Por RAFAEL BALIARDO*
O status conquistado pela capoeira dentro e fora do país é desconcertantemente recente
Se o rendez-vous entre a harmonia da música europeia e os timbres e ritmos da poderosa percussão africana, que é o jazz, foi e é tratado como a primeira forma de arte genuinamente “americana” (estadunidense), a capoeira – que não é esporte, arte, jogo, religião, luta marcial ou apenas música, e também sintetiza isso tudo – tem de ser considerada como expressão característica do legado brasileiro. Sim, não se deve igualar laranjas e maçãs. O primeiro corresponde a um gênero musical que se espalhou pelo mundo, configurando uma das bases da música popular do século XX. O segundo é um híbrido de luta e dança que desafia categorizações e encontra poucos paralelos formais em termos de originalidade. Mas, ambos são novidades culturais resultantes inicialmente da hecatombe imposta aos africanos durante quase quatro séculos de cativeiro e trabalho forçado nas Américas.
O status conquistado pela capoeira dentro e fora do país é, porém, desconcertantemente recente. A valorização e a popularidade da capoeira mundo afora irromperam com mais força e continuidade nas décadas de 1970 e 1980, a partir de esforços irradiados do Brasil. De modo peculiar e talvez não por total coincidência, no Ocidente, foi justo a época em que se popularizavam as artes marciais, capitaneadas também por uma geração de filmes de ação norte-americanos da década anterior. A “onda”, iniciada na segunda metade dos anos 1950, foi consequência da ocidentalização dos filmes wuxia, de heróis marciais, que os chineses produziam desde os anos 1920.
No Brasil, há cerca de cinquenta anos, a capoeira começou enfim a ser reconhecida institucionalmente e integrar o rol de práticas de entidades como a Confederação Brasileira de Pugilismo.[i] Parte das causas do fenômeno do resgate desse complexo cultural afro-brasileiro surgiu justo da divisão em estilos da capoeira contemporânea, na Bahia, no início do século XX. A República brasileira, nascida no ano seguinte à revogação absoluta da escravatura, codificou a capoeira como jargão policial.2 A partir dos anos 1930, o pioneiro Mestre Bimba (1900-1974) empenhou-se em recuperar o que considerava os aspectos marciais da prática, relegados, segundo sua visão, à marginalização da capoeira coibida pelo preconceito e a repressão pelo Estado. No esforço de responder à urgência de novas modalidades de lutas surgidas nos ringues, Bimba desenvolveu a didática de sua luta regional baiana, que posteriormente repercutiu na formalização do seu ensino e também numa verdadeira filosofia de aprendizagem.
Como reação direta, Mestre Pastinha (1889-1981), na década posterior, liderou a divergência tradicionalista da capoeira angola, ao recuperar elementos descartados pelo esforço inovador do grupo que cercava Bimba, como as ladainhas introdutórias, o aspecto teatral e o chamado “jogo de dentro”. Pastinha e sua escola de capoeira no Pelourinho se tornariam referências internacionais. O velho mestre seria ainda convertido em personagem homônima da novela satírica A morte e a morte de Quincas Berro D’Água (1961), por Jorge Amado.3 É válido sublinhar que ambas abordagens são movimentos surgidos entre os capoeiristas baianos e, apesar de antitéticos no que toca, de um lado, a preservação de tradições de origem africana e, de outro, o empenho de sua normatização como esporte, os dois estilos firmaram-se como inovações, como observaram Vieira e Röhrig:4 “ Além do mais é preciso lembrar que a capoeira baiana antes da modernização não era homogênea e uniforme, mas que cada mestre ensinava um conjunto específico de movimentos, ritmos e rituais. Tanto que a capoeira de outros mestres antigos como Waldemar, Cobrinha Verde ou Canjiquinha podia ter características bastantes distintas da forma ensinada por Pastinha”.
Dividida e normatizada em estilos, era de se esperar a consequente irradiação da prática. A internacionalização da capoeira a partir dos anos 1970 foi um movimento de mão dupla. Partiu, em certa medida, do seu aburguesamento no país ao mesmo tempo em que a atenção e o respeito de estrangeiros ao jogo influenciaram a classe média brasileira, que então educou o olhar para aquela originalíssima invenção cultural. Do estigma de vadiagem da época do Império, passando por crime tipificado durante a República Velha, a capoeira tornara-se, então, um folclore exótico que devia ser preservado.
