O antissemitismo segundo Postone e Zizek

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Por Eleutério F. S. Prado*

Na campanha de Bolsonaro a dimensão negativa do capital, sob as formas da corrupção e da licenciosidade, foi associada aos militantes de esquerda e, em particular, aos membros do Partido dos Trabalhadores.

Para entender melhor o antissemitismo é interessante confrontar as teses de Moishe Postone e de Slavoj Zizek. O primeiro autor examinou esse tema com base numa interpretação original de O capital de Karl Marx, registrada no livro Tempo, trabalho e dominação social (Boitempo, 2014). Zizek, por sua vez, é bem conhecido por seu marxismo/hegelianismo heterodoxo influenciado por Jacques Lacan; a sua tese sobre a origem do antissemitismo, delineada nessa perspectiva, encontra-se em “As dificuldades do real” (capítulo 4 do livro Como ler Lacan, Zahar, 2010).

A compreensão desse fenômeno histórico continua bastante importante. Na forma de um saber de fundo, pode ser empregado – aposta-se aqui – para compreender os neofascismos e mesmo os neonazismos que estão surgindo no capitalismo contemporâneo, em vários países do mundo.

Note-se, de início, que esses autores rejeitam que o antissemitismo que vigorou sem entraves na Alemanha, entre o começo dos anos 1930 até o fim da Segunda Guerra Mundial, possa ser interpretado como mero preconceito, como simples ideologia ou mesmo como um “truque” de um partido político para ascender e se manter no poder. Para examinar as teses desses dois autores, começa-se pelo segundo mencionado

Após o final da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha atravessou um período econômico muito difícil, como intensas lutas sociais, em particular, com um aguçamento do conflito de classe entre a burguesia e os trabalhadores, o qual se inscreveu na memória dos alemães em geral e se tornou inconsciente, manifestando-se assim como angústia, desalento e uma grande raiva. Pairava no ar um saudosismo de uma nação que fora poderosa no passado quando vigorava o Império Alemão, mas que agora, em face da realidade democrática da República do Weimar (1919-1933), se apresentava com um cotidiano de derrotas e humilhações.

Essa situação foi então apropriada já no começo da década dos anos 1930, como traumática, um estado de desordem que o povo alemão precisava superar. O partido nazista atuou, assim, por meio de um discurso unificador baseado na fala de um grande chefe que dita o que é verdadeiro sobre a realidade social e sobre o que é certo fazer para que esse povo pudesse retomar um destino que supostamente lhe cabia. A nação alemã desejou então – por este meio autoritário e, mesmo. totalitário – reencontrar-se com um futuro mais próspero, mais harmônico e mais grandioso.

Para atingir esse objetivo, o partido nazista atuou por meio de uma intensa propaganda anticomunista e antissemita na formação do imaginário do povo alemão com a finalidade de fornecer uma justificação, obviamente fantasiosa, para as desastrosas ocorrências que se observaram no passado recente dessa nação europeia.

Não se tratava, segundo Zizek, de apreender um trauma que fora engendrado pela crise econômica e social da década dos anos 1920, com a finalidade superá-lo. De fato, ele ocorre só depois. Diferentemente, tratou-se de reviver e reelaborar a experiência desastrosa como um trauma por meio de um discurso de poder total que visava, sem ir às causas reais, superar os impasses da situação da Alemanha. O método de ação que correspondia a esse discurso profundamente antidemocrático, só podia ser a violência contra supostos “inimigos” da nação.

É, pois, com essa perspectiva que Zizek apreende o antissemitismo. Ele aparece, então, como uma transfiguração da luta de classes. O antissemitismo “reifica” (corporificando-o num grupo particular de pessoas) o antagonismo inerente à sociedade: ele trata a “judeidade” com a Coisa que, a partir de fora, invade o corpo social e perturba o seu equilíbrio. O que acontece na mudança da posição de estrita luta de classes para o antissemitismo fascista não é apenas uma simples substituição de uma figura do inimigo (burguesia, classe dominante) para outra (judeus).

Eis que a lógica da luta é totalmente outra. Na luta de classes, as próprias classes fazem parte de um antagonismo que é inerente à estrutura social, ao passo que, para o antissemita, o judeu é um intruso estrangeiro que causa o antagonismo social. De modo que, para restaurar a harmonia social, a única coisa que é preciso fazer é aniquilar os judeus.

