Carl Schmitt e a literatura

Eduardo Berliner, Aparição (Manifestation), 2016.
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Por ARI MARCELO SOLON*

Comentário sobre o livro recém-publicado de Andreas Höfele

O livro de Andreas Höfele é a primeira apresentação geral das relações de Carl Schmitt com a literatura. Nesse sentido, Andreas Höfele reconstrói a biografia intelectual de Carl Schmitt. Destacaremos, a seguir, apenas os livros que tiveram impacto no simbolismo jurídico.

 

O poeta Theodor Daubler e o reino do Anticristo

A oposição evidenciada pelo poeta Daubler em torno do anticristo ganha relevo a partir de um liberalismo da Ilustração, isto é, da secularização do pecado original e da felicidade de um pseudoreino celestial.

Carl Schmitt reflete acerca da figura de Daubler à luz da obra Nordlicht (A Aurora), por meio do qual a temática do anticristo ganha relevância, conforme vislumbra algumas passagens relevantes, como a do sermão do Santo Efraim, que afirma que a chegada do Anticristo provocará a apostasia de inúmeros indivíduos antes da vitória definitva de Cristo.

É nessa figura do homem de diálogo, de alugém calmo, pacífico e um suposto “humanista” honesto, que Carl Schmitt buscará um adversário. Passa a ser diante de um homem que a todos agradará e que satisfará a pretensão por transcendência por meio de conversas sobre a espiritualidade, de uma dita “religião da humanidade”, ou seja, de uma “tolerância” transformada em indiferença, que o referido “inimigo” revela sua forma.

 

O bispo mágico Hugo Ball e a essência católica em Carl Schmitt

A resenha do livro de Hugo Ball, Carl Schmitts Politische Theologie, evidenciou a influência de Carl Schmitt em torno da concepção de filosofia do direito, que poderia ser considerada um triunfo da língua alemã e da legalidade, com uma precisão superior à de Kant e mais rigorosa, no campo das ideias, que um inquisidor espanhol. Hugo Ball afirma: “Ele experimenta o tempo na forma de consciência de seu dom.”

Ambos os autores se contrapuseram, sobretudo, à “realidade” moderna, em função da qual viam um inimigo em comum. Os intérpretes de Carl Schmitt, com frequência, diminuem ou sequer mencionam a aproximação entre os autores, ocorrida em 9 de setembro de 1924, a despeito da influência mútua que surgiu de tal conversa, de modo que a seriedade de Carl Schmitt enquanto um pensador da Realpolitik se mantém intacta diante do caráter excêntrico de Hugo Ball.

Com relação especificamente ao catolicismo, Hugo Ball reforçou a ideia de que o catolicismo seria a única força capaz de se contrapor à desintegração da tradição e, em Carl Schmitt, encontrou sua essência, por meio da qual representou uma reformulação drástica entre a racionalização e o irracional que lhe consumiam.

 

O Complexo de Otelo de Schmitt

Em sua trajetória, Andreas Höfele apresenta a relação de Otelo e Desdemona como um espelho das ansiedades de Carl Schmitt.

A figura da moura, filha de um senador, não lhe permitiu criar vínculos com ela, afinal, o casamento nada mais era, a seu ver, que um contrato civil, que foi consolidado, em seu caso, no ano de 1926. A anulação do divórcio referente a seu primeiro casamento com Pavla Dorotić, uma croata que fingiu ser condessa, não ocorreu, logo, ao casar com sua segunda esposa, Duška Todorović, teria sido excomungado em função da não dissolução do primeiro.

Carl Schmitt estava diante da situação na qual amava sua esposa, mas havia, por outro lado, uma Desdemona charlatã e que se apossou de seus bens.

 

O Epimeteu cristão segundo o poeta Konrad Weiss

Como figura mitológica, Epimeteu não é apenas um simplório. Ele pode ser descrito como expressando fé genuína. Ao contrário de seu irmão, Epimeteu não desafia os deuses. Em vez disso, ele aceita seus presentes de boa vontade e obedientemente, não importa o que aconteça.

Carl Schmitt foi considerado, por Weiss, o “Epimeteu cristão”, ou seja, diante da significância de seu próprio destino, sua visão de história e as implicações políticas, essa figuração contramoderna específica ganha destaque quando da adesão ao nazismo, em decorrência da abertura da caixa de Pandora. O resultado foi a admissão posterior de culpa, o que não significa uma figura simples, mas expressa uma fé genuína somada a uma forma fatalista do ponto de vista histórico-político.

 

Schmitt como o prisioneiro do levante de escravos de Benito Cereno

Na obra de Herman Melville, Benito Cereno encontra-se submetido ao poder dos escravos revoltosos, situação na qual seu poder de fala é removido. No momento em que Carl Schmitt assume o papel de Benito Cereno, encontra-se diante de um jüdisches Kampfsymbol, um símbolo diante do qual a insinceridade das afirmações ali presentes não mais pode ser atestada, afinal, seria possível afirmar que houve coerção para que agisse de determinado modo.