Dali não tardaria até conquistar a condição de “patrimônio imaterial do Brasil”, instrumentalizada ironicamente, por exemplo, na reeducação de menores. Ou seja, passou a ser aplicada ao esforço de corrigir as mazelas sociais que, no passado, fora acusada de agravar. Não é exatamente uma trajetória estranha ao se considerar que o Brasil nutre uma relação ambígua e superficial com sua identidade nacional, é fragmentado em castas sociais, com um tipo característico de racismo enovelado de modo sistêmico nos foros público e íntimo e com uma reduzida elite que não reconhece e se envergonha de sua cultura.
A onda de interesse popular das décadas de 1970 e 1980 pela capoeira foi precedida pela atenção de cunho artístico e etnológico a partir dos anos 1940. Costuma se citar mais notadamente as imagens registradas pelo fotógrafo franco-brasileiro Pierre Verger (1902-1996). Verger deixou a Europa do pós-guerra depois da leitura da tradução francesa de Jubiabá (1935), quarto romance de Jorge Amado. Após incursões à África e de atuar como colaborador da revista O Cruzeiro, aprofundou sua imersão pessoal na cultura afro-brasileira, assumindo posteriormente o prenome de Fatumbi, como decorrência da adoção da fé dos iorubás, se iniciando em cultos como o do oráculo de Ifá.5
As ilustrações estilizadas do argentino naturalizado brasileiro Carybé são outra referência da iconografia resultante do interesse de estrangeiros pela capoeira. Carybé, nome artístico de Hector Julio Paridé Bernabó (1911-1997), chegou mesmo a trabalhar no filme O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto (o cineasta paulista e não o escritor fluminense), confeccionando mais de 1660 esboços para o storyboard baseado no roteiro cinematográfico da película. Registros artísticos da capoeira feitos por europeus são obviamente mais antigos. O artista francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), um dos pioneiros da Academia Imperial de Belas Artes, fundada por Dom João VI, a partir dos esforços da Missão Artística Francesa no Rio de Janeiro, em 1817, pintou cenas da capoeira entre seus incontáveis registros do cotidiano do Brasil justo na transição entre o período colonial e a formação do Império.
Um corte em salto para o período que vai de meados da década de 1970 ao fim dos anos 1990, e vemos se proliferarem as escolas de capoeira, espalhadas pela Europa e a América do Norte. Particularmente na era yuppie e sobretudo nos Estados Unidos, os “estúdios” de capoeira reuniam um público eclético que ia de profissionais liberais a dançarinos de grandes companhias, de esportistas de alto desempenho a nomes do mundo do entretenimento. A combinação entre ritmo e acrobacias saídas de uma luta, entreposta por instrumentos considerados exóticos como o berimbau, o pandeiro, o atabaque, o reco-reco, apitos e caxixis, exibia ao ocidental de raízes europeias uma singularidade – a capoeira parecia a síntese extraordinária entre arte e esporte.
O pioneiro Nestor Capoeira (Nestor Sezefredo dos Pasos Neto), que, a partir de 1971, passou a ensinar na Escola de Dança Contemporânea de Londres, é um dos principais nomes por trás do esforço de internacionalização do jogo, assim como os mestres baianos Jelon Vieira e Loremil Machado, que atuaram nos Estados Unidos, a partir da mesma década, com o primeiro mais envolvido com o mundo da dança, e o segundo no treinamento de capoeiristas estrangeiros.6.
Alex Ladd, tradutor para o inglês da obra de Nestor Capoeira e autor do prefácio de “The Little Capoeira Book”, sintetiza a atmosfera em torno do trabalho de mestres brasileiros nos EUA, ao se referir especialmente a Jelon Vieira: “Uma típica aula de Vieira na cidade de Nova York durante os anos 1970 e 1980 incluiria um jogador de hóquei de Yale que naturalmente via conexões entre seu esporte e aquele híbrido de graça, agilidade e músculo trazido pela capoeira; um músico de jazz afro-americano que encontrava nas canções de estrutura rítmica essencialmente africana um retorno às suas próprias raízes, e uma bailarina clássica hipnotizada pelos movimentos belos, mas letais da capoeira.”7
Capoeirista, discípulo de Jelon Vieira e Edna Lima, primeira mulher mestre do Brasil, Alex Ladd, que também traduziu os contos de A vida como ela é (1950-61), de Nelson Rodrigues, para o inglês (Host Publications, 2009), resume ainda o aspecto de a capoeira não ser difundida como as artes marciais do leste e sudeste asiáticos: “E apesar de todo esse movimento, a capoeira, no entanto, continua sendo uma palavra estrangeira para a maioria dos americanos, não muito diferente do status que tinham as artes marciais asiáticas no início dos anos 1950 neste país”.
