Por GUSTAVO SEFERIAN, JORGE LUIZ SOUTO MAIOR & VALDETE SOUTO SEVERO*
Quando se trata de direitos fundamentais, não há espaço para a criação de categorias intermediárias
Não é de hoje que a ideia de uma regulação “minotauro” aparece como solução inovadora e espetacular nas mentes de muitos intelectuais ligados ao mundo do trabalho. Na década de 1990 este debate foi intenso, dando azo à criação, a partir de uma experiência legislativa ocasional e confusa na Itália, da figura jurídica do parassubordinado, que seria, por assim dizer, um trabalhador meio-autônomo, meio-empregado.
Dizia-se que como muitas pessoas não conseguiam arrumar emprego, dado os altos custos da integralidade dos direitos trabalhistas e como, também, muitos trabalhavam, mas sem direito trabalhista algum, a solução seria criar uma figura jurídica no meio do caminho entre o empregado e o autônomo, para que se possibilitasse que quem estava no desemprego fosse ocupado neste tipo de trabalho menos oneroso e também para que se concebesse alguns direitos a quem estava na “informalidade”.
Argumentava-se, ainda, que o mundo do trabalho mudou e que a figura daquele empregado atuando nas esteiras das linhas de produção fabris, para o qual os direitos trabalhistas teriam sido moldados, não existia mais e, por consequência, cada vez um número maior de trabalhadores se encontrava na clássica “zona gris”, que separava, em um jogo de tudo ou nada, o empregado do não-empregado. Então, a figura da parassubordinação viria para abarcar todas essas pessoas sem uma precisa qualificação jurídica e lhes conferir, ao menos, alguns direitos trabalhistas.
O problema é que o discurso não correspondia à realidade e os resultados produzidos foram bastante desastrosos, aliás, como era possível prever.
Destaque-se, primeiro, a falácia da eliminação da zona cinzenta com a criação do parassubordinado. Como já dizíamos à época, a criação de uma figura jurídica no meio do caminho apenas serviria para criar mais uma zona cinzenta. Então, em vez de uma separação entre empregado e autônomo se teriam duas linhas de separação, a do autônomo, com o parassubordinado; e a do parassubordinado, com o empregado. E se antes a separação, embora tênue em algum momento, era mais evidenciada, as novas divisões, dada a aproximação promíscua do parassubordinado com o autônomo e com o empregado, seriam ainda mais difíceis de definir.
Esta sombra ainda mais esvoaçada, inclusive, seria a porta aberta para transportar os empregados, ou seja, aqueles trabalhadores que ostentam a condição jurídica de empregados, para a parassubordinação.
O que se projetava como um aumento da proteção jurídica trabalhista resultaria em aumento da precarização, dado o rebaixamento “normal” das salvaguardas materiais destes trabalhadores e trabalhadoras . E foi, efetivamente, o que se verificou na prática. Além disso, a descartabilidade aleatória e autoritária de alguns direitos trabalhistas só serve para fragilizar a totalidade dos direitos, que passam, inclusive, para o plano da avaliação puramente econômica, sobretudo, quando se adota o pressuposto de que são os direitos fundamentais dos trabalhadores os culpados pelo desemprego.
No Brasil, a experiência verificada com as “cooperativas de trabalho”, a partir da década de 1990, não deixa margem para se tergiversar sobre este assunto. A própria terceirização, que não deixa de ser uma regulação meio-termo, embora se preserve a condição jurídica do emprego, dada a realidade da enorme precariedade no setor, também não permite que se façam projeções otimistas sobre o nem lá, nem cá.
Quando se trata de direitos fundamentais, não há espaço para a criação de categorias intermediárias, pois, do contrário, seria o mesmo que dizer que o pacto em torno da condição humana mínima vale apenas para algumas pessoas, havendo na realidade social, por conseguinte, outras cujo tratamento quase humano ou subumano estaria autorizado.
É importante que se tenha isto muito bem evidenciado. Os direitos trabalhistas são direitos fundamentais, vez que seus objetivos são: proteger a saúde e a dignidade das trabalhadoras e dos trabalhadores; limitar a exploração; melhorar a condição social e econômica dos trabalhadores e das trabalhadoras; possibilitar a inserção e a organização política e democrática da classe trabalhadora na sociedade capitalista.