Haveria a possibilidade, então, de considerar que houve uma tentativa de Carl Schmitt se escusar do ocorrido no regime nazista, frente ao período do pós-guerra, mas não se restringe a isso. O mito de Epimeteu é peça central para a compreensão das múltiplas camadas interpretativas estabelecidas por Carl Schmitt.

 

Schmitt na barriga do Leviatã

Este simbolismo jurídico, em torno da figura do Leviatã, remete à disputa entre Carl Schmitt e Walter Benjamin diante da interpretação de Hamlet, de William Shakespeare.

Para Walter Benjamin, trata-se do auge do drama barroco cristão prenhe de alegoria e lutuosidade com a esperança messiânica em Fortimbrás, o rei da Dinamarca.

Por outro lado, Carl Schmitt compreende que não existe cristianismo no bárbaro Shakespeare, a não ser contra o judeu Shylock.

Hamlet, então, não é mais medieval cristão, mas também não é moderno no sentido europeu continental do Estado de Direito e a dúvida paira sobre esta vida jurídica moderna dos europeus ou a vida insular da soberania do navio pirata.

William Shakespeare, portanto, está fora da história jurídica europeia, à medida que não existe soberania jurídica, mas apenas economia mais poderosa que a continental pós-Vestfália.

 

Contra a interpretação pagã do mundo de Goethe por Blumenberg

Em sua autobiografia Aus meinem Leben: Dichtung und Wahrheit (A partir da minha vida: poesia e verdade), um dos volumes se anuncia com um dictum de grande perplexidade: nemo contra deum nisi deus ipse. O latim lança-o necessariamente em ambiguidade, da qual os mais dedicados esforços filológicos não conseguiram o resgatar, esforços esses que acabam por sobrepor texto e vida, poesia e verdade, em um efeito elíptico que apenas intensificou a pregnância da frase.

Na esteira de seu primeiro embate com Carl Schmitt, na ocasião da publicação da primeira edição de Die Legitimität der Neuzeit [A legitimidade da modernidade], ao qual Carl Schmitt respondeu no segundo volume de sua Politische Theologie, Hans Blumenberg dedicou a quarta parta inteira do livro Arbeit am Mythos ao enigma de Dichtung und Wahrheit. No segundo volume da Politische Theologie, Carl Schmitt se vale da frase ao interpretar a relação intrínsica à trindade, na condição de resposta ao desafio do gnosticismo.

Para o gnosticismo, o Deus do Velho Testamento se identificava com o demiurgo do helenismo, o deus maligno responsável pela inadequação do humano ao mundo, à sua existência privada de qualquer providência. Jesus, por sua vez, corresponderia ao verdadeiro Deus, quem traria a destruição do mundo artificial, bem como a derrota do demiurgo. Na medida em que a trindade – bem como outros dogmas constitutivos da patrística, como o do pecado original – se configura como uma ocupação da posição de resposta oferecida pelo gnosticismo, ao se apropriar de seus materiais, a relação entre as hipóstases só pode ser uma relação de guerra – algo consagrado pelo dictum de Goethe, em que deum e deus referem-se necessariamente a um só Deus. Essa é a interpretação de Carl Schmitt.

Em sua cuidadosa resposta, Hans Blumenberg contesta a referência proposta por Carl Schmitt para os termos deum e deus, vendo aí o paganismo artístico característico do poete alemão. Ao mesmo tempo, indica aí a persistência latente do mitológico, à maneira da dinâmica das reocupações, reocupações sendo para Hans Blumenberg, o modo essencial pelo qual a história acontece. Como explorado no livro anterior, Die Legitimität der Neuzeit, a dinâmica das reocupações contesta uma perspectiva substancialista da história, que estaria na raiz da teologia política de Carl Schmitt, bem como no seu desafio à legitimidade do direito público da modernidade tardia.

Da troca de cartas, sabe-se que Schmitt não concordava com a interpretação de sua posição como implicando uma compreensão substancialista da história. Do mesmo modo, não restou convencido quanto à interpretação de Hans Blumenberg acerca do dictum de Goethe. Há de se notar, de todo modo, que Goethe abre a obra magna tardia do autor, Der Nomos der Erde (O Nomos da Terra), para então dar lugar a Johann Jakob Bachofen. Os enigmas por trás da força e uso desses fragmentos mítico-literários pelo autor continuarão a demandar a atenção de estudiosos por décadas. Höfele é um bom porto seguro, consolidando aquilo que já se sabia, e marcando o quanto ainda resta para se investigar.

*Ari Marcelo Solon é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prismas).

Referência


Andreas Höfele. Carl Schmitt und die Literatur. Berlim, Duncker & Humblot, 2022, 523 págs.

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