A geografia do voto nas eleições de 2022

Imagem: Magali Magalhães
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Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

O país é muito mais rico e nuançado e não cabe num modelo de “dois Brasis”: o conservador Sudoeste versus o Nordeste progressista

Os “dois Brasis” da eleição presidencial de 2022

Aparentemente, tanto a esquerda, quanto a direita, assumiram uma versão sobre a distribuição geográfica do voto no país que, do nosso ponto de vista, é demasiado simples. Desta perspectiva, o nordeste brasileiro, por ser o “responsável” pela eleição de Lula, seria a principal base eleitoral da esquerda no país. Por oposição, hoje, as regiões Centro-Oeste e Sul seriam o núcleo conservador no Brasil. E as regiões Norte e Sudeste se encontrariam divididas, a despeito de portarem um viés mais conservador do que progressista.

Esta leitura está longe de ser gratuita ou equivocada. Na verdade, se tomamos apenas a eleição presidencial por referência, ela é essencialmente correta. Um único exemplo é suficiente para demonstrar o ponto: a vitória de Lula sobre Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições nacionais de 2022 foi definida por uma diferença de 2 milhões e 140 mil votos. Mas apenas na Bahia a diferença pró-Lula foi de 3 milhões 740 mil votos. Vale dizer: a diferença pró-Lula neste único estado nordestino superou a diferença em todo o Brasil: não fosse a Bahia, Jair Bolsonaro teria sido vitorioso. E esta concentração espacial do voto pró-Lula já se manifestava no primeiro turno.

O Quadro 1, abaixo, busca traduzir a geografia do voto para Presidente. Ele foi ordenado pela percentagem de votação de Lula e de Jair Bolsonaro nas diversas Unidades da Federação (UFs). Ambos obtiveram, já no primeiro turno, mais de 50% dos votos em onze UFs. Apenas cinco delas – Amazonas, Minas Gerais, Amapá, Rio Grande do Sul e São Paulo – não deram maioria absoluta a qualquer um dos dois candidatos no início de outubro. Dentre os onze estados em que Lula conquistou maioria absoluta encontram-se os nove Estados do Nordeste e os dois Estados do extremo leste da Macrorregião Norte (Pará e Tocantins), na divisa com o Nordeste.

Por oposição, o voto de Jair Bolsonaro tem uma inflexão a “Sudoeste”, mas sua dispersão é maior. Ele obteve mais de 50% dos votos: (i) em todas as quatro UFs do Centro-Oeste; (ii) em duas das três UFs do Sul: PR e SC; (iii) em três das sete UFs do Norte: RO (na divisa com o Cento-Oeste), AC (a sudoeste da região Norte) e RR (UF da disputada reserva Yanomami); e (iv) em duas das quatro UFs do Sudeste: RJ e ES. A maior percentagem de voto em Jair Bolsonaro está no extremo Norte, em RR, com 69,57% já no primeiro turno. Porém, dada a baixíssima densidade demográfica do Norte do país, o total de votos obtidos por Jair Bolsonaro em RO, AC e RO correspondeu a 1,19% de sua votação nacional.[i] Já sua votação em SC (quarta maior percentagem de voto em Bolsonaro do país) correspondeu a 5,29% do total nacional neste candidato.

Mas a grande vantagem eleitoral de Jair Bolsonaro sobre Lula vai se manifestar numa UF que sequer lhe deu vitória no primeiro turno: São Paulo. Quase um quarto dos votos de Bolsonaro (24,2%) tiveram origem neste Estado que, igualmente bem, lhe garantiu a maior vantagem absoluta sobre Lula: 1 milhão e 750 mil votos. Esta diferença é maior do que a obtida pelo candidato nas quatro UFs do CO somadas (1 milhão e 400 mil votos) que, por sua vez, equivale à vantagem de Bolsonaro em Santa Catarina. Assim, a despeito da maior dispersão geográfica, se tomamos a expressão absoluta e relativa do voto no país, confirma-se a inflexão a sudoeste do voto bolsonarista.

