Yanomamis

Imagem: ColeraAlegria
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARSO GENRO*

As inscrições nazistas e fascistas estão no coração dos grandes e pequenos artífices, que abraçaram a dança da morte em cada dia da sua vida degradada

Tento, no presente texto, contribuir para o debate que já começou sobre a perplexidade “ampliada”, já em voga de maneira acelerada, sobre a barbárie bolsonarista e os seus efeitos cada vez mais visíveis na nossa subjetividade brasileira “cordial”, que irá nos acompanhar ainda por muito tempo. Trata-se de um texto de memória, mais de um militante político um pouco intelectualizado, menos de um ensaio escrito e subsumido em pretensões teóricas. Como foi possível?

Começo com a transcrição de uma parte da Carta de 18 outubro de 2021, que me foi remetida pelo meu amigo Professor Flávio Aguiar, residente em Berlim, que me brindou com o afeto de uma pesquisa sobre alguns familiares meus, de origem judia – do lado da minha mãe – que era filha de uma alemã “pura”, com um judeu “puro” – cuja família inicialmente viveu – no Século XX – na região de Santa Maria, aqui no nosso Rio Grande do Sul. Meu nome completo é Tarso Fernando Herz Genro e o Herz vem desta procedência.

O relato do meu amigo Flávio Aguiar tem uma solidariedade dolorosa, expressa na sua secura medida, bem como uma precisão material que deixar ali – naquele conjunto de palavras – um testemunho de rejeição radical justificada a tudo que cheira a nazismo. A tudo que se reporta ao fascismo e ao nazifascismo, sejam seus sopros trazidos pela presença fétida das pessoas que com ele conciliam, seja pelas milhares de inscrições nazistas e fascistas que transitam nas redes estão nas paredes das cidades sem alma, nos discursos de ódio de todas as classes e estão no coração dos grandes e pequenos artífices, que abraçaram a dança da morte em cada dia da sua vida degradada.

Diz o meu amigo: “Caro Tarso, prepare-se para mais emoções. Estou te enviando o link do relato mais circunstanciado que encontrei sobre os Herz. Junto uma foto do sobrinho do teu avô, Günther Herz, que foi assassinado em Auschwitz em 1944, aos 25 anos de idade. Encontrei outros relatos mais centrados na vida política de Carl Herz. Está tudo em alemão.” Aos 25 anos de idade!

Os meus ascendentes diretos judeus viveram em Altona e depois, já com três filhos, se mudaram para Berlim, onde militaram na socialdemocracia alemã, ao lado de Bebel, Liebknecht e Rosa Luxemburgo. Carl Herz meu tio-avô, foi sacado da Prefeitura de Kreusberg, onde era Prefeito, em março de 1933, por um grupo de nazistas da SS. Quando a Polícia Municipal interferiu foi para prender quem estava sofrendo a violência, deixando livre a milícia hitlerista que espancava Carl Herz duramente.

Junto com a carta de Flávio veio uma foto do meu primo Günter, assassinado pelos nazistas, aos 25 anos de idade, em 31 de março de 1944, cujo semblante imediatamente me lembrou o meu avô Hermann Herz, seu tio, com quem convivi por mais de duas décadas, em São Borja e depois em Santa Maria para onde nossa família se mudou em 1953.

A carta de Flávio é posterior aos eventos da Hebraica, onde Jair Bolsonaro se apresentou em 3 de abril de 2017, com uma limpidez nazista extraordinária, arremetendo taticamente seu ódio psicopático, não contra os judeus, mas contra os negros, pessoas com identidade sexual diversa, gente com algum tipo de deficiência física (no caso Lula, originária de acidente de trabalho) e indígenas Amazônia e de toda a América

O discurso de Jair Bolsonaro recebeu provavelmente a repulsa da maior parte da comunidade judia, mas seus impropérios contra a esquerda mantiveram-no – até o final da eleição – com certo apoio nesta comunidade, bem como seu nome espraiou-se por outros setores sociais, mais ricos ou mais pobres, em todo o território nacional, tornando-o presidente do Brasil e ao mesmo tempo um pária mundial.