Nascido em 1946, o mineiro Nestor Capoeira começou na prática pelas mãos de um afamado mestre carioca, Demerval Lopes de Lacerda, o Mestre Leopoldina (1933-2007). Tal como ele, o Mestre Acorden (Bira Almeida) é outro dos pioneiros no ensino da capoeira fora do país, a partir de sua escola sediada na área da Baía de São Francisco, na Califórnia, e com base em seu livro Capoeira: A Brazilian Art Form (North Atlantic Books, 1986), um dos primeiros sobre o assunto em língua inglesa.
O título do livro de Bira Almeida é simples e elucidativo. Capoeira é arte. Arte brasileira. Há obviamente o registro de outros híbridos de dança e luta considerados aparentados à capoeira, como o caso do moringue, que apareceu nas regiões costeiras de Madagascar e se espalhou pelos incontáveis arquipélagos do Oceano Índico. Surgido durante a dinastia Maroseranana (1675–1896) do reinado de Sakavala, formado por um dos menores grupos étnicos do mundo, o moringue foi concebido como uma forma de combate, e seus praticantes ainda hoje são temidos e respeitados nas regiões em que é popular. As demonstrações são acompanhadas por músicas e sons executados com a finalidade de induzir a estados de transe, enquanto o público também entoa cantos de provocação e zombaria.
Outro exemplo vem da ilha caribenha de Martinica, onde desenvolveu-se a dança folclórica de combate, também de origem africana, da Ladja (conhecida ainda por danmyé ou Ag’Ya). Assim como a capoeira, é um jogo de habilidade, guiado pelo chefe de roda e os músicos. Apesar da incerteza e improbabilidade de relação direta com a capoeira, a Ladja dispõe da mesma qualidade inequívoca de sintetizar dança, canto e espiritualidade ao representar um jogo marcial de disputa entre lutadores.
Até por aproximação, o caráter de “arte de síntese” dessas modalidades de origem africana é irrefutável se contrastado com formas de luta bastante características inventadas em outras tradições, como o combate marcial havaiano Kapu Kuʻialua (ou Lua), baseado em torções e em causar danos em pontos sensíveis do corpo; ou mesmo a arte de defesa polinésia do Limalama, que foi desenvolvida a partir de passos da dança tradicional samoana, já no século XX.8
Mesmo se acareado com variedades marciais mais conhecidas, o caráter distinto da capoeira parece indisfarçável. Basta defini-la como uma arte marcial brasileira? Apesar da palavra “arte” na expressão “arte marcial”, sabemos que o vocábulo aqui tem a conotação de uma analogia, como em “arte da guerra”, ou a “arte de cozinhar”. Este é, portanto, o caso da capoeira?
Ninguém reivindica o caráter artístico, por exemplo, do judô, o “caminho suave” surgido das inovações pedagógicas introduzidas pelo educador Jigoro Kano (1860-1939), como alternativa aos ferimentos causados durante a prática de formas mais tradicionais de jiu-jitsu. Ao longo do século XX, o judô espalhou-se pelo mundo, sempre associado às melhores virtudes pedagógicas, não raro, ao chavão de atribuir aos japoneses um senso impecável de disciplina e técnica. Até mesmo outra invenção brasileira, o Brazilian Jiu-Jitsu, desfruta do renome de arte marcial pátria mais popular mundialmente se contraposto com a capoeira. A modalidade foi desenvolvida a partir dos anos 1920 por quatro dos irmãos da família Gracie, com base no aprendizado direto do judô kodokan tradicional por um deles, Carlos (1902-1904), que estudou com o mestre itinerante de origem japonesa Mitsuyo Maeda (1878- 1941) a partir de 1917.
Ao fim do século passado, no início dos anos 1990, com base em uma série de vídeos batizada de Gracies in Action, que mostrava lutadores da família desafiando e prevalecendo sobre praticantes de outras modalidades de artes marciais, foi que surgiram os primeiros torneios que deram origem à franquia internacional Ultimate Fighting e nos chamados “MMAs”. De certo modo, o enfrentamento entre lutadores de diferentes variedades das Artes Marciais Mistas e sua violência expressa e caráter essencialmente comercial não deixam de ser um irônico epílogo à algazarra praieira e feroz que marcou a trajetória dos Gracie.
A capoeira, entretanto, habita outro espectro do inconsciente cultural do Ocidente em relação ao Brasil. Está longe de conquistar a popularidade da apropriação tropical de um combate marcial nipônico, que é o jiu-jitsu brasileiro, e parece circunscrita ao exotismo enviesado, comum ao se olhar para quase tudo que vem da África.