Quadro 1: Percentual do voto dos candidatos a Presidente por UF no Primeiro Turno das eleições presidenciais de 2022

FDB: TSE: https://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2022/eleicoes-2022

Tal inflexão também é perceptível quando observamos a distribuição dos votos nos cinco Estados que não deram vitória por maioria absoluta a qualquer dos dois candidatos no primeiro turno. Amapá (ao Norte do Pará, quase um apêndice deste Estado), Amazonas (no centro da Região Norte, na divisa com o Pará) e Minas Gerais (no norte da região sudeste, na fronteira com a Bahia) deram vitória parcial a Lula. Enquanto São Paulo e Rio Grande do Sul deram vitória parcial a Jair Bolsonaro. A Figura 1, abaixo, apresenta estes resultados de forma ainda mais clara.

Figura 1 – Distribuição Geográfica do Voto para Presidente no Primeiro Turno das Eleições de 2022

Fonte: https://www.estadao.com.br/politica/eleicoes/2022/apuracao/primeiro-turno/

As áreas vermelhas correspondem aos municípios onde Lula foi o candidato mais votado; as áreas azuis correspondem aos municípios onde Bolsonaro foi o candidato mais votado. Desde logo, o mapa traduz a polarização das eleições de 2022: não há um único ponto em outra cor; vale dizer: os candidatos da “terceira via” não foram os mais votados em nenhum município do Brasil. Mas, por isso mesmo (e contraditoriamente), o mapa esconde algo que o Quadro anterior revela: a distribuição geográfica dos votos dos distintos candidatos da “terceira via”.

Como regra geral, a ordem do percentual de voto dos quatro candidatos mais votados para além de Lula e Jair Bolsonaro foi a mesma no conjunto do Brasil e em cada um dos Estados. Tebet e Ciro são, respectivamente, terceiro e quarto colocados no Brasil todo e em 20 UFs. Soraya e D’avila são, respectivamente, quinto e sexto colocados no Brasil e em 22 UFs. Porém, emergem algumas trocas de posição entre estas duas “duplas”. Elas se encontram hachuradas com fundo verde claro no Quadro 1. Ciro supera Tebet em sete UFs. Todas do Nordeste. E D’avila supera Soraya nos três Estados do extremo sul, bem como em São Paulo e em Minas Gerais. O que revela duas dimensões: (1) Ciro não conseguiu se consolidar como uma candidatura “do PDT” e manteve-se em quarto lugar até mesmo em UFs onde esta sigla tem longa tradição e forte enraizamento, como RS e RJ; e (2) o Novo é um partido essencialmente sulista.

A vantagem do mapa em relação ao Quadro 1 encontra-se no fato de que ele traz à luz as regiões de cada UF em que Lula e Bolsonaro conquistaram maioria simples. Nesse sentido, chama a atenção a homogeneidade da ampla mancha “vermelha” que vai do norte de MG e do ES até o leste do AM, passando por todo o NE, o norte do PA e o AP. Os pontos azuis nesta grande mancha vermelha são muito raros. Já a área predominantemente azul, a sudoeste do país, apresenta inúmeras manchas rubras. E não são manchas quaisquer. Algumas são largas e contínuas como no noroeste do MS e sudoeste do MT. Outras são menores em termos espaciais, mas muito expressivas em termos demográficos. Este é o caso da mancha vermelha na Região Metropolitana de São Paulo (incluindo a própria capital) e da mancha que se inicia em Porto Alegre e segue em direção ao sul do RS, incluindo municípios como Pelotas, Rio Grande e Bagé, para, então, voltar-se para noroeste, englobando a larga faixa entre Santa Maria e São Borja.

 

A geografia do voto para governador: primeiros acordes dissonantes

A distribuição geográfica do voto para governador não é muito distinta do voto presidencial. Mas, tampouco, é sua reprodução fiel. No Quadro 2, abaixo, apresentamos o partido dos governadores eleitos em 2022 e comparamos com o partido do governador em exercício (em final de mandato) neste mesmo ano. Ordenamos as UFs pelo mesmo critério do Quadro 1, com vistas a facilitar a comparação. Além disso, hachuramos as células de acordo com a posição dos partidos nas eleições de 2022. O fundo vermelho foi adotado para os partidos que apoiaram a chapa Lula-Alckmin; o fundo amarelo para os partidos que apoiaram candidatos da terceira via; e o fundo azul para os partidos que apoiaram a candidatura Jair Bolsonaro.

