O desafio do bolsonarismo

Clara Figueiredo, série_ Brasília_ fungos e simulacros, super quadra, 2018
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Por DAVID MACIEL*

Não basta vencer Bolsonaro, é preciso também reconquistar a iniciativa política

Os resultados do 1º turno das eleições presidenciais, realizado no dia 2 de outubro, revelam processos que estão em curso na sociedade brasileira há algum tempo e indicam tendências políticas e ideológicas extremamente preocupantes para as classes trabalhadoras, os movimentos sociais e as organizações de esquerda, particularmente aquelas da esquerda socialista.

O maior realce vem da votação maciça dos candidatos de extrema direita em todas as esferas de disputa, conquistando espaço político e institucional maior do que nas eleições anteriores, com grande peso na disputa para o segundo turno e na luta política futura. Apesar do descalabro econômico, político e moral do governo de Jair Bolsonaro, este conquistou uma votação surpreendente na disputa presidencial, particularmente junto aos setores proletarizados, enquanto o bolsonarismo e seus aliados avançaram de maneira expressiva nos governos estaduais, na Câmara dos Deputados e no Senado.

Tais resultados mostram a grande inserção da perspectiva político-ideológica conservadora e mesmo fascista em largas parcelas da população, revelando um enraizamento que coloca em xeque a tática e a estratégia de luta da esquerda da ordem e da própria candidatura Lula. Enquanto a campanha bolsonarista partiu para o enfrentamento, fazendo uso e abuso das vantagens que lhe foram concedidas pelo “estado de emergência” para mobilizar sua base e intimidar a oposição – ameaça golpista, violência política, assistencialismo eleitoreiro, fake news, “voto de cabresto” miliciano, evangélico e/ou empresarial –, a candidatura de Lula se limitou a operar nos marcos da ordem, apresentando-se como fiador do “sistema”, das “instituições”, como se estas, completamente esgarçadas, ainda gozassem de alguma legitimidade junto à massa da população.

Diante do desafio apresentado pelo bolsonarismo, a campanha lulista optou pelo “quietismo”, não pela mobilização de massas e pela organização de base; costurou alianças “pelo alto” com as forças e lideranças de centro-direita, em acelerado processo de derretimento eleitoral, tratando os movimentos sociais e organizações de esquerda como meros apêndices da “grande aliança”; prometeu a restauração de um passado idealizado e historicamente superado, ao invés de apresentar um programa tanto de reversão das medidas autoritárias, das contrarreformas e do neoliberalismo extremado, quanto de ampliação dos direitos políticos, sociais e trabalhistas dos trabalhadores.

Nas semanas finais da campanha para o 1º turno, Lula apelou para o discurso monocórdio do “voto útil” pela defesa do “Estado democrático de direito”, tema completamente abstrato para a maioria da população e que não condiz em absoluto com a realidade política e institucional do país desde o golpe de 2016.

Essa tática eleitoral se insere numa estratégia política de acomodação com as mudanças políticas, institucionais e econômicas adotadas desde o golpe de 2016, e mais ainda com o próprio bolsonarismo, à medida que aposta na conciliação de classes e na conquista do governo por dentro da própria institucionalidade autoritária atualmente vigente. Para tanto, foi preciso frear a mobilização popular pelo impeachment de Jair Bolsonaro e contra a escalada fascistizante e neoliberal dirigida pelo governo e pelo Centrão ao longo deste ano, permitindo assim a presença de Lula na disputa eleitoral como “adversário ideal” para fazer contraponto a Jair Bolsonaro.

Além de impotente para confrontar o avanço do bolsonarismo e a escalada fascistizante/neoliberal em curso, esta estratégia remete para as calendas gregas a necessária superação política, institucional e econômica do golpe de 2016, fortalecendo sua legitimação política pela via eleitoral e permitindo apenas “correções” pontuais aqui e acolá. Correções que não alteram a correlação de forças em favor dos trabalhadores, nem modificam o atual modelo econômico de ultraprecarização e superexploração do trabalho, primarização econômica, acirramento da dependência e pilhagem dos bens e recursos públicos e naturais sob o garrote do capital financeiro.

No entanto, apesar das contradições entre as frações burguesas bolsonaristas e não bolsonaristas, para o conjunto do bloco no poder esta situação é extremamente confortável, pois nestas circunstâncias a possibilidade de legitimação política e de aprofundamento das medidas autoritárias, das contrarreformas e da política econômica neoliberal se fortalece, independentemente do resultado do segundo turno.

Na estratégia burguesa, combinam-se tanto a licença dada a Jair Bolsonaro pelo “estado de emergência” para que cometa crimes eleitorais, mobilize sua base para a violência política e vitamine sua candidatura, quanto a pressão sobre a candidatura Lula para que mantenha o ajuste fiscal, o teto de gastos, as contrarreformas neoliberais, o tripé da politica econômica (superávit primário, regime de metas de inflação e câmbio flutuante) e outras medidas que favorecem a exploração dos trabalhadores, a acumulação capitalista e a privatização de bens, recursos e direitos em nome da manutenção do “Estado democrático de direito”! Ou seja, para o bloco no poder, o curso histórico iniciado em 2016 não tem volta, deve ser legitimado, mantido e aprofundado.

Diante deste quadro e dos resultados do primeiro turno, torna-se evidente que não é possível combater a guerra total movida pelo bolsonarismo, nem a perspectiva burguesa de legitimação do atual status quo, com acordos de gabinete, adesão de artistas e celebridades ou reminiscências do passado. É preciso que os trabalhadores, movimentos sociais e organizações de esquerda transformem a campanha eleitoral num amplo movimento pelo Fora Bolsonaro e contra a legitimação do golpe de 2016 por meio da eleição de Lula e da criação de comitês populares permanentes, que não se desarticulem após as eleições.

Portanto, não se trata apenas de eleger Lula e assim evitar a vitória de Jair Bolsonaro e impedir a continuidade de um governo desastroso e absolutamente hostil aos mais comezinhos interesses dos trabalhadores. Trata-se também de reconquistar a iniciativa política, retomar a mobilização de massas e avançar na organização de base, para que a crise capitalista e o golpe de 2016 sejam superados pela ampliação das liberdades democráticas e direitos sociais e pelo controle dos bens e recursos públicos pelos trabalhadores. As forças da esquerda socialista e os movimentos sociais estão chamados a cumprir esta tarefa histórica sem demora nem tergiversação.

*David Maciel é professor de história. Autor de História, política e revolução em Marx e Engels (edições Gárgula).

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