Para Zizek, portanto, o antissemitismo é a posição do judeu como personificação do capitalista posto como um invasor indesejado e pernicioso numa sociedade que é apresentada como íntegra em potência. Ora, Postone –  no artigo “Antissemitismo e nacional-socialismo”[1] – apresenta uma tese que difere da contribuição de Zizek.

O seu ponto de partida é que o Holocausto tinha um sentido de missão ideológica e, de modo mais importante, caracterizava-se “por uma ausência de funcionalidade”. Os judeus não foram exterminados por razões econômicas, militares ou mesmo por excesso de fanatismo. Eles foram exterminados fria e sistematicamente porque eram judeus. Ora, isto leva à pergunta: por quê?

Nota ele, em primeiro lugar, que os judeus passaram a ser representados como a personificação, algo misteriosa, de um poder intangível, abstrato e universal. Ora, esse poder, para Postone, consistia simplesmente no poder do capital, o sujeito automático da sociedade moderna. Eis que tal poder disruptivo, por meio de um processo de transferência inconsciente, mas manipulado conscientemente pelos fascistas, foi associado ao povo judeu. Na visão do povo alemão, eles passaram então a ser vistos como se fossem a encarnação viva da ganância, da desmedida, do lucro sem trabalho, da desorganização da produção. Note-se que isto é possível porque o capital se encontra sempre “desaparecido” nas formas concretas por meio das quais se manifesta.

Os judeus, segundo argumenta, já não eram simplesmente considerados como meros representantes do dinheiro. O antissemitismo tradicional agora passara a ser revestido de um desejo de aniquilação total. Agora, esses semitas são responsabilizados pela crise econômica e social avassaladora – desemprego maciço e mesmo uma hiperinflação – pela qual passara a sofrida Alemanha. São identificados com as mazelas do processo de industrialização e de urbanização, tornando-se responsáveis fantasmáticos pelo declínio das classes e estratos tradicionais e pelo surgimento de um proletariado industrial cada vez mais organizado e exigente.

Eis o que diz Postone: “Quando se examina as características específicas do poder atribuído aos judeus pelo antissemitismo moderno – abstração, universalidade, mobilidade – é impressionante que elas sejam todas características da dimensão de valor das formas sociais analisados por Marx. Note-se que essa dimensão, tal como o suposto poder dos judeus, não aparece como tal, mas comparece sempre por meio de um veículo material e concreto, a mercadoria [e, é preciso completar, o dinheiro, formas aparentes e sucessivas do capital em processo de valorização].

O abstrato e o concreto se fundem na mercadoria de tal modo que ela se torna, no dizer do próprio Marx, algo “sensível suprassensível”. Mas não é assim que ela se afigura no mundo cotidiano. Como essa contradição é insuportável para o senso comum, a mercadoria só pode ser apreendida por ele por meio de formas de pensamento que a deslocam para tentar aboli-las.

Nessa perspectiva, por meio de uma dissociação entre o concreto e o abstrato, tornou-se possível assimilar o concreto ao povo alemão e o abstrato ao povo judeu. Desse modo, as conquistas materiais do capitalismo, assim como as máquinas, a tecnologia, as fabricas aparecem como realizações do espírito disciplinado, trabalhador e criativo do primeiro, enquanto as desordens, as crises e os seus resultados, assim como o espírito mesquinho do individualista burguês, são postos nas costas do segundo. O antissemitismo faz, portanto, um corte na sociedade, separando os “bons” dos “ruins” falsamente, mas a partir de uma duplicidade dialética realmente existente.

Segundo Postone, essa dissociação é possível devido ao próprio modo de ser da sociabilidade capitalista que se apresenta não como relação social direta, mas como “relação social de coisas”. Essa configuração dá origem, segundo Marx, ao fetiche da mercadoria que, em síntese, consiste numa confusão entre a forma da relação social – a forma de valor cuja substância é o trabalho abstrato – e o suporte dessa forma, ou seja, o valor de uso que é gerado pelo trabalho concreto.  Essa confusão, como se sabe,é inerente à prática social – e não consiste em um mero engano subjetivo.

A contradição interna à mercadoria entre valor e valor de uso se desdobra nos mercados numa relação externa entre a forma relativa e a forma equivalente. Desse modo, o duplo caráter de valor da mercadoria aparece, por um lado, como valor de uso concreto e, por outro, como dinheiro, representante do valor,portador de uma abstração real. Ora, segundo ele ainda, essa “antinomia costuma ser recapitulada por meio da oposição entre as formas de pensamento positivistas e românticas”.