Ainda que o PSD não tenha apresentado candidato próprio, nem tenha apoiado Lula ou Jair Bolsonaro, o classificamos como “terceira via”. Esta classificação deve-se ao fato de que, a despeito deste ser um partido essencialmente conservador (do chamado “Centrão”), ao longo do processo eleitoral Gilberto Kassab chegou a sinalizar com o apoio a Lula numa negociação que envolvia, em troca, o apoio de Lula ao candidato do partido em MG. O acordo nacional não foi firmado, mas foi suficiente para que o PSD adotasse uma postura mais equidistante entre as duas candidaturas presidenciais que polarizaram as eleições de 2022.

Quadro 2: Legenda dos Governadores que terminaram o mandato em 2022 e dos eleitos no mesmo ano

FDB: https://arte.estadao.com.br/politica/eleicoes/geografia-do-voto/

Em apenas 6 das 11 UFs em que chapa Lula-Alckmin obteve mais de 50% dos votos foram eleitos governadores dos partidos que fizeram parte da composição. Em um destes estados, PE, governado pelo PSB até 2022 e onde Lula conquistou 65,3% dos votos no primeiro turno, foi eleita uma governadora do PSDB. Em Tocantins, onde Lula também obteve mais de 50% dos votos, foi reeleito, já no primeiro turno, o governador Wanderlei Barbosa, do Republicanos. Em MG, onde Lula obteve 48,3% no primeiro turno e onde se constitui uma frente ampla com PSD, PT, Rede, PSB, PCdoB e PV em apoio à candidatura de Alexandre Kalil, o governador Zema, do Novo, reelegeu-se no primeiro turno com 56,18% dos votos. A disputa em SP foi para o segundo turno, mas o vitorioso foi o ex-ministro de Bolsonaro, do Republicanos. De outro lado, no ES, onde Bolsonaro obteve 52,23% dos votos no primeiro turno, foi reeleito Renato Casagrande, do PSB.

 

Atravessando o samba: a composição da Câmara dos Deputados

A distância entre voto em Lula-Alckmin e nos governadores é real, mas algo sutil, e poderia ser atribuída a idiossincrasias políticas regionais e locais. Esta leitura, contudo, não se sustenta quando analisamos a eleição para a Câmara de Deputados por UF. Para simplificar a análise dos resultados, agregamos as 22 legendas que alcançaram eleger deputados federais em quatro grupos. No primeiro (com 122 deputados), incluímos os 9 partidos que apoiaram a chapa Lula-Alckmin, vale dizer: PT, PCdoB e PV (Federação Brasil Esperança), PSOL e Rede (também federados), o PSB, Avante, Solidariedade e PROS. No segundo grupo (com 198 deputados empossados), incluímos os 3 partidos que apoiaram Bolsonaro – PL, PP e Republicanos – bem como 2 partidos que, a despeito de não terem apoiado formalmente esta candidatura, operaram como base de apoio durante seu mandato presidencial e na campanha: PSC e Patriota.

No terceiro grupo (89 deputados), incluímos aqueles partidos que sustentaram as candidaturas de Tebet (MDB, PSDB, Cidadania e Podemos) e Ciro (PDT) e que, no segundo turno, com maior ou menor empenho, apoiaram a chapa Lula-Alckmin.  No quarto grupo (104 deputados) incluímos os partidos da “terceira via conservadora”, que se abstiveram de apoiar qualquer candidato no segundo turno, mas cujas bases eleitorais e várias lideranças regionais se alinharam com Jair Bolsonaro: União Brasil, Novo e PSD. O resultado está abaixo