O desafio que sempre se impôs ao modelo capitalista, portanto, foi o de efetivar esses direitos, que, inclusive, foram concebidos a partir de muitas reivindicações e lutas da classe trabalhadora. Qualquer eliminação, retração e ou mesmo renúncia relativa a esses direitos representa, pois, uma derrota e um retrocesso histórico. A diminuição desses direitos não é o novo, é o antigo, cuja superação, inclusive, ainda se tenta consolidar.
Quando o atual Ministro do Trabalho, que propõe um debate sobre o que ele denomina eufemisticamente de “trabalho por aplicativos”, diz que nem todo trabalhador precisa de CLT, o que faz, concretamente, é naturalizar o retrocesso e, de forma ainda mais trágica para a necessária compreensão da nossa história, endossar a aversão irracional, regada a ódio, que se se tem no Brasil com relação à CLT.
Ora, a CLT é apenas um documento jurídico que explicita quais são os direitos mínimos de quem, para sobreviver, vende a sua força de trabalho a outra pessoa ou empresa em relação assalariada. Os direitos de quem trabalha, ademais, estão enunciados também em vários outros instrumentos jurídicos e, sobretudo, na Constituição (sem falar das Declarações, Tratados e Convenções internacionais). Aliás, considerando o que consta na Constituição e nestes documentos internacionais, os direitos integrados à CLT estão muito abaixo do nível que seria o mínimo.
Como dito, nosso desafio é outro. A tarefa urgente é extirpar do mundo jurídico todas as fórmulas que, desde a década de 1960, foram criadas para rebaixar a proteção jurídica trabalhista. E, sobretudo, quebrar, de uma vez, todo preconceito ou mesmo o ódio que se tem com relação aos direitos trabalhistas, que são, em verdade, direitos fundamentais e que nada mais fazem do que tentar proteger a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras e promover uma melhoria progressiva de sua condição social e econômica, por meio de: limitação da jornada de trabalho; salário-mínimo e mecanismos jurídicos de majoração salarial (negociação coletiva e greve); períodos de descanso (férias, descanso semanal remunerado, intervalos durante e entre a jornada de trabalho); proteção contra o desemprego, os assédios de todo tipo, garantia de condições mínimas de saúde, segurança e higiene do trabalho etc.
Quando se diz que algum trabalhador ou trabalhadora que vende sua força de trabalho para sobreviver, no contexto da satisfação dos interesses daquele que se vale do resultado do trabalho prestado, não tem CLT, o que se está dizendo, concretamente, é que se pode negar direitos fundamentais a esta pessoa. Em suma, que a Constituição não se aplica a ela. Como se vê, é uma fala muito violenta, destinada àqueles e aquelas que foram historicamente excluídos, que naturaliza a exploração sem limites. E ainda o faz com o discurso falacioso da liberdade e da autonomia.
Esta proposição gera apenas dois efeitos concretos: rebaixamento da condição humana desse(a) trabalhador(a) e a potencialização do aumento da taxa de lucro de quem explora a força de trabalho alheia. A precarização não melhora a economia do país. Pelo contrário, gera retração, pois promove, no cômputo geral, maior acumulação da riqueza e, por consequência, mais desigualdade social. Além disso, provoca maior custo social, em virtude do adoecimento e mortes no trabalho, sem aumentar o número de empregos, até porque os eventuais empregos gerados não são, em verdade, empregos, mas subempregos.
Ademais, a existência, no mundo do trabalho, de trabalhadores e trabalhadoras que possuem uma posição jurídica rebaixada de proteção social faz com que este nível rebaixado seja visto como o patamar de comparação, gerando a percepção de que as trabalhadoras e trabalhadores aos quais se direcionam a totalidade dos direitos trabalhistas sejam tidos como privilegiados.
Assim, o que era para ser visto como patamar mínimo de civilização, como foi obrigatório reconhecer ao longo de anos de aprendizados e de lutas, passa a ser o máximo. O trabalhador e a trabalhadora que “tem CLT”, portanto, seria um ser privilegiado, ainda mais se consideradas as milhares (ou milhões!) de pessoas que sequer conseguem vender sua força de trabalho, os desempregados.