As primeiras tomam o concreto da mercadoria como mero concreto, como objetividade material, caindo assim, implicitamente, no fetichismo. As formas sociais aparecem, então, para elas, como meramente naturais. As românticas, por sua vez, separam o concreto do abstrato inerente à mercadoria, procurando expulsar o fetichismo do mundo real.

Assim, elas “permanecem reféns da antinomia produzida pelas relações sociais capitalistas”. Procuram, então, salvar o concreto da abstração que o subjuga na prática social. Promovem uma revolta contra o dinheiro na forma de capital financeiro e contra aqueles que supostamente personificam o dinheiro nessa forma, ou seja, os judeus. É vestindo a capa do romantismo que o nazismo pôde aparecer aos olhos alemães como anti-burguês e mesmo como socialista.

A questão que se põe agora é saber se essas explicações, que diferem entre si, mas sem deixar de se sobreporem em parte, podem ser usadas para apreender de algum modo a ascensão dos “neofascismos” contemporâneos. Aqui vai se supor que sim com a finalidade de levantar uma hipótese sobre um caso particular: a vitória da extrema direita na última eleição para a presidência da república no Brasil.

Desde logo, é fácil de ver que a explicação de Zizek não ajuda a compreendê-la já que a fração social diabolizada nesse último processo político foram os militantes de um partido político de centro-esquerda e, com eles, a esquerda em geral. Ademais, o neofascismo no Brasil adotou uma postura conservadora em termos de costumes e se associou ao neoliberalismo, uma ideologia que se apresenta como capitalista por excelência.

Ora, ainda que Postone tenha invocado a particularidade histórica do povo judeu no interior da Europa para explicar o fato de que fora marcado como representante da dimensão irracional do movimento do capital, julga-se aqui que a sua tese pode ajudar na tarefa de entender o caso brasileiro. Argumenta-se, em suma, que a dissociação entre o abstrato e o concreto que coexiste como unidade contraditória nas formas sociais capitalistas, esteve também presente nesse caso. Eis que a dimensão negativa do capital sob as formas da corrupção e da licenciosidade pôde ser associada aos militantes de esquerda e, em particular, aos membros do Partido dos Trabalhadores.

Tanto uma com a outra dessas condutas são inerentes ao capitalismo, em particular tal como este se apresenta no Brasil. A corrupção, além de ser endêmica nesse modo de produção, havia se tornando aí, há bastante tempo, uma forma geral de mediação entre a política e o poder econômico. Quase todos os grandes partidos participavam desse processo de financiamento, mas quase só o PT foi estigmatizado como um partido corrupto que havia levado esse delito a novos patamares. O anátema, com o auxílio da grande imprensa e da operação Lava Jato, foi-lhe então colado na fronte e desse modo ganhou o imaginário social.

A liberação dos costumes sociais das travas repressivas é, sim, um valor da esquerda há muito tempo. Ocorre que ela se desenvolveu enormemente nas últimas décadas sob a égide da forma mercadoria. A necessidade de criar mercado para os bens supérfluos, consumidos pelas classes de maiores rendas, levou o capitalismo a manipular as pulsões sexuais e o narcisismo de uma forma cada vez aberta e cínica. Por conseguinte, ao invés de uma liberação saudável, ocorreu uma falsa que desandou com frequência na corrupção dos costumes e no espraiamento da licenciosidade. Ora, este estigma foi também colado na testa dos movimentos de esquerda em geral porque eles não se opõem hipocritamente a liberação desvirtuada e porque a repressão é tida como ainda pior.

Em suma, se o antissemitismo foi o mote para o horrendo Holocausto do povo judeu, a lógica de dissociação em que está baseado pode reaparecer na sociedade contemporânea. Ela pode atuar para promover a ascensão de extremismos de direita que cultuam a violência – verbal e material – como forma de ação política. Tais movimentos sempre visam conter as transformações sociais, promover regressões políticas, assim como perpetuar os privilégios de classe que perderam já qualquer funcionalidade histórica.

*Eleutério Prado é professor aposentado e sênior do Departamento de Economia da FEA-USP.

Notas

[1] Postone, Moishe (1986), Anti-Semitism and National Socialism. In: A. Rabinbach& J. Zipes (eds.) German and Jews since the Holocaust. New York: Homes and Meier, p. 302-314.

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