Quadro 3: Estrutura da Câmara dos Deputados em 2023 por UF e por Orientação Político Partidária

FDB: https://www.camara.leg.br/deputados/bancada-atual

Tal como seria de se esperar, quase 50% da bancada do Centro-Oeste é composta por deputados da base de Jair Bolsonaro. Mas já aqui emergem surpresas. A terceira via que apoiou Lula no segundo turno elegeu quase um quarto da bancada da região, a despeito de Ciro e Tebet terem conquistado, em conjunto, apenas 7,2% dos votos no Centro-Oeste. Além disso, 25% da nova bancada do DF e do MS são de deputados dos partidos que apoiaram a chapa Lula-Alckmin. No total, o “bloco de esquerda” elegeu 6 deputados no Centro-Oeste, quase 15% da bancada regional. Este resultado pode parecer insignificante. E de fato é, se compararmos a votação para a Câmara[ii] com a votação em Lula no primeiro turno (que foi de 37,83% no Centro-Oeste). Contudo – e é para este ponto que queremos chamar a atenção – a votação no “bloco de esquerda” no Centro-Oeste foi muito superior à votação recebida por este mesmo bloco no Norte do país. E isto não é trivial.

Como se pode ver no mapa acima, a maior parte da Macrorregião Norte está “manchada de vermelho”. Não obstante, o bloco de esquerda elegeu apenas dois deputados nesta região, ambos pelo Pará. Dos oito deputados eleitos pelo Tocantins (onde Lula obteve 50,4% dos votos no primeiro turno), dois são do PL, dois são do PP, três são do Republicanos e um é da União Brasil. A performance do Amazonas e do Amapá (onde Lula obteve mais de 45% dos votos no primeiro turno) não foi tão conservadora: as duas UFs elegeram deputados dos partidos da “terceira via progressista”. Mas nenhum candidato do “bloco de esquerda” foi eleito nessas duas UFs.

De certa forma, a situação no Nordeste é ainda mais surpreendente. No primeiro turno das eleições, Lula obteve 68,84% dos votos no Maranhão, 65,91% no Ceará e 64,21% na Paraíba. Mas dos 18 deputados eleitos pelo Maranhão, 9 são de partidos bolsonaristas, e os demais foram divididos igualmente entre os outros três blocos: vale dizer: os partidos do “bloco de esquerda” receberam menos de 20% dos votos neste Estado O Ceará elegeu 22 deputados; dos quais 5 são PL, 5 são PDT (partido de Ciro Gomes), 4 são União Brasil e 3 são PSD. O bloco de esquerda elegeu 3 deputados nesta UF; todos do PT.

Dos 12 deputados a que a Paraíba faz jus, 9 dos eleitos são do campo bolsonarista e 1 é da União Brasil: vale dizer: 83,3% são de partidos conservadores. É bem verdade que há UFs da região onde o desempenho da esquerda foi melhor. O exemplo extremo é o Piauí, onde dos 10 deputados eleitos na UF, 5 são do campo da esquerda. Mas os outros 5 são do campo conservador (PP e PSD). O que não deixa de ser um contraste com os 74,3% de voto em Lula (por oposição aos 19,9% de voto em Bolsonaro) no primeiro turno. Numa posição intermediária entre o padrão de MA, CE e PB e de PI temos Pernambuco e Bahia. PE faz jus a 25 deputados e elegeu 11 do bloco de esquerda, sendo que 5 do PSB e 1 de cada um dos demais partidos (exceto PSOL e PROS). Mas o bloco bolsonarista não ficou muito atrás: elegeu 10 deputados nesta UF. A Bahia elegeu 12 deputados do bloco de esquerda. Mas também elegeu 10 deputados dos partidos de apoio a Bolsonaro, 6 do União Brasil e 5 deputados da “terceira via Simone-Ciro”.