Esta total inversão de valores proporciona que os Marinhos entendam que conferir uma cesta com alguns direitos para quem antes não trabalhava ou trabalhava sem direito algum seja um ato de progressão ou até mesmo, como dito nos considerandos da “reforma” trabalhista, uma efetivação de “justiça social”.
De fato, o que se promove, como dito, é o rebaixamento daquilo que se entende por proteção jurídica mínima nas relações de trabalho e que serve, inclusive, para proteger o mercado de sua tendência autofágica. O desafio histórico concreto sempre foi o de tornar efetivos os direitos trabalhistas, dadas recorrentes tentativas de fuga promovidas pelo empresariado neste sentido, favorecida, nos países periféricos, pela desigual divisão internacional da produção e de capitais. Daí porque, no plano da busca da efetividade, se compreendeu a essencialidade de se atribuir aos direitos trabalhistas, por serem direitos fundamentais, a qualidade de direitos irrenunciáveis.
Cumpre notar, a propósito, que a maior parte dos milhões de trabalhadores e trabalhadoras que vendem a sua força de trabalho na dita “informalidade”, ou seja, sem o reconhecimento da condição jurídica de empregados e empregadas, são, de fato, vítimas de uma coação econômica, que os obriga a aceitar trabalho nas condições oferecidas e que não vê possibilidade de reação quando verifica que o próprio Estado se apresenta como estimulador ou legitimador desta situação e que as organizações sindicais estão também sob mira e preocupadas com a própria existência e com as lutas contra a redução de direitos de seus associados (aqueles “privilegiados” que tem “CLT”).
Aliás, um dos mecanismos de consolidação da retração de direitos trabalhistas é o de esfacelar a classe trabalhadora, tanto dividindo-a entre “privilegiados”, terceirizados e informais, quanto atribuindo-lhes a aparência de um “empreendedor”; o que se verifica, inclusive, nos dois polos da pirâmide econômica das relações de trabalho. Isto é, seja com os “altos empregados”, que passam pelo processo de “pejotização”, seja com os mais precários, que são convencidos de que são empreendedores de si mesmos, ou Micro Empreendedores Individuais (MEI), ainda que, na realidade, seu trabalho esteja sendo realizado, em rede, para o desenvolvimento de grandes negócios capitalistas.
Assim, quando se diz que o dito “trabalho prestado por intermédio de aplicativos” é uma forma moderna de relação de trabalho, diversa daquela para a qual se voltou a CLT, e que os trabalhadores que prestam serviços a empresas que exploram atividade econômica por meio de plataformas digitais não querem direitos trabalhistas, comete-se vários equívocos, a saber: (i) desconsidera-se o dado histórico da construção dos direitos trabalhistas que está relacionado, isto sim, à limitação da exploração econômica do ser humano, nas suas mais variadas formas; (ii) rompe-se o reconhecimento da condição mínima garantida aos trabalhadores e às trabalhadoras; (iii) cria-se obstáculo para a efetivação de direitos humanos nas relações de trabalho.
(iv) Replica-se, de forma mais restrita, o interesse das empresas de aplicativos, as quais, assim, poderão explorar o trabalho em patamar abaixo do mínimo existencial sem redução de riscos, dada a chancela conferida pelo Estado para tanto; (v) estimula-se e institucionaliza-se “nova” divisão na classe trabalhadora, criando mais um obstáculo para a formação da consciência de classe, que é essencial para as lutas sociais; (vi) fragiliza-se a posição jurídica e política da totalidade dos trabalhadores e trabalhadoras; (vii) incorpora-se a falsa argumentação de que a forma aparente de exploração do trabalho é que determina o conteúdo dos direitos, quando o que de fato importa é se está, ou não, diante de uma exploração da força de trabalho para a satisfação de interesse alheio (e relação de emprego é apenas o nome jurídico que se dá a esta situação – não um “palavrão” ou “ofensa moral”), regida pela mesma lógica do assalariamento e obtenção de lucro que caracteriza dominantemente o trabalho sob o capitalismo.
