O Brasil fraturado

Imagem: Mohamed Abdelsadig
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Por VALERIO ARCARY*

Ainda há muita incerteza sobre o desfecho das eleições

“Em tempo de guerra não se limpam armas” (Sabedoria popular portuguesa).

Lula obteve uma média de 44.5% de menções positivas ao longo do debate de domingo à noite, Jair Bolsonaro obteve 36.5%. Esta é a régua que importa: a repercussão do debate. Numa análise técnica, Lula ganhou o primeiro “round” por larga vantagem, ao ser arrasador na denúncia da irresponsabilidade do governo durante a pandemia. Empatou no segundo bloco de perguntas dos jornalistas. Perdeu no terceiro, em função do descontrole do tempo.

Lula, corretamente, decidiu não baixar o nível, mas não conseguiu encaixar uma resposta sobre a corrupção. Jair Bolsonaro, como era previsível, desceu até o fundo do poço do “vale tudo”: usou o corpo para tentar intimidar Lula, repetiu à exaustão que o PT roubou na Petrobrás, abusou dos bordões demagógicos contra o aborto, ideologia de gênero e legalização de drogas, e tentou aterrorizar com a ameaça do fechamento de igrejas e prisão de religiosos.

Lula, visivelmente, cansado, teve um grande momento quando defendeu a dignidade dos trabalhadores que vivem em favelas. Faltam treze dias, e o mais importante é que Lula mantém a dianteira. Mas ainda há muita incerteza sobre o desfecho das eleições.

A segunda semana do segundo turno terminou com as pesquisas indicando que Lula mantém uma vantagem de 5% sobre Bolsonaro, o mesmo patamar da semana anterior no DataFolha. Mas na pesquisa mais recente do IPEC, dia 17 de outubro, nos votos totais, Lula com 50%, menos um, e Bolsonaro 43%, mais um, teria ocorrido uma pequena oscilação favorável a Jair Bolsonaro, também, nos votos válidos, 54% a 46%.

Os dados são que 95% dos eleitores de Lula estão decididos, contra 93% de Bolsonaro, e só há 1% de indecisos. A vantagem de Lula se sustenta numa ampla maioria entre os que têm renda de até dois salários mínimos mensais. Tudo sugere que a taxa de abstenção terá importância decisiva. Historicamente, ela é maior nos segundos turnos. A luta para que haja transporte público gratuito ganhou máxima importância. É possível vencer.

Mas Jair Bolsonaro está na frente no Sul (59% a 41% sobre Lula) e no Centro-oeste (os mesmos 59% a 41%), um empate técnico no Sudeste, com vantagem quantitativa para Bolsonaro (52% a 48%) e, também, no Norte (51% a 49%) e vitória esmagadora de Lula no nordeste (72% a 28%). O país está, portanto, além de dividido, socialmente, fraturado, regionalmente.

Lula ganhou 41% dos eleitores de Simone Tebet, Jair Bolsonaro 29%. De Ciro Gomes, Lula ganhou 40% e Jair Bolsonaro 31%. Se não desconsiderarmos que a margem de erro das pesquisas é de 2% para mais ou para menos, na pior hipótese, a vantagem de Lula é de apenas 1%. Existe, portanto, incerteza.

Os votos em disputa são uma minoria ínfima. A campanha se desenvolve em cinco frentes. Nas escolhas da tática política, na articulação de apoios, na mobilização nas ruas, na agitação das redes sociais e nos horários de propaganda nas rádios e televisões. O decisivo será a tática política, não a “lacração”.

Jair Bolsonaro teve as previsíveis adesões de Romeu Zema, Rodrigo Garcia e Sergio Moro. Lula ganhou o apoio de Simone Tebet, de lideranças históricas do PSDB como Fernando Henrique e José Serra, além do PDT, e um suspiro de Ciro Gomes. Nesse terreno se fortaleceu. A superioridade de Lula nas ruas é, também, imensa, neste momento. As caminhadas em Campinas e Belo Horizonte, no Complexo do Alemão e em Salvador, além de Aracaju e Recife foram avassaladoras.

Mas é verdade que ainda estamos aprendendo como se faz a luta contra a extrema direita. Qual deve ser a linha? Uma maioria do ativismo está apoiando a tática sensacionalista de usar declarações absurdas e abjetas, estúpidas e estapafúrdias de Jair Bolsonaro contra ele mesmo. Mas a guerra suja nas redes sociais não diminui a centralidade da política. Ela deve estar centrada na defesa de propostas que possam inspirar esperança política, ou na reivindicação do passado? A proposta, por exemplo, de isenção de imposto de renda para os assalariados que ganham até cinco mil reais foi uma inflexão muito importante, infelizmente, não explorada no debate. Associada à defesa de imposto sobre as grandes fortunas, e outras, sinalizam um caminho.

Os governos do PT geraram o lulismo nas camadas populares. Essa é a chave para compreender a gigantesca liderança de Lula no Nordeste que pode decidir a vitória sobre Jair Bolsonaro. No Brasil a classe trabalhadora se divide em duas grandes partes. De um lado, são um pouco mais de trinta milhões de assalariados com carteira assinada no setor privado, mais concentrados no Sudeste e no Sul, e treze milhões de funcionários públicos.

De outro lado, estão dez milhões de assalariados com patrão, mas sem contrato e 25 milhões que trabalham por conta própria, nas mais variadas atividades. O peso deste semiproletariado é imenso em todo o país, maior no Norte e no Nordeste. O PT se transformou em partido com influência de massas, nos anos 1980, a partir da mobilização da classe trabalhadora, sindicalmente, organizada. Sempre foi mais forte no Sudeste antes de 2002.

O lulismo passou a ser de massas a partir da experiência prática de melhoria das condições de vida com os governos Lula e Dilma Rousseff. Mas nos últimos dez anos o país mudou. Enquanto, na escala nacional, sobretudo nas regiões mais industrializadas, a economia estagnava, num eixo que recorta o Brasil do interior de norte a sul, vinha um forte crescimento impulsionado pela valorização da exportação de grãos e proteínas.

Os polos, historicamente, mais dinâmicos do litoral, entraram em decadência. Do sul da Amazônia, passando pelo centro-oeste de Mato Grosso e Goiás, do oeste paulista e paranaense, até Santa Catarina e Rio Grande do Sul, o agronegócio arrasta a massa da burguesia em função da recente prosperidade. O surgimento de uma extrema direita neofascista de massas se apoia, além do giro à direita das camadas médias, também, nesta fratura regional.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).

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