migrantes, imigrantes, enfim o grande contingente de trabalhadores e seus filhos. Aqueles anos de administração pública realizaram o que mais tarde viemos a denominar o bem-comum, uma ação integrada, indisputável e matricial a serviço da gente que a República desprezava, pois sua prioridade de governo se limitava aos donos de bens e meios de produção de extração colonial e imperial.
Na ação pública do Departamento de Cultura e Recreação, ao contrário, campos esportivos, novas tecnologias de comunicação e documentação, escolas, parques infantis, centros de cultura, bibliotecas fixas e circulantes, conhecimento científico da universidade nascente e faculdades já instaladas, núcleos de documentação, teatros, museus, música erudita, popular e folclórica, enfim todos os bens, valores, força humana e inteligência planejadora foram postos a serviço do povo que carecia do governo, de modo cotidiano, orgânico e sistematicamente avaliado. Atitude similar fora enunciada pelo Manifesto da Educação Nova em 1932, portanto um conjunto de ações revolucionário se comparado com as vicissitudes do ensino na escola brasileira.
O fenômeno narrado e argumentado, de fato a prática do serviço público naquela metrópole paulista com pouco mais de um milhão de habitantes, não foi uma questão local. Capitais europeias vieram a São Paulo e membros da equipe foram a congressos internacionais para apreciar e apresentar as ações do serviço público. O líder da gestão criou contatos com as cidades do entorno de São Paulo e amplamente do interior paulista, onde se realizaram pesquisas e enquetes sobre as culturas populares locais, música, danças, folguedos, brincadeiras, narrativas e suas relações com o sistema educacional.
Escreveu, também, as famosas cartas a encarregados de cultura e educação das cidades paulistas e brasileiras e, de fato, estimulou novas práticas educativo-culturais, muitas das quais ainda não estudadas cientificamente até hoje. Como foi total no local, fez-se total no país, que de fato ainda não realizou aqueles princípios e aquelas estratégias de humanização na cidade e no campo.
A rigor, somente a criação e o fazer culturais podem penetrar no espectro educativo e criar o intercâmbio de saberes (de que decorre a ideia de cultura no plural, culturas), como as ciências, as memórias, as narrativas, as leituras contínuas, os dizeres, as brincadeiras, as novas relações de conhecimento e amizade, o bem-querer revelado na ação conjunta.
Da mesma forma, é a ação cultural o móvel de matrizes que incluem saúde, higiene, segurança pública, habitação e outros projetos invisibilizados. E tudo isso é imprescindível para a formação das pessoas, estudantes, gestores, professores, pessoal de apoio e comunidades do entorno, mas jamais em caráter circunstancial e sim cotidiano e contínuo. Mário de Andrade estimulava a construção de museus municipais e argumentava que os melhores policiais desses equipamentos seriam seus participantes, gente identificada com a construção, a organização de materiais e a fruição do espaço museológico.
Consideradas as marcas daquela ação, 1935-1938, sem dúvida elas têm valor aumentado quando se pensa no país amplo, diverso e desigual. Como São Paulo ontem e hoje. As distinções não eliminam e, ao contrário, sugerem integralizações nos espaços distintivos, como periferias urbanas, comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas, grupos nômades, assentados e educandos sob cuidados especiais. Em todas as condições de educação/ensino existe a cotidianidade (lugar tanto do esquecimento quanto da memória), materiais dispostos à criação, inteligência criativa, capacidade de estabelecer estratégias, desejos de formação da pessoa. No que falta deverá estar a ação público-governamental, as organizações públicas de apoio e o estímulo à vocação das gentes. Seja no estado local, seja nos arranjos regionais e nos estados.
Mário de Andrade, em muitos textos e discursos documentados, esclareceu o que se dava em São Paulo: a totalização da educação na cultura, bem como a integralização da cultura na formação educacional.
Em linguagem pedagógica contemporânea, tratava-se da integralidade da formação das novas gerações. Era, pois, aquilo que todas as escolas colocam nos seus PPPs, Projetos Político-Pedagógicos, tanto ontem como hoje, mas nunca conseguem realizar e cumprir, pois dispõem somente de alguns livros, apostilas, educação física diminuída e enquadrada, talvez filmes ou vídeos esparsos, ausência de museus locais, pesquisa não estimulada, e isso é muito inferior ao que se fez em São Paulo naqueles anos de 1930.
O diretor do Departamento de Cultura e Recreação (como outros/as educadores/as em diversos momentos) jamais aceitou a educação e o ensino de crianças e adolescentes enfileirados numa sala. Daí a subrevolução dos Parques Infantis, com espaços preparados para unir cultura e natureza, educação e ecologia, o corpo animado da meninada à história, ao ambiente, às belezas e alegrias do viver. Esperava-se que os parques transformassem a educação da infância, adolescência e juventude. O golpe getulista tolheu o desejo. Outros golpes posteriores ampliaram as distâncias entre as etapas da educação básica brasileira e suas desconexões culturais. Educação vira aparelho do mando burocrático e cultura expressão do gênio individual. Certas elaborações culturalistas colaboraram para essa leitura distanciadora.