Termo de origem indígena, a palavra “capoeira” provavelmente remete ao sentido de “mato seco”, em alusão às matas rasteiras pelas quais os negros escravizados fugiam. O Dicionário Houaiss estende o sentido, do ambiente, para o próprio escravo que se refugiava na ‘capoeira’ (mato) e assaltava viajantes para poder sobreviver, apontando a evolução etimológica e prováveis origens concorrentes como a expressão Kapwila – ‘pancada, tabefe, surra’ – até que a palavra acabasse associada à vadiagem e às lutas travadas entre lutadores de rua que portavam navalhas.
Através de uma coleção de depoimentos, o documentário Mestre Bimba: a capoeira iluminada, baseado no livro Mestre Bimba – corpo de mandinga, do sociólogo Muniz Sodré, lança alguma luz sobre a natureza híbrida e singular da capoeira. Invenção do afrodescendente, a prática ainda é marcada pelo debate em torno de sua desportivização ou reafricanização. O ineditismo das competições de capoeira nos Jogos Escolares Brasileiros (JEBs), nos anos 1970, ou a organização de suas práxis em um formato distinto dos modelos tradicionais de federações, como ocorre com a maioria das lutas marciais, são exemplos objetivos desta característica ambivalente.
Historicamente, não há, todavia, identificação da prática da capoeira entre os primeiros quilombolas,9 com os registros mais antigos remontando já ao ambiente urbano. O historiador e diplomata Guilherme Frazão Conduru, ao citar10 o estudo de 1898, de Elísio Araújo, sobre a Polícia da Capital Federal entre 1808 a 1831, revê a figura de um oficial de milícias, o tenente João Moreira, “o amotinado”, espécie de antecessor do memorável major Vidigal, imortalizado no romance Memórias de um Sargento de Milícias (1852/54), de Manuel Antônio de Almeida (1830-1861), recobrando assim a personagem do justiceiro urbano, às voltas em contendas com escravos fugidos na perseguição aos quilombos, candomblés e capoeiras. É o cenário que precede as maltas de capoeira, em que os golpes desferidos eram combinados com o uso de navalhas e sovelões, aproveitados como armas brancas.
A crônica que tem origens na tormentosa e interminável experiência da escravidão e que, com o fim do cativeiro, se assentou no ambiente da pobreza, da marginalidade, da briga de rua, depois se nobilizando como expressão cultural, talvez sugira alguma prevenção contra a superficialidade da novela sociológica que arrosta o passado com o filtro hipertrofiado do moralismo e se auto investe de “curar a história”, anunciando assim uma era de reparação. A capoeira, como toda invenção humana que inaugura uma tradição – ou seja, que é marcada pelo predicado da originalidade – é uma resposta a circunstâncias históricas, econômicas e sociais, mas não pode ser puramente compreendida por estas, porque é maior do que a soma de suas partes, como o é toda arte ou invento originário.
“A capoeira é tudo o que o corpo come e tudo o que a boca dá”,11 repetia mestre Pastinha. “Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem”, define hoje Antonio Liberac Cardoso Simões Pires, professor e pesquisador da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, sintetizando os termos da novidade que sobreviveu à servidão. Simões Pires transcreve12 ainda o esforço de parlamentares durante o regime do governo provisório republicano, de defenderem a capoeira, ao referir o movimento para oficializar o ensino da modalidade nas Forças Armadas. Ou seja, mesmo coibida pela repressão, havia alguma consciência contemporânea sobre seu valor e singularidade. Como suporte à evidência, o historiador remete aos comentários do “exímio capoeira da década de 1920”, Annibal Bularmaqui, o mestre Zuma, que, com a proposição de sua “gimnastica brasileira” e o apelo, já na primeira metade do século passado, pelo reconhecimento em algum nível institucional do esporte pátrio, desenvolveu uma vertente da capoeira carioca.
Há ainda os elementos espiritualistas que conectam o “esporte-arte” com os enigmas cosmológicos das religiões, afro-brasileiras. No mesmo volume publicado em dezembro de 2008 pela Divisão de Promoção da Cultura Brasileira do Ministério das Relações Exteriores (fonte de alguns dos estudos citados aqui), o capoeirista Pedro Rodolpho Jungers Abib, autor da obra Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda (Edufba), remete13 à personagem Besouro Mangagá (conhecido ainda como Besouro Preto ou por Besouro Cordão de Ouro), cognome do mestre baiano de Santo Amaro, Manoel Henrique Pereira (1895-1924), cujas notícias de proezas e circunstâncias discrepantes de sua morte geraram dúvidas mesmo sobre a veracidade de sua existência. Um de seus discípulos, o célebre capoeira Rafael Alves França, outra figura quase lendária e apelidada de Mestre Cobrinha Verde, reivindicava o ter conhecido, corroborando algumas de suas façanhas derrotando vários adversários ao mesmo tempo, ao fortalecer a crença de que o Besouro Mangagá tivesse o “corpo fechado”.