(vii) Promove-se um autêntico dano social, visto que a sociedade como um todo é que terá que arcar com as consequências sociais e econômicas, bem como os traumas humanos que decorrem dos acidentes e doenças ocasionadas pela exploração sem limite do trabalho alheio, enquanto que aquele que se beneficia economicamente da situação sequer é induzido a compensar a coletividade por meio de impostos e contribuições sociais; (ix) subverte-se o conceito de dependência ou subordinação, que guarda relação justamente com o trabalho realizado, sem o qual a atividade econômica explorada pelas empresas que oferecem serviços por meio de aplicativos sequer existiria; (x) fomenta-se o discurso falacioso de liberdade que concretamente se traduz na necessidade de “ativação” por mais horas do que o parâmetro constitucional permite, em situação ergonômica agressiva ao corpo, em um ambiente de constante estresse como é o ambiente do trânsito de veículos.
(xi) Promove-se o disfarce que permite o repasse de todo o custo do negócio para o empregado ou empregada, enquanto a empresa segue sendo a única a apropriar-se da mais-valia gerada pelo trabalho; (xii) e faz-se tudo isso por meio da utilização da retórica clássica do setor empresarial no contexto neoliberal de que a redução de direitos sociais é uma aspiração dos próprios trabalhadores e das próprias trabalhadoras, que passariam a entender que a culpa de seus males é o custo que os direitos sociais geram para as empresas.
É importante, sobretudo, compreender que a precarização das condições de trabalho não interessa às empresas que detêm o monopólio tecnológico unicamente pelos seus efeitos mais imediatos da redução de custos e do abalo da consciência de classe, na medida em que trabalhadores e trabalhadoras são induzidos a lutarem uns contra os outros pelos poucos e cada vez mais mal remunerados postos de trabalho. Interessa-lhes, dentro de sua concepção ideológica, sobretudo, disseminar a prática das formas de exploração do trabalho que fragilizam como um todo a classe trabalhadora e que promovam o desmonte do projeto econômico-social e humano proposto pelo Estado Social.
A “uberização” é um processo assumido de rebaixamento da condição de vida dos trabalhadores e das trabalhadoras, buscando reduzir ou até eliminar o potencial de organização e de luta, além de se constituir, por consequência, uma afronta direta ao Estado Social e não apenas mais uma estratégia para majorar taxa de lucro, o que, neste contexto, pode até ser conduzido ao segundo plano, dados os objetivos maiores de dominação e de apropriação dos poderes político e econômico (https://www.lepoint.fr/economie/uber-dara-khosrowshahil-homme-qui-va-nous-faire-changer-de-vie-29-11-2018-2275266_28.php). Até porque, pessoas que trabalham todo o tempo e que são as únicas responsáveis pela própria sobrevivência, desde uma lógica individualista, autofágica e precarizante, terão bem mais dificuldades para conviver, reconhecer os problemas comuns e construir outra sociabilidade menos destrutiva. Esse processo, portanto, compromete fortemente a capacidade política, o que é profundamente problemático, especialmente quando estamos lidando com a possibilidade de não haver futuro, em razão do ecocídio promovido e incentivado pelo sistema.
No momento atual, mais de 20 anos depois, o tema volta repaginado ou integrado por outros argumentos, para dar um ar de coisa nova.
Desde 2013 aprofundaram-se os estudos de crítica marxista no campo do direito, ressaltando a percepção de que o direito é, formalmente, elemento capitalista para legitimar a exploração. O direito, mesmo o trabalhista, teria, pois, um papel ideológico negativo, sobretudo quando induz a classe trabalhadora ao plano da reivindicação por mais direitos.
O Direito do Trabalho, por sua vez, seria a expressão máxima da opressão, vez que, para auferir direitos, a classe trabalhadora abre mão da liberdade e de formas de luta que poderia efetivamente levar à consagração de seus mais radicais interesses. Desde essa perspectiva, a relação de emprego, por exemplo, ao se configurar por meio do elemento subordinação, fundamentaria, inclusive, a legitimidade dos poderes diretivo e disciplinar do empregador sobre o empregado, constituindo-se como obstáculo à autonomia.
De outro lado, despontam críticas que, com devido acerto, denunciam os limites históricos do Direito do Trabalho. Expõem traços que denotam sua condição de parte de uma ordem social sexista, racista e ecocida, a partir de regras que legitimariam ou até mesmo endossariam tais práticas, como é o caso da possibilidade de justa causa.