A ação do governo Fábio Prado-Mário de Andrade e equipe cria a sua teoria da integralização educativo-cultural, sua estratégia de alteração de prioridades, sua materialidade no uso máximo dos bens de governo a serviço do povo e seu princípio: a totalidade do saber solidário deve fazer-se no cotidiano do espaço de vida e ser entendida como plenitude educativo-cultural por todas as pessoas participantes dos fazeres e saberes.
Ao contrário, as formas de massificação cultural do tempo getulista, associadas ao fortalecimento do capitalismo liberal e sua organização atomizada do trabalho e da indústria cultural, as experiências desenvolvimentistas que primaram pelas quantidades desqualificadas, mais a ditadura e seus rebatimentos até hoje, todo esse processo que vivemos cindiu os atos de educar e fazer cultura, o que penetrou no âmago de todas as formas de fazer arte, difundir tecnologias, escolarizar, certamente não em um bonito conjunto de atitudes pessoais e comunitárias vistas em vários pontos do país, mas fundamentalmente nas ações de governo, local, estaduais e federal, cujas inação, ignorância e por vezes maldade determinam quebras nas ações criadoras de educação cultural e cultura educativa.
Até alguns artistas qualificados são incapazes de construir um pensamento cultural-educativo, exceto de forma conjuntural, fortuita e ocasional. Portanto não matricial, orgânico, cotidiano e integralizador, pensado (ao menos em parte) por gente distinta como Hannah Arendt, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire e (infelizmente grupos seletos) de educadores/as e criadores/as culturais contemporâneos.
Com essa leitura se pode entender o choro convulsivo de Glauber Rocha diante do seu Brasil desejado e postergado, segundo testemunho de Darcy Ribeiro no enterro do cineasta. “O Brasil terá de dar certo” – arrematou Darcy.
Quem lê bem as diversas propostas de governo que se apresentam hoje, sejam diretrizes, argumentos, dados ou supostos programas de governo, em todos os níveis e de todos os partidos, não encontra sinais indubitáveis de possíveis ações que criem ligas, soldas, laços possíveis de revolução na prática das irmãs educação-cultura. Encontra algumas boas ideias e, no entanto, cindidas, às vezes semi ou plenamente elitistas; pior, muitas vezes grandiloquentes mas desconectadas, ou de fato pobres, tradicionais, a mesmice com novo nome. Nem a melhor boa vontade consegue ver tais sinais, ainda que a elaboração das propostas tenha contado com educadores e criadores culturais.
O colunista crê na atualidade da proposta do modernismo transformado em ação de governo nos anos de 1930, isto é, a educação só se integraliza na cultura, quer na construção da pessoa individual, quer dos coletivos institucionalizados. Paulo Freire pode ter intuído essa revolução quando designou como “círculos de cultura” os grupos de alfabetizandos em processo de libertação do “bicho” de quatrocentos anos no poema de Thiago de Mello. Mário de Andrade foi apoiado por gente das escolas superiores para produzir enquetes científicas com as populações paulistas e descobrir sua condição e seus interesses. Numa delas ficou feliz porque o analfabetismo na capital paulista decrescia rapidamente. No entanto, hoje estamos envolvidos por toda sorte de analfabetismos, gráficos, discursivos, tecnológicos e éticos.
Deve-se ressaltar que várias obras, no tempo da redemocratização do Brasil, vieram à luz e revelaram (ainda que parcialmente) aquela ação de governo, o que despertou agentes públicos de educação, cultura e esportes de várias cidades paulistas e brasileiras a novos fazeres cultural-educativos, mas as crises provocadas pela servidão neoliberal e o refluxo da democracia outra vez botou os processos criativos sob sinuca de bico. Convém, pois, reinventar o jogo e os desejos.
Essa ação de governo completará 90 anos em 2025, ainda no governo dos eleitos e eleitas de 2022. Oxalá Carlos Drummond seja levado a sério e que de tudo fique um pouco, pois talvez o fazer político brasileiro se tenha empoeirado tanto pelas formas liberais de adestramento e instrução que já não se tenha a coragem de ousar ou realizar aparentes utopias. Melhor seria, no entanto, que se realizasse a revolução do pensamento criador.
*Luiz Roberto Alves é professor-pesquisador sênior da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de Administrar via cultura: revolução educativo-cultural na ex-pauliceia desvairada, 1935-1938 (Alameda).
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