O (neo)liberal, o conservador, o destruidor

Wols (Alfred Otto Wolfgang Schulze), [sem título], 1988
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Por JEAN PIERRE CHAUVIN*

A falta de civilidade juntou-se a canalhice dos atos e à desfaçatez no discurso

De vez em quando, a gente precisa vir a público para reiterar o óbvio. Hoje cedo, deslizando pelo feed de uma rede social, topei com uma página (patrocinada) que se autointitula conservadora. A publicação anunciava uma motociata protagonizada pelo inominável no Rio Grande do Norte, no pior estilo Mussolini. Afora o incômodo de ver o sujeito na tela a sorrir e acenar de cima de uma pick-up (símbolo maior do agronegócio), o pior foi constatar que cinquenta e uma mil pessoas haviam referendado a postagem com likes (o alento seria creditar a maior parte à ação de robots).

Após dois ou três segundos, a primeira providência foi denunciar o spam. A segunda, bloquear a página. A terceira, postar um mini-desabafo na mesma rede social, sugerindo que a autodenominação “conservador” não se aplica a quem não tem projeto algum para o país e, independentemente da efetiva classe social a que pertence, odeia o “povo”, detona qualquer forma de assistência e enxerga aos adversários como inimigos mortais. Sim, porque nomear os sujeitos que estão a fazer cosplay de fascistas de “conservadores” é um senhor eufemismo: eles são destruidores.

Longe de mim defender (neo)liberais e “conservadores”: essa gente torpe, careta, hipócrita e fominha que, em nome de abstrações quaisquer (religião, moral, tradição, costume, hierarquia) enxerga o “seu” bairro, a “sua” cidade e o “seu” país, onde (não) vive, como se fosse território particular e exclusivo. A questão é que, pelo menos desde 2013, este pseudopaís, esta república fake resolveu concentrar e expelir tudo o que há de biliar sob a forma de “protestos” acéfalos que serviram aos despropósitos de setores financiados por fundações e megaempresas internacionais (ou alinhadas com o ultraliberalismo endógeno). Haja chá de boldo para quem é capaz de ressentir as dores próprias e alheias.

Não custa lembrar outro fenômeno: os setores da população que idolatram um mitômano, supondo participar (com benesses) do seu canhestro rebanho, agem de modo muito similar aos “patriotas” que vendem o corpo dos habitantes e a alma do território nacional a especuladores bilionários, quase sempre sediados nos países-potência. É como se a sina da “pátria” fosse se submeter ad infinitum aos demais por conta de uma impotência crônica (perdão: não me refiro a qualquer campanha em favor de próteses penianas, quanto menos ao “discurso” monstruoso, “proferido” no último Sete de Setembro).

A impostura do mandatário dialoga com a arrogância dos seus eleitores. Até pouco tempo, a obsessão pela distinção social era um traço que moldava as chamadas classes médias. O que assistimos, agora, é uma pantomima feita por uma massa de pessoas em condições mais ou menos humildes que parecem necessitar de uma figura abjeta como pai (Freud explicou o primitivismo da religião patriarcal e monoteísta em O Futuro de uma Ilusão). Resta saber a que “conservação” os destruidores e seus cúmplices se referem: seria ingenuidade supor que eles se limitariam a manter as coisas ruins tal como já estão.

Lastimemos. A falta de civilidade juntou-se a canalhice dos atos e à desfaçatez no discurso. Eles que não me venham falar em “bons-costumes”, “liberdade” e justiça” – três quimeras que aqui nunca houve. Sob seu guarda-chuva de cristal forrado de hipocrisia, em nome de um deus que contempla (imóvel como sempre) a lama, a fome, a associação com as milícias, a retirada de direitos, o negócio predatório e a corrupção, a tarefa de contradizê-los e atirar pedras seria ainda mais fácil.

Do caixa dois aos imóveis comprados com “dinheiro vivo”, passando pelas rachadinhas, negociatas no congresso, depósitos e cheques milionários de terceiros, é uma afronta que os seguidores do Führer subtropical estejam a elogiar a “sinceridade” do mitômano e a “denunciar” qualquer forma de corrupção (moral e financeira) que não seja a deles mesmos.

Nem perderei tempo em recordar as seiscentas e sessenta mil mortes, que poderiam ter sido evitadas se a vida fosse mais importante que a megalomania e egoísmo do sabemos-muito-bem-quem.

*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Mil, uma distopia (Luva Editora).

 

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