Por isso, quando se coloca sob perspectiva o tema do “trabalho por aplicativos”, a moderna concepção jurídica emancipatória muitas vezes acaba por defender que a relação de emprego para esses trabalhadores é uma atitude reacionária e alinhada com os interesses do capital. Essas pessoas querem e merecem liberdade e a relação de emprego escraviza e oprime. Decretam!
Com esses argumentos, parte da intelectualidade jurídica de esquerda (progressista ou “revolucionária”) vai na mesma direção de uma regulação que confira alguns direitos trabalhistas, mas não aqueles direitos clássicos da relação de emprego.
Nossa posição é absolutamente refratária a qualquer raciocínio que conduza, ainda que com a melhor das intenções, à precarização das condições de quem vive do trabalho. Se o capital defende a regulamentação parcial da atividade, é de se compreender a cilada. Não temos o direito de ser ingênuos. Não se trata aqui de fazer vista grossa aos limites e contradições próprias do Direito do Trabalho, constantes na CLT e na Constituição da República. Mas sim de reconhecer que aquilo que lhe é estrutural, assim o é por decorrência de sua ligação umbilical com o modo de produção capitalista.
Enquanto o capitalismo existir, deverá, de uma forma ou outra, de modo mais protetivo ou outro, existir o Direito do Trabalho. Então, ser “arma do inimigo”, para utilizar a expressão de Pachukanis, não retira do Direito do Trabalho a condição de instrumento importante de justiça social, barricada imprescindível para o impedimento da barbárie, fonte transgressora de condição material para uma existência com dignidade.
Eis porque compreendemos necessário um Direito do Trabalho cada vez mais radical e protetivo. E uma condição mais protetiva a quem trabalha não é sempre benfazeja? Buscar uma aplicação integral das salvaguardas até aqui historicamente conquistadas não seria um passo ainda mais relevante no aprimoramento e tensionamento dos próprios limites em que o Direito do Trabalho se assenta?
Se a exploração do trabalho se faz por meio de ferramentas digitais, que isso não nos impeça de enxergar a realidade da troca entre capital e trabalho e de compreender que é a estrutura social que gera a obrigatoriedade do trabalho como condição para a sobrevivência. Qualquer tentativa de regulação diferenciada e parcial para essas trabalhadoras e trabalhadores não passa de mais do mesmo, ou até, mais propriamente, menos do mesmo. Pesarosamente, depois de tantos anos de estudos e desvendamentos, constata-se que em muitas abordagens conclui-se com a invenção da roda.
Ora, se é verdade que o direito funciona como elemento de preservação das estruturas que permitem a constituição e a reprodução do capital por meio da exploração do trabalho, o inverso não é, necessariamente, verdadeiro, qual seja, que eliminar direitos contraria os interesses do capital. Inconteste, o que favorece o capital é o fato de que na sociedade capitalista as relações sociais se movem como relações jurídicas e uma relação de trabalho, com mais ou menos direitos, é, ainda assim, uma relação jurídica.
Relação de emprego é apenas o nome que se dá a uma relação jurídica específica. Então, se a relação de trabalho não for identificada como relação de emprego, não deixará de ser uma relação jurídica moldada para satisfação dos interesses do capital.
Aliás, o será de forma ainda mais perversa, porque a história é uma construção dialética e a história do capitalismo também é história. O capitalismo se move nas aparências, mas esta relação social, política e econômica, mesmo escondendo sua essência, não é uma abstração. A relação de emprego é uma relação jurídica dialeticamente estabelecida e carregada de contradições históricas. Vista por este prisma, a relação de emprego é um estágio complexo da relação capital-trabalho, no qual se inserem várias garantias aos trabalhadores e trabalhadoras que, mesmo sem superar a relação jurídica básica da exploração do trabalho, conferem melhores condições de vida a quem, pela necessidade, é obrigado a vender a sua força de trabalho para sobreviver.