Mestre Cobrinha, ele mesmo, é outra personagem importantíssima da capoeira angola, ao redor do qual também se criaram muitos mitos (há sete canções de um álbum de 1962 disponível na plataforma Spotify com registros de suas performances cantadas em rodas). Em um volume obscuro, mas envolvente, Capoeira e mandingas: Cobrinha Verde (1990), Marcelino dos Santos, o Mestre Mau, reúne alguns desses relatos e recorre a um expediente amadiano (de Jorge Amado) ao advertir logo de entrada: “Se os fatos narrados neste livro não aconteceram conforme Cobrinha Verde conta, azar dos fatos”. Na mesma obra, traz ainda o registro fotográfico de um feiticeiro dos Camarões usando uma ajaezada máscara de leão, com a legenda do polígrafo suíço Carl G. Jung (1875 – 1961): “Ele não finge ser um leão, está convencido de que é um leão”.14
Mais recentemente, há quem aponte a ascendência torta da capoeira mesmo sobre uma vertente da cultura popular como o breakdancing (b-boying ou b-girling), estilo de dança improvisada, de rua, surgida primeiro nas comunidades de imigrantes e descendentes de porto-riquenhos nos Estados Unidos e que se popularizou a partir dos anos 1980. Radicado nos EUA, o dançarino e DJ autodenominado Neguin, epíteto do brasileiro Fabiano Carvalho Lopes, tornou-se mundialmente conhecido por inserir movimentos da capoeira em suas performances. O resultado que combina passos de dança e acrobacias que desafiam a gravidade lhe rendeu renome artístico nos mais diferentes círculos.
Pondo de lado qualquer idealismo, países se inventam culturalmente em um moto complexo e não-linear que circunda desde o pragmatismo das ações de política cultural até o concerto insondável entre história, lutas e dores de fundação. Existe conquanto algo que parece estar sempre presente, a aptidão de homens e mulheres de olhar para si e seus patrícios e decifrar o que enxergam de modo a traduzir a experiência humana fundamental. Sim, são inúmeras as desgraças e incontáveis as injustiças nos destinos das nações. O respeito exagerado ao que é estrangeiro, o desprezo ao que é estrangeiro, o patriotismo febril e o autodesprezo são paradoxalmente rebentos de um mesmo vício, a incapacidade de olhar para si mesmo e interpretar a própria cultura. Talvez a capoeira ainda espere por seus emissários e profetas que, enfim, revelem os mistérios de sua aurora.
*Rafael Baliardo é jornalista. Foi crítico literário e cobriu temas da ciência e da Justiça no Brasil e nos Estados Unidos. Vive atualmente na costa atlântica do Canadá.
Notas
[i] VIEIRA, Luiz Renato & ASSUNÇÃO, Mathias RÖHRIG. “Os desafios contemporâneos da capoeira” in Textos do Brasil no. 14, Ministério das Relações Exteriores (2011).
2 GOULART, Luiz Fernando. Mestre Bimba, a Capoeira Iluminada [documentário]. Lumen Produções (2005).
3 AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro D’Água. Cia. Das Letras (2008).
4 Idem à nota 1.
5 Sistema divinatório da África ocidental vinculado aos cultos e religiões do grupo étnico dos iorubas.
6 CAPOEIRA, Nestor. The Little Capoeira Book. Blue Snake Books, Berkeley, Califórnia (2003).
7 Idem.
8 GREEN, Thomas A. & SVINTH, Joseph R.. Martial Arts of the World: An Encyclopedia of History and Innovation. ABC – Clio, Santa Bárbara, Califórnia (2010).
9 CONDURU, Guilherme Frazão. “Metamorfoses da Capoeira: Contribuição para uma história da Capoeira” in Textos do Brasil no. 14, Ministério das Relações Exteriores (2011).
10 Idem.
11 ABIB, Pedro Rodolpho Jungers. “A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos” in Textos do Brasil no. 14, Ministério das Relações Exteriores (2011).
12 SIMÕES PIRES, Antonio Liberac Cardoso. “Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem” in Textos do Brasil no. 14, Ministério das Relações Exteriores (2011).
13 Mesmo que o item 11 e ASSUNÇÃO, Matthias. (2019). Capoeira: From Slave Combat Game to Global Martial Art. 10.1093/acrefore/9780199366439.013.293.
14 SANTOS, Marcelino dos. Capoeira e mandingas: Cobrinha Verde. Filhos de Bimba/ Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, Salvador (1990).
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