Do nosso ponto de vista, estes resultados mostram que o Nordeste é muito mais heterogêneo no campo político e apresenta um eleitorado mais conservador (ou, pelo menos “politicamente eclético”) do que pretendem aqueles que tomam os resultados para as eleições presidenciais como expressão necessária e suficiente do perfil político-ideológico da região. Na verdade, o conjunto dos resultados eleitorais do território revelam uma região que é mais “lulista” do que propriamente “de esquerda”. Vale notar que o PSOL não elegeu um único deputado em todo o Nordeste. E o PT só fez uma boa bancada (21 de um total de 69 eleitos pelo partido) em função da Bahia (7 deputados) e do Piauí (4). Nas demais UFs, a performance do PT foi bastante modesta.

A região sul também traz algumas surpresas, a começar pela diversidade. Dos 18 deputados eleitos na região pelo bloco de esquerda, 9 são do RS, 7 são do PR e apenas 2 são de SC. Quase 30% da bancada gaúcha é do bloco de esquerda, enquanto em SC esta percentagem é pouco superior a 10%. Há um pouco mais de homogeneidade na representação dos partidos da base de Bolsonaro: pouco mais de 30% da representação de cada um dos Estados. E este é um ponto importante a salientar: a bancada federal dos partidos bolsonaristas da região Sul corresponde a 32,47% da bancada total da região. Esta percentagem é elevada, mas é a mais baixa dentre todas as regiões do país.

Se tomamos os partidos da base de Jair Bolsonaro por referência, o Sul é menos bolsonarista do que o Nordeste, cuja bancada federal da base de Bolsonaro corresponde a 37,75% do total.  De outro lado, a heterogeneidade da região volta a se manifestar nas “duas terceiras vias”. No PR, a “terceira via progressista” elege apenas 10% da bancada, enquanto ela ultrapassa os 25% no RS e em SC. Em compensação, quase 37% dos deputados paranaenses são da” terceira via conservadora”, sendo 4 da União Brasil e 7 do PSD.

O primeiro elemento que chama a atenção na análise do Sudeste é sua maior homogeneidade relativa e maior consistência entre os votos nas distintas candidaturas a presidente e os votos nos partidos que deram sustentação às mesmas. Esta característica não pode surpreender: SP, MG e RJ são os três maiores colégios eleitorais do país e o centro econômico e cultural do Brasil. Por contraditório que possa parecer, a diversidade interna alimenta a homogeneidade e a convergência do grupo, na medida em que deprime a expressão relativa de dimensões idiossincráticas, de cunho estritamente regional e/ou local. Veja-se, por exemplo, a participação do “bloco de esquerda” nas bancadas do ES (30%), MG (33,96%), RJ (30,43%) e SP (28,57%). Tomando a região como um todo, 30,73% da bancada eleita é do “bloco de esquerda”.

E, aqui, o segundo ponto a observar. A percentagem do “bloco de esquerda” no Sudeste é superior à percentagem do “bloco de esquerda” no país como um todo: 122 deputados num total de 513 correspondem a 23,78%. Mais: esta percentagem é superior àquela da Região Nordeste tomada como um todo. A bancada nordestina é composta por 151 deputados e o “bloco de esquerda” conta com 41 eleitos, perfazendo 27,15% do total. Não gratuitamente, o Sudeste foi responsável por quase a metade da bancada nacional do “bloco de esquerda”: 45,08% do total. Mais ainda: a representação de alguns partidos do bloco de esquerda assenta-se quase que integralmente nos três maiores colégios eleitorais, SP, RJ e MG:  91,6% da bancada do PSOL; 71,4% do Avante; 75% do Solidariedade; 100% da bancada do PROS; e 50% da bancada da Rede é composta de deputados eleitos nestes estados. Em suma: sem as UFs que elegeram Zema, Tarcísio e Castro como governadores estaduais, tanto a expressão numérica do “bloco de esquerda” da Câmara Federal seria menor (cairia de 122 para 69 deputados), como sua diversidade interna seria ínfima, pois partidos como PSOL, Avante, PROS e Rede não subsistiriam enquanto organizações viáveis dentro das cláusulas de barreira vigentes atualmente.