Não é a relação de emprego que oprime, portanto. A relação de emprego é um obstáculo à opressão sem limites e quanto maior o seu leque de direitos, maior limite se impõe ao capital e maior é o reconhecimento da condição humana de trabalhadores e trabalhadoras. Não é perfeita, como nada na vida é perfeito, e reclama ser aprimorada. Mas não abandonada…
Fora de um ambiente de efetiva revolução proletária, abrir mão da relação de emprego e de seu aparato jurídico (limitação da jornada de trabalho, proteção contra dispensa arbitrária, salário mínimo, direito de greve, sindicalização, acesso à justiça etc) representa, unicamente, ceder espaço à ganância do capital. Não representa libertação, mas sim maior opressão e com maiores disfarces.
Paulo Lima, o Galo, em reunião ocorrida junto ao Ministério do Trabalho no dia 19 de janeiro úlitmo, trouxe um comparativo fabuloso com a questão da saúde pública: até podemos ficar consternados com as filas do SUS, a demora de atendimento, mas a solução para isso é abandoná-lo? Não seria a saída mais adequada aprimorar, melhorar, aquilo que um dia já conquistamos?
E “os trabalhadores por aplicativos”, que são, efetivamente, trabalhadores cuja força de trabalho se engaja no desenvolvimento do negócio das empresas proprietárias de aplicativos, são, nos termos já fixados em lei (arts. 2o e 3o da CLT), juridicamente definidos como empregados, vez que seus serviços são prestados de forma não eventual, onerosa e subordinada, entendendo-se a subordinação, na forma devida, como a alienação da força de trabalho a quem detém os meios de produção e se apropria dos benefícios do trabalho realizado.
A relação de emprego, resumidamente, é a identificação jurídica da relação capital-trabalho e que explicita o estado de subsunção formal e real do trabalho ao capital. Simples assim.
Nestes termos, para que se reconheçam direitos trabalhistas aos “trabalhadores por aplicativos”, basta que se aplique a legislação existente que, inclusive, já foi moldada às recorrentes e nada inovadoras tentativas do capital de fugir das amarras dos direitos sociais.
Vide, neste sentido, a Ementa abaixo:
“Ementa: Uber do brasil. Motorista. Relação de emprego reconhecida. Avanços tecnológicos não legitimam o trabalho precarizado. Direitos fundamentais não se vergam diante do poder econômico. Não há privilégio na servidão.
Do ponto de vista abstrato, o primeiro grande obstáculo que se tem verificado para a compreensão do trabalho prestado por intermédio de aplicativos situa-se na incompreensão do que seja, juridicamente, uma relação de emprego. Muitos julgados, que negam a existência de uma relação de emprego na situação em questão, apegam-se no argumento de que o trabalhador não está subordinado, apoiando-se, para tanto, em dois fatos: que o trabalhador tem liberdade para escolher seu horário de trabalho e que não é punido caso não trabalhe.
O trabalhador, portanto, não estaria sob o comando do empregador e sua atividade seria autogestada, podendo-se, assim, também concluir, que o que se tem, em concreto, é um trabalho prestado ‘pelo’ aplicativo e não ‘para’ o aplicativo, argumento este, inclusive, que aparece como ponto central do recurso apresentado pela reclamada nos presentes autos. A este respeito não se pode deixar de apontar para o aspecto meramente retórico da argumentação, pois o aplicativo não é sujeito de direito e, portanto, não poderia sequer ser considerado para efeito da análise jurídica. O aplicativo não tem vida própria, não expressa vontades, desejos e, portanto, não fixa metas ou comandos. Não é nada mais do que uma coisa, um objeto ou, mais especificamente, uma ferramenta.
Argumentar, para negar o vínculo de emprego, que o trabalho é prestado ‘pelo’ aplicativo e não ‘para’ o aplicativo não tem qualquer significado concreto, do ponto de vista jurídico, pois equivale a afirmar, com relação a um pedreiro, por exemplo, que este exerce seu trabalho ‘pelo’ uso de uma ‘colher de pedreiro’ e não ‘para’ a ferramenta em questão. Ora, é evidente que o motorista não trabalha ‘para’ o aplicativo, assim como o pedreiro não trabalha ‘para’ a sua colher e esta obviedade, extraída da lógica, não tem nenhuma repercussão jurídica.