As pessoas que o apoiavam, “racionalmente”, tinham duas formulações básicas, para responder aos seus contendores: “pelo menos ele é autêntico” e “na verdade ele faz um tipo”, não fará tudo aquilo de “mal”, que ele diz. São as duas argumentações na política mais calhordas e desqualificantes que ouvi ao longo da minha já não curta vida. Ambas naturalizam o mal e fazem dele uma opção contra a civilização, a humanidade, a urbanidade e a mínima socialidade comunitária, que surgiu a partir das evoluções democráticas que resistiram mais de 200 anos de provas e agressões de todos os tipos.

Lembrei-me hoje do meu primo que não conheci, Günter Herz, que se recusou a sair de Berlim, com os demais membros da família, porque pensava poder manter-se na luta junto às organizações clandestinas contra Hitler e seus assassinos de uniforme. Lembrei-me dele quando vi as fotos das crianças Yanomami, suas mães, pais irmãos, irmãs: esquálidos, famélicos, doentes, morrendo, que seguiram os oitocentos mil brasileiros e brasileiras de todas as idades, fulminados pela impiedade fascista de Bolsonaro.

Como foi possível que este formidável engano coletivo vencesse aqui no Brasil – como venceu na Alemanha – nação mais culta e desenvolvida daquela época? Só foi e é possível a morte vencer porque, ao ser naturalizada de forma racional e em escala industrial – aqui como na Alemanha – foi tornada uma ficção inofensiva na consciência dos humanos. E assim, vencedora, domina o espírito de uma maioria, não ingênua ou enganada – naquele momento – mas uma maioria que queria ver o demônio funcionar como operador escondido das suas vidas sem rumo. Isso se faz pela política, pela propaganda, pela informação.

Vejo o meu primo Günter, que não conheci, em alguma fila de execução nazista do Campo de Auschwitz. Ele vai triste, mas sereno, sabe que perdeu e que deveria ter saído, mas pensa que o que viveu valeu. E muito. Sua consciência política de jovem rebelde e corajoso também já sabe – como sabemos hoje para sempre – que tudo isso pode se repetir: tanto como sonho sonhado, como sendo um pesadelo vivido. Não adianta só perplexidades generosas ou arrependimentos tardios. O que adianta é a Justiça imperfeita dos homens ser erguida como uma luz matinal, que nos acordará numa primavera improvável que dura certo tempo. E que queremos seja para sempre.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A Terceira Guerra Mundialmíssel atacms 26/11/2024 Por RUBEN BAUER NAVEIRA: A Rússia irá retaliar o uso de mísseis sofisticados da OTAN contra seu território, e os americanos não têm dúvidas quanto a isso
  • A Europa prepara-se para a guerraguerra trincheira 27/11/2024 Por FLÁVIO AGUIAR: Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos
  • Os caminhos do bolsonarismocéu 28/11/2024 Por RONALDO TAMBERLINI PAGOTTO: O protagonismo do Judiciário esvazia as ruas. A força da extrema direita tem apoio internacional, recursos abundantes e canais de comunicação de grande impacto
  • O acontecimento da literaturacultura equívoco 26/11/2024 Por TERRY EAGLETON: Prefácio do livro recém editado
  • Os espectros da filosofia russaBurlarki cultura 23/11/2024 Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro “Alexandre Kojève and the Specters of Russian Philosophy”, de Trevor Wilson
  • Aziz Ab’SaberOlgaria Matos 2024 29/11/2024 Por OLGÁRIA MATOS: Palestra no seminário em homenagem ao centenário do geocientista
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • O premiado Ainda estou aquicultura ainda estou aqui ii 27/11/2024 Por JULIO CESAR TELES: Não é apenas um filme que soube usar recursos visuais, fontes de época ou retratar um momento traumático da história brasileira; é um filme necessário, que assume a função de memória e resistência
  • Não é a economia, estúpidoPaulo Capel Narvai 30/11/2024 Por PAULO CAPEL NARVAI: Nessa “festa da faca” de cortar e cortar sempre mais, e mais fundo, não bastaria algo como uns R$ 100 bilhões ou R$ 150 bilhões. Não bastaria, pois ao mercado nunca basta
  • Guerra na Ucrânia — a escada da escaladaANDREW KORYBKO 26/11/2024 Por ANDREW KORYBKO: Putin viu-se confrontado com a opção de escalar ou de continuar sua política de paciência estratégica, e escolheu a primeira opção

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES