O Leviatã e o direito moderno

Imagem: Yayoi Kusama
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Por ARI MARCELO SOLON*

Considerações sobre o conceito de soberania

Qual a relação d’O Leviatã com o Direito Moderno? Acabou de ser publicado o livro O Leviatã em primeiro lugar é a expressão da Reforma (Erst Leviathan ist der Ausdruck vollendeter Reformation). Essa é a teoria de Thomas Hobbes em sua obra O Leviatã. Thomas Hobbes viveu numa época de guerras religiosas, de um lado havia a monarquia dos Stuart, precedida pela monarquia de Elizabeth, e do outro lado o Parlamento com os dissidentes protestantes, os independentistas e Oliver Cromwell, que queriam banir a monarquia da Ilha, que queriam implantar uma república livre, o Estado democrático de direito.

Qual a teoria da soberania de Thomas Hobbes? É a teoria moderna; na teoria da soberania moderna não é a Igreja que é soberana como na Idade Média, é o Estado. Mas que Estado? Aí que está o problema, estamos na Modernidade, e não, na Idade Média. Alguns Estados viraram protestantes, outros, anglicanos, como a monarquia dos Stuart; outros viraram católicos, como a Espanha. Isso gerou uma guerra religiosa sem precedentes. Qual a teoria de Thomas Hobbes? A teoria dele é a separação do Estado e da religião de uma maneira muito tênue; ele dizia que cada Estado professa a sua religião oficial, mas, isto que é moderno e tem a ver com a sua teoria da sua soberania: “innen”, intimamente, cada cidadão tem o direito de praticar a religião a que pertence.

Pela primeira vez na história, não temos uma teoria do Estado laico, mas, uma teoria de um Estado que tem uma religião oficial, mas permite a reserva mental do cidadão; deve-se respeitar o monarca e a sua religião, mas, em sua casa, você pode exercer a sua religião. Mas, para Carl Schmitt, essa é a chave da teoria da soberania: a teoria da soberania é uma teoria que não é positivista, relativista nem nietzschiana, é uma teoria neutra, mas que garante a liberdade individual de consciência.

Isso não existia na Idade Média. É o tema protestante. Graças aos protestantes é que nós tivemos essa nova teoria da soberania e quem diz isso é Carl Schmitt, um jurista conservador católico. Eles neutralizam as guerras de religião, facultando: cuius regios, eius religios (dependendo do rei, essa é a religião). Isso é uma neutralização total, a Igreja Medieval não concorda com isso, tanto que Thomas Hobbes chama ela de o Reino da escuridão; ela não concorda com essa neutralização, quer que toda a Europa seja católica. Aí vem Carl Schmitt, e aí vemos o motivo de ele não ser niilista, e diz que tem um denominador comum de todos esses Estados: the Jesus is the Christ, Jesus é o Cristo, ele é o Messias, tanto faz se você é protestante ou anabatista. Essa é a teoria moderna da soberania e é o que (Walter) Benjamin usa no livro Origem do drama trágico barroco alemão.

Qual a diferença entre um jurista conservador e um filósofo marxista esotérico? Walter Benjamin usa isso para caracterizar a Modernidade, ele usa o exemplo de Carl Schmitt: de um lado, o soberano moderno, ele tinha a espada do rei, e, do outro, ele tinha o símbolo do bispo, o que é uma inversão da imagem hierocrática da Igreja Medieval, que tinha a mesma coisa, mas em cima o bispo e de baixo o rei. Thomas Hobbes coloca ambos do mesmo lado; não existe soberania da Igreja superior à do monarca. Mas, Walter Benjamin, como marixsta, acha que, mesmo a modernidade sem escatologia melancólica, os dramas medievais melancólicos vão virar óperas, literatura expressionista e, no fim, uma peça de Bertold Brecht, uma peça que faz com que a plateia tome conta. Ele vê esperança, paradoxalmente, com o fim teoria da soberania.

Carl Schmitt fala uma coisa que ninguém entende porque precisa estudar economia na faculdade de Direito: este conceito de soberania inglês, que é o indecisionismo de Hamlet, foi assim por conta da situação econômica da Inglaterra e gerou-se um conceito diferente de soberania; o conceito de soberania inglês é o conceito pirata, de que a Inglaterra é uma ilha, não, uma Estado continental com o cetro, é um barco pirata. Por quê?

Jaime Stuart, que foi sucessor da rainha Elizabeth é filho de Mary Stuart, católica, mas o reino herdado de Elizabeth tinha derrotado a Espanha católica, a Invencível Armada; Jaime não poderia reconverter o reino, então ele teve que aceitar a Igreja Anglicana como a oficial. Mary Stuart foi morta por um amante protestante e, quando Shakespeare fez essa peça no Globus Theatre, ele fez três edições: uma primeira em que Hamlet logo vinga o pai, a segunda em que ele exita e a terceira em que ele exita mais ainda. Por quê? Porque o rei estava assistindo à peça e ele, Shakespeare, poderia ter chamado Jaime de um soberano que não decide nada, pois ele não se vingou da mãe; é o tabu da vingança.

Carl Schmitt era um jurista católico, como os da Opus Dei, mas ele era um grande intelectual e fazia análises materialistas da história, realistas, mas não dialéticas, não tinha esperança, salvação nem revolução socialista; então Schmitt falava: a peça de Shakespeare em suas três edições mostra a insegurança de um rei que não pode executar a vingança, pois ele seria chamado de um rei sem segurança. Esse é o materialismo burguês, que não é ruim. Quem é um burguês materialista? O professor de Carl Schmitt, Max Weber; é muito boa a história materialista burguesa, só não tem um happy ending. Como Max Weber falou sobre happy endings: quem quiser ter uma iluminação que vá ao cinema. Esse é o materialismo burguês, que não existe no Brasil.

Para explicar o título do livro. Na linha dos independentistas britânicos, existem alguns que fugiram e fundaram a América por não terem liberdade religiosa dentro do país protestante, eles eram perseguidos. Na história bíblica, tem o Livro de Jó. Mesmo quem critica a Bíblia diz que não há coisa mais perfeita que o Livro de Jó, pois ele não parece um livro bíblico, não se sabe onde ele se passa. Jó quis dizer que apanhou muito de Deus, e, em um determinado monólogo, ele percebe que Deus é justo, e diz: ninguém se compara, nenhum homem na terra, a Leviatã. E o que é o Leviatã? É um dragão, mas Hobbes acredita que é uma baleia. E havia outro bicho no Livro de Jó chamado Behemoth (o símbolo da revolta democrática do parlamento), um rinoceronte; os dois eram comparados para saber quem era o melhor. Carl Schmitt era um materialista burguês, não existe happy ending para ele. Na discussão para saber quem é o maior monstro bíblico, Carl Schmitt diz que o Leviatã esmaga Behemoth e este faz o mesmo com os dois morrendo. Ele acredita na Bíblia, mas não acredita na dialética materialista.

Na teoria da soberania perfeita, Thomas Hobbes dizia, existe um Estado, ou protestante ou católico, e o indivíduo pode professar sua fé. Aí vieram os esotéricos, interpretaram o mito do Leviatã no sentido dialético materialista. O que diz Spinoza ao interpretar Hobbes no sentido democrático e liberal? No que se transforma o interior, que era livre em Thomas Hobbes para professar sua fé em casa? Aquilo que Antígona tinha, e não podia exercer (fazer uma ADIN). No que se transforma isso para Spinoza? O que Napoleão deu à Alemanha e que deixou Hegel feliz? O interior psíquico se torna direito, direito da liberdade religiosa, é esse o perigo de Spinoza para Carl Schmitt, Spinoza pegou essa interioridade e transformou concretamente e estendeu a todos os direitos humanos.

Essa é a crítica que Carl Schmitt faz a’O Leviatã, o gigante com pés de barro porque tinha um flanco para os esquerdistas entrarem e transformarem essa baleia em um peixe de aquário fraquinho. Carl Schmitt concordava que deveria haver a liberdade (de crença), uma liberdade interior, para que se acabassem as Guerras de Religião, mas depois transformaram ela em uma liberdade fundamental, a liberdade do Estado democrático de direito, o que Schmitt critica. Aprofundando essa ferida do Leviatã: Marx. E aprofundando ainda mais essa ferida, Ernst Bloch. Depois, Carl Schmitt questiona como um marxista foi escutado por católicos e protestantes em assuntos teológicos.

(Em suma,) Hamlet é um drama do Direito. Para Carl Schmitt, é um drama de uma soberania ensaiada na Inglaterra, mas que não funciona porque o conceito de soberania foi varrido para o continente; o conceito de soberania não é um conceito essencial do Estado, pode ter ou não. Segundo Carl Schmitt, a soberania do drama elizabetano foi exportada para a Alemanha e a Inglaterra ficou sem soberania. Por quê? Quem é o soberano da Inglaterra? Qual a teoria de Carl Schmitt sobre a soberania da Inglaterra? Quem manda na Inglaterra?

A soberania inglesa segundo Carl Schmitt é a soberania de um navio pirata, essa soberania vai levar à Revolução Industrial. Karl Marx não discorda disso, ele acha que Inglaterra não tem soberania jurídica, tem soberania econômica. Toda essa teoria d’O Leviatã virou a teoria dos Estados continentais. Por que a teoria de Thomas Hobbes não serviu para a Inglaterra? O Leviatã é a expressão da Reforma completa, esse é o modelo da soberania do Carl Schmitt, que é um conceito decisionista neutro, mas não, positivista, ou seja, contra a soberania da Igreja Católica. Para Thomas Hobbes, o soberano não é o Parlamento (Behemoth), é o Leviatã (o reinado) porque ele coloca um monarca que acaba com as Guerras de Religião, mas permite uma liberdade interna.

Carl Schmitt fica muito feliz com Hobbes, mas critica esse “mas” porque depois Spinoza e Marx se infiltram no Leviatã por meio dos pés de barro. A liberdade de Antígona não era um direito, o que só aparece com Napoleão segundo Hegel. Hegel fala que Paulo criou abstratamente uma liberdade, mas não, uma liberdade jurídica, tanto que ele mandava o escravo obedecer o senhor.

*Ari Marcelo Solon é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prismas).

 

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