Os sujeitos envolvidos nesta relação são a entidade que atua como empreendedora, o motorista e o passageiro. A empresa Uber, inequivocamente, está integrada a esta relação na qualidade de entidade empreendedora, pois sua atividade, como ela própria apresenta em seu sítio eletrônico, é a de fornecer a ferramenta que possa interligar o motorista ao cliente: ‘Nosso principal serviço é desenvolver tecnologias que conectem motoristas parceiros e usuários a qualquer hora. Mas é evidente que faz muito mais do que isto, pois não apenas produz a ‘colher de pedreiro’, como a mantém sob sua propriedade, define os modos da sua utilização, estabelece os parâmetros da relação entre o motorista e o usuário, gerencia a execução da atividade e mantém para si parcela do proveito econômico proveniente do serviço prestado.
É nítido, portanto, que a empresa Uber é sujeito ativo desta relação e não, meramente, proprietária da ferramenta. O motorista é outro evidente sujeito desta relação e sua participação se dá com o exercício do trabalho necessário para que o serviço seja prestado. O motorista é um trabalhador, portanto. O outro sujeito é o usuário, que se vale dos serviços prestados, tanto pelo motorista, quanto pela Uber. Para chegar ao motorista, o usuário se vale do aplicativo e, depois, se beneficia do transporte propriamente dito, por meio da condução do motorista, sendo que, para tanto, paga o preço previamente fixado; um preço que engloba, sem delimitação concreta, os dois serviços. O usuário, portanto, integra a relação, fechando o ciclo.
Não se trata, pois, de uma relação linear horizontal, como sugere a reclamada em seu sítio, na qual a Uber fornece a ferramenta e aquele que adquire a ferramenta a utiliza para a venda de serviço a uma terceira pessoa. O usuário, concretamente, estabelece um vínculo jurídico inicial com a Uber, na qualidade de consumidor do serviço por ela concretamente oferecido e não meramente ‘possibilitado’. Embora, nos processos judiciais, tente construir outra versão para a realidade, no mundo extra autos, a Uber explicita o serviço de transporte que vende ao consumidor e conclama, ‘Vá de Uber’. O usuário, que atende o chamado e vai de Uber, firma, portanto, uma relação de consumo com a Uber e não com o motorista, que aparece na relação como mero executor do trabalho necessário à realização do serviço. Tanto é assim que se o usuário for acometido de algum dano durante o transporte a reparação certamente será buscada perante a Uber e esta formulação tem sido reiteradamente acolhida pelos Tribunais estaduais.
Fechado o ciclo das relações jurídicas formalizadas, o que se tem como resultado é:
– quem trabalha é o motorista e a sua participação é, unicamente, a entrega do trabalho. Um trabalho que se executa para a Uber, que dele depende para a implementação do seu empreendimento econômico, pouco importando avaliar se o empreendimento é lucrativo ou não, já que assume os riscos da atividade;
– o trabalho prestado não é um trabalho autônomo, pois o motorista não define, por si, as condições em que será prestado junto ao consumidor, não tendo autonomia nem mesmo com relação ao preço cobrado pelo trabalho. O fato de o trabalhador arcar com os custos da execução do transporte, sendo, inclusive, proprietário do veículo (isto quando não o aluga), serve apenas para aumentar o seu nível de dependência econômica frente àquele que o remunera pelo trabalho exercido e que, concretamente, se beneficia economicamente da situação, que é a própria Uber. A transferência para o trabalhador de parte dos custos do empreendimento apenas aumenta o nível de exploração do trabalho.
Não há como negar, portanto, que se está diante de uma nítida relação jurídica na qual o motorista vende sua força de trabalho para o implemento do empreendimento da Uber e que se traduz, juridicamente, como uma autêntica relação de emprego, valendo lembrar que relação de emprego é o instituto jurídico criado exatamente para identificar este tipo de relação social, com o objetivo precípuo de delimitar o campo de aplicação dos direitos trabalhistas e de, ao mesmo tempo, garantir a efetivação destes direitos, tidos como parâmetros mínimos da relação capital-trabalho.
