Por JEAN PIERRE CHAUVIN*
As fraturas no discurso que se pretende democrático e compatível com a realidade da universidade
A notícia de que pelo menos uma aluna vinculada à USP, e duas professoras lotadas na UNESP, tomaram parte do ato golpista desferido em Brasília no dia 8 de janeiro, refuta o desatualizado senso comum de que as universidades públicas brasileiras são “escolas” que formam comunistas, socialistas e congêneres. Se assim fosse, a universidade não seria lugar do dissenso. A postura dessas três pessoas acumula paradoxos, dentre eles, (i) o fato de se portarem de modo dogmático em nome da liberdade; (ii) de atacarem os símbolos dos três poderes em nome do patriotismo.
As manchetes sobre o envolvimento da estudante e das professoras provocaram relativa surpresa. Digo relativa porque, desde meu ingresso como professor da Universidade de São Paulo em 2014, testemunho declarações reacionárias de estudantes que não veem contradição em ocupar vagas públicas do ensino superior e defender a “privatização de tudo”; deslumbrarem-se com atores políticos, sem se dar conta do perigo embutido na visão idólatra (por definição, acrítica) a respeito deles. Eis a “vantagem” de dividir o ponto de ônibus e o transporte coletivo com tais estudantes: passamos a detectar as fraturas no discurso que se pretende democrático e compatível com a realidade à nossa volta.
Não seria vão recordar que o discurso golpista, financiado por empresários do Brasil e do exterior, embala parte expressiva de alunos e colegas de ofício desde junho de 2013. É simbólico que os atos terroristas do último domingo tenham acontecido uma semana após a bela cerimônia de posse de Luiz Inácio Lula da Silva, Geraldo Alckmin e os trinta e sete ministros – o que deve ter me levado a retomar a leitura de A revolução cultural nazista, de Johann Chapoutot (Ed. Da Vinci), traduzido do francês por Clóvis Marques.
Eis que a expectativa de deparar com relatos e episódios nazistas reeditados pelos bolsonaristas foi confirmada, considerando que “Os nazistas e seus seguidores fanáticos do mundo pedagógico e universitário se munem de uma pena viril para rejeitar vigorosamente a figura pálida e doentia do teórico anêmico, raciocinador que pratica a filosofia como se pratica a religião” (CHAPOUTOT, 2022, p. 28).
Em diversas passagens, o pesquisador transcreve os pseudoargumentos de ideólogos do terceiro Reich, inclusive professores eruditos que articularam a reforma curricular nas escolas alemãs em 1938. Em todos eles ressoam as tópicas nazistas, revestidas do uso caricatural de Platão, pintado como um homem superior (e racista) na condução dos negócios do Estado: “O filósofo é um guerreiro, e com efeito, observa o autor [Kurt Hildebrandt], grande parte do discurso de Platão é estruturado pela semântica militar” (p. 32).
O que havia de mais perturbador era que Platão não fora escolhido arbitrariamente, mas porque se tornaria um suposto ponto de referência a ser comparado com o próprio Adolf Hitler: “Escorado na leitura de Mein Kampf, [Joachim] Bannes expões os princípios fundamentais da ideologia nazista, para em seguida falar da politeia de Platão, propondo um estudo comparado das biografias do Führer e do filósofo” (p. 34).
Convenhamos que a nossa situação é grave. Oitenta anos depois, estamos nós a lidar com sujeitos obtusos, hipócritas e nefastos (“patriotas”), a reproduzir aqui e ali a falsa ancestralidade nórdica (“distinção social”), defender a altivez da suposta raça superior (“elite”) e propagar fake news inerentes ao totalitarismo (“liberdade de expressão”), como signos de uma pretensa revolução cultural modernizadora (“ponte para o futuro”).
Como dizia, estava a ler o livro de Johann Chapoutot, o que merece breve digressão. Decidi levá-lo até a padaria onde costumo tomar o café da manhã, para melhor saboreá-lo. Porém, antes de sair de casa, hesitei durante três ou quatro segundos se poderia ser mal interpretado (ou saudado com um Heil, Hitler) na rua. Por sorte, ou azar, lembrei-me de que a maioria esmagadora de meus conterrâneos não lê e, ainda que eles o façam esporadicamente (em geral, por pragmatismo), possivelmente não teriam capacidade de enxergar o outro, menos ainda perderiam tempo em decodificar o título da obra, quanto mais interpretá-lo.
O fato é que, enquanto fazia notas às margens do ensaio de Chapoutot, foi inevitável considerar que o totalitário brasileiro, embora odeie seres pensantes (mormente aqueles capazes de criticidade), reconhece que mesmo as correntes ideológicas mais conservadoras recorrem a “filósofos” para validar seus pressupostos, métodos e objetivos. Quer dizer, o aspecto prático (“a mão na massa”, como anunciou um candidato ao governo estadual), embutido na covardia autoritária, costuma se amparar em algum referencial teórico – ainda que os seus adeptos engrossem as estatísticas de não-leitores.
Aqui há outra analogia infeliz. Como disse, o estudo revela que durante os anos de 1930 e 1940, os ideólogos do nazismo recorriam a Platão para respaldar, em escolas e faculdades, o racismo, a eugenia, a unificação da República e a eliminação dos seres considerados doentes, fracos e degenerados, como forma de purificar, fortalecer e unificar o império alemão, em alusão à “Grande Grécia” (p. 33), pretendida por Platão. No Brasil de Jair Bolsonaro, a carência de repertório e o desapreço pela cultura, combinados à hipocrisia e a má-fé de seus seguidores, colaboraram em alçar Olavo de Carvalho ao posto de guru da extrema direita.
A adesão dos “patriotas” aos preconceitos todos, concretizados em discursos de ódio e atos terroristas, mostra que o seu comportamento é análogo ao dos pseudorreligiosos de ocasião, afiliados a uma seita capitaneada por figuras autoritárias, pirracentas e megalomaníacas, que tanto esbravejam quanto mentem; tanto recuam quanto atacam; tanto odeiam quanto negligenciam.
Cioso da profissão que desempenho há mais de vinte anos, esses acontecimentos recordam que a universidade também abriga adeptos de pautas antidemocráticas e excludentes – o que leva a cogitar que seria importante pautar essas e outras questões junto aos colegas de departamento e dos órgãos e colegiados competentes. Parece-me constituir prerrogativa do professor requisitar, às instituições de ensino, que amparem o exercício de seu ofício, respaldando-o quando defender a democracia e, principalmente, quando contestar a presença de golpistas, estejam eles dentro ou fora da sala de aula.
*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Mil, uma distopia (Luva Editora).
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