 

Conclusão

A geografia do voto para a Câmara Federal revela um país muito mais complexo e heterogêneo do que aquele que emerge de uma análise circunscrita à eleição presidencial. Ela traz à luz um Nordeste e um Norte mais conservadores e um Sudeste, um Sul e um Centro-Oeste menos conservadores do que mapa do Brasil na Figura 1 insinua.

Alguém poderia contra-argumentar que o voto para o executivo e o voto para o legislativo seguem lógicas distintas, e que é o voto para Presidente que melhor traduz o perfil político-ideológico do território. Se nos permitem uma “dialética simples”, diríamos que este contra-argumento é e não é legítimo. Ele é legítimo no sentido de que a opção do eleitor por este ou aquele candidato do legislativo é mediada por determinações que transcendem, em muito, o perfil ideológico do partido ao qual o candidato se vincula. Elementos como conhecimento pessoal, território de origem, benefícios esperados para a região, para si e/ou para o setor econômico em que o eleitor atua são tão ou mais importantes do que a inflexão ideológica do candidato e de seu partido.

Sem dúvida, este ponto é importante e verdadeiro. Não é gratuito que, volta e meia, ideólogos e políticos conservadores resgatem o projeto do parlamentarismo no Brasil. As eleições presidenciais têm uma dimensão “plebiscitária”, onde são contrapostos dois projetos; como regra geral, um projeto à esquerda (mais intervencionista, industrializante e distributivo) e um projeto à direita (de inflexão liberal, privatizante e avesso às políticas públicas de distribuição de renda). Num país excludente como o Brasil, em regimes democráticos a tendência é a vitória da esquerda. Daí a recorrência de golpes (como em 1954, 1964, 2016-2018) com vistas a recolocar a direita no poder. O projeto de parlamentarismo busca eliminar a dimensão plebiscitária da eleição presidencial sob o pressuposto de que o eleitorado continuará elegendo um Câmara por critérios “clientelísticos”, por oposição a critérios especificamente utópico-ideológicos.

Não obstante, há, também, um outro lado na questão. Como bem argumentou Putnam em seu Comunidade e Democracia, uma das principais expressões da cultura política oportunista do sul da Itália em contraste com o elevado capital social do norte encontra-se no padrão de voto: clientelista no sul e utópico-ideológico (partidário) no norte[iii]. Vale dizer: um voto nas eleições proporcionais que se assenta primariamente em relações pessoais e em interesses profissionais e/ou em benefícios locais não é, necessariamente, a norma. Como, aliás, sabem(os) todos aqueles que votam por critérios definidos a partir do projeto social do partido. Votar em um candidato pelo que ele “prometeu fazer para mim” é, também, uma opção política. E ela comporta uma dimensão oportunista e conservadora.

Por fim, o fato de que o voto para Presidente tenha uma dimensão plebiscitária e seja marcado, fundamentalmente, por elementos utópico-ideológicos, não o torna isento de elementos de interesse pessoal e regional. Lula é nordestino e tem compromissos claros com o enfrentamento de desigualdades regionais e a promoção do desenvolvimento socioeconômico do Nordeste em todos os níveis: da infraestrutura (transposição do Rio São Francisco, Luz para Todos, Água para Todos, etc.) aos serviços de saúde (qualificação do SUS, Samu, etc.) e educação (interiorização das Universidades e Escolas Técnicas Federais, Pronatec, etc.). E, do nosso ponto de vista, tais compromissos explicam uma parcela não desprezível do “lulismo” nordestino (e nortista) por oposição ao “anti-lulismo” do sudoeste.

O Brasil que votou em Jair Bolsonaro é, fundamentalmente, o Brasil incluído e que teme qualquer tipo de política pública redistributiva, seja entre classes sociais, seja entre regiões. Esse ponto fica muito claro nas “manchas vermelhas” nas UFs da Região Sul, Sudeste e Centro-Oeste. No RS, Lula teve maioria dos votos na Metade Sul, caracterizada pelo latifúndio e pelo baixíssimo dinamismo econômico. No PR, a grande mancha vermelha encontra-se no centro-oeste desta UF, em torno de Guarapuava, a região mais pobre e menos industrializada do PR. Em MG, a mancha vermelha encontra-se no norte e nordeste da UF, também ela a mais pobre e carente de políticas governamentais de apoio ao desenvolvimento regional.