A relação de emprego é o instituto fundamental dos compromissos em torno da essencialidade dos direitos humanos e da integração sócio-político-econômica da classe trabalhadora que foram assumidos na pactuação de reconstrução da sociedade capitalista e que dão origem à formação do Estado Social. A relação de emprego é concebida, pois, como um imperativo de ordem pública, na medida em que a integração ao projeto sócio-econômico-produtivo do Estado Social é automática, involuntária e vinculativa. A identificação de uma relação de emprego, por conseguinte, não é um favor que se faz ao trabalhador, nem uma pena que se impõe ao empreendedor.
Bem ao contrário, representa revalidar e buscar conferir efetividade ao pacto em questão. Toda vez que se busca argumentos para negar a relação de emprego em efetivas relações de exploração do trabalho pelo capital o que se tem como efeito é um passo dado em direção a todo desajuste social e humano que nos conduziram a duas guerras mundiais e que tem feito aumentar as desigualdades sociais, a fome, a miséria e as diversas formas de opressão, o que, por sua vez, constitui alimento à quebra da solidariedade e da própria razão, fortalecendo as bases de regimes autoritários e ditatoriais.
Impressiona que depois de tantos anos de tentativa de superação da ordem liberal e consolidação do Estado Social ainda se conviva com práticas que retomam a época pré-capitalista, quando o argumento de ‘parceria’ entre os proprietários de terras e os trabalhadores forneciam fundamento para a espoliação da condição humana destes. Não é à toa, portanto, que a relação entre os trabalhadores e as empresas detentoras de aplicativo são apresentados como ‘servidão moderna’, ‘escravidão digital’, ou, na expressão mais reduzida, ‘uberização’.
E a argumentação artificialmente criada e midiaticamente difundida ainda busca fazer acreditar que quem explora faz um ‘favor’ para o explorado. Como se divulga com insistência, quem tem algum sonho poderá realizá-lo trabalhando ‘com’ o aplicativo da Uber (e não ‘para’ o aplicativo e, menos ainda, ‘para’ a Uber) e o fará sem se submeter a um padrão, ou seja, sendo o seu ‘próprio chefe’. Aqueles que conseguem alcançar esta condição são tidos, então, como seres privilegiados. Ostentariam, assim, como denuncia sarcasticamente Ricardo Antunes, o ‘privilégio da servidão’!” (Processo n. 0010112-89.2020.5.15.0032, Des. Rel. Jorge Luiz Souto Maior, 6a Câm., 3a T., TRT da 15a Reg., Cad. Judiciário do TRT15, DOU, p. 4430, 08.09.2022).
De todo modo, uma importante avaliação crítica precisa ser feita. É que, de fato, a relação de emprego tem sido muito mal aplicada pelos tais “operadores” do direito, visto que se tem entendido o elemento caracterizador da subordinação como um estado de submissão, o que é um profundo erro. Ora, como dito, a relação de emprego é um status jurídico de maior proteção à condição humana dos trabalhadores e trabalhadoras. Assim, a sua função é afastar a ideia de supremacia do empregador com a relação ao emprego. Na verdade, a relação de emprego busca subverter essa lógica, impondo limites à vontade do empregador. Na relação de emprego, o empregador dirige a prestação de serviços, mas não detém poder (ou não deveria deter) sobre o ser humano que lhe presta serviço, daí porque são impróprias as medidas ditas punitivas e disciplinares que, desvirtuadamente, se tem visto aplicar nas relações de emprego, com o beneplácito do mundo jurídico trabalhista, sem qualquer previsão legal.
Então, concretamente, o que se faz necessário é resgatar o conceito histórico de relação de emprego, e ressignificá-lo, incluindo, igualmente, preocupações relativas às questões de raciais e de gênero, que ainda estruturam as maiores mazelas da nossa sociedade. Não é com a simples negação da relação de emprego e com o desprezo aos direitos trabalhistas que se vai chegar a um novo estágio da regulação das relações de trabalho no Brasil.
O desafio é o de avançar e, para tanto, nada contribuem propostas que, apresentando-se como críticas e inovadoras, apenas reproduzem e legitimam práticas da exploração sem limites do trabalho e do trabalhador e da trabalhadora.
*Gustavo Seferian é professor do Departamento de Direito do Trabalho da UFMG.
*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores).
*Valdete Souto Severo é professora de direito e processo do trabalho na UFRGS e juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.
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