A grande mancha lulista no Centro-Oeste corresponde à região do Pantanal, de menor IDHM de MS e MT. O “lulismo” destas regiões não parece se assentar em qualquer hegemonia político-ideológica da “esquerda”, mas na crença de que são necessárias políticas públicas de apoio à geração de emprego e de investimentos públicos federais nos territórios com vistas ao enfrentamento da estagnação econômica. Sem ser atrasada ou estagnada, a capital de São Paulo e seu entorno industrial também pode ser incluída nesse grupo: em função do processo de desindustrialização do país que já completa três décadas, a RMPS vem perdendo participação no PIB e no VAB brasileiro a cada ano que passa. E só poderá recuperar seu dinamismo anterior e incluir produtivamente parcela de sua população desempregada se forem adotadas políticas públicas ativas de apoio à indústria nacional. Em suma: o Brasil lulista é, antes de mais nada, um Brasil que demanda ações públicas de apoio ao desenvolvimento. Mas não é, necessariamente, um Brasil comprometido com todo o espectro da pauta da esquerda.

Nossa intenção, evidentemente, não é negar a inflexão política à esquerda do Nordeste. Todos os progressistas brasileiros têm uma dívida política com esta região do país, que nos salvou de mais 4 anos de desgoverno Bolsonaro. Nossa intenção é apenas alertar que o país é muito mais rico e nuançado e não cabe num modelo de “dois Brasis”: o conservador Sudoeste versus o Nordeste progressista. Sem o Sul e o Sudeste, a bancada do “bloco de esquerda” da Câmara Federal corresponderia a meros 40% do que ela é hoje. De sorte que também vale saudar e agradecer a importante contribuição política destas regiões para o enfrentamento do bolsonarismo no Brasil.

*Carlos Águedo Paiva é doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat.

Notas


[i] Para além da votação nacional, há que se contabilizar a votação do exterior. A despeito de pouco expressiva, ela altera discretamente as percentagens de cada UF no total.

[ii] Note-se que estamos utilizando a percentagem de deputados eleitos em cada um dos “quatro blocos” como proxy da percentagem dos votos totais nos partidos incluídos em cada grupamento. Esta proxy está longe de ser perfeita. Ao utilizá-la, desconsideramos os votos atribuídos àqueles partidos que não atingiram o quociente eleitoral. Uma pesquisa mais rigorosa envolveria tomar por referência também estes votos. Não obstante, entendemos que os custos do levantamento desta informação não compensariam os benefícios obtidos. E isto por diversas razões. Mas duas são fundamentais. Em primeiro lugar, porque o nosso foco não são os partidos individuais, mas grandes blocos. Dessa forma, os desvios associados à desconsideração dos votos nos partidos que não atingiram o quociente tendem a se distribuir de forma equilibrada entre os quatro blocos, pois todos contam com partidos pequenos e de base essencialmente regional. Este é o caso do Solidariedade, PROS, Avante e Rede no bloco da esquerda; do PSC e Patriota no bloco bolsonarista; do Cidadana e do Podemos, na “terceira via progressista”, e do Novo, na “terceira via conservadora. De outro lado, todos os blocos contam com grandes partidos, estruturados nacionalmente, como o PT e o PSB na coligação vitoriosa, o PL e o PP, no grupo bolsonarista, o MDB, o PSDB e o PDT na terceira via progressista e o União e o PSD no bloco final. Estes partidos tendem a receber o voto de seus similares ideológicos nos territórios onde os partidos “nanicos” têm pouca ou nenhuma chance de conquistar representação.

[iii] A pesquisa de Putnam realizou-se antes da operação Mãos Limpas, a “Lava-Jato italiana”, que criminalizou a política e virtualmente destruiu com os partidos tradicionais, como a Democracia-Cristã, o Comunista (posteriormente, Democrático de Esquerda) e o